CapÃtulo 14
Raquel abriu a porta do seu apartamento, abraçou Nayami com muita vontade e um enorme sorriso no rosto.
--Demorei?
--Não. Pontual como sempre. Minhas crianças é que são ansiosas e eu já não sabia mais o que fazer para controlar o desespero dos dois.
Risos.
--Estão animadas em passar a tarde com a tia Naya?
--Deves estar a brincar. Há dias que não se fala em mais nada nessa casa. A Mariana já escolheu mil roupas diferentes, o Bruno não cansa de perguntar para onde vais levá-los, enfim minha amiga, boa sorte com a pirralhada e muito obrigada por me ajudar mais uma vez.
--De nada. Será um prazer enorme passear com teus pequenos. Eu adoro criança e me divirto muito quando resgato aquela que mora em mim.
Risos.
--Normalmente são crianças educadas, mas sabes como tudo é imprevisível nesse universo, portanto, estás autorizada a ser dura se necessário for.
--Não será, vais ver...
--Não confies muito nessa turma...eu e minha mãe fazemos o nosso melhor, mas digamos que a vida pode corromper e nós não moramos exatamente no melhor dos mundos...
--Relaxa Raquel, será uma tarde maravilhosa.
--Nayami, eu nem sei como agradecer...criatura e pensar que já pensei tanta asneira a teu respeito...sou uma idiota.
--Nesse caso, sim.
Gargalhadas.
--Mari, Mari, a tia Naya chegou.
Bruno interrompeu a conversa das adultas irrompendo na sala aos pulos.
--Tia Naya, que bom que veio. Quero muito passear e a Mariana também.
A criança beijou Nayami com tanto carinho e ela sentiu seu coração pulsar de felicidade.
A menina entrou na sala, mas de forma mais tímida.
--Olá tia Naya. Posso ir assim?
--Estás linda meu amor, lindíssima.
--Estás mesmo muito bonita Mari. - Corroborou Raquel. - Crianças, não preciso repetir...
--Já sabemos tia, temos que obedecer à tia Naya, não pedir nada e muito menos correr sem olhar para os lados.
--Exatamente. Comportem-se para que ela possa ter vontade de sair novamente convosco.
--Sim. - responderam em uníssono.
Elas distraíram-se por instantes e Raquel tentou entregar algum dinheiro a Nayami que recusou veementemente.
--Nayami...
--Nem pensar. Estas doida? Eles são meus convidados.
--Mas essas pestes são terríveis, podem pedir coisas...
--Elas estão por minha conta...com certeza não pedirão nada que eu não possa dar e se pedirem, direi, para isso não tenho dinheiro, simples assim...não compliques as coisas ok dona Raquel.
--Ok. Já percebi que é mais teimosa do que eu...obrigada Naya.
--De nada sua chata. Antes que anoiteça estarei de volta com o teu tesouro.
Raquel sorriu e Nayami chamou as crianças que prontamente apareceram na sala.
Depois de muitos beijos e abraços à tia, o trio deixou o apartamento para uma tarde de aventuras.
**********
Ao sair com aquelas crianças, Nayami não tinha a menor noção que poderia experimentar um leque variado de emoções. Sentiu alegria, tristeza, vontade de abraçar forte, vontade de ser abraçada com mais força ainda...esteve presente, esteve longe, voltou a ser criança e teve que muitas vezes ser adulta...tanta coisa em algumas horas e o balanço era extremamente positivo.
A alegria dos pequenos ao chegarem a um parque de diversões deixou Nayami extasiada. Eles jamais tinham estado num lugar igual àquele. O deslumbramento do pequeno em particular era contagiante. Passado o medo de algumas atrações mais radicais, eles quiseram experimentar tudo e ela os acompanhou em absolutamente tudo. A sensação era de voltar a ser criança...a sensação era de ser criança pela primeira vez pois quando tinha a mesma idade dos sobrinhos da Raquel vivia de casa em casa e ninguém tinha muito tempo para ensiná-la a ser criança.
Cansados e muito felizes, decidiram que já era hora de comer.
--O que querem comer? - Perguntou Nayami sorrindo.
A menina olhou para o menino que olhou para o chão e depois para ela.
--Hmmm?
--Tia, pode ser hambúrguer? - Perguntou o menino à voz miúda.
--Por favor tia Naya... - Suplicou a menina.
--Claro que sim. Podem comer o que quiserem, ainda mais que sei que em casa vocês nunca comem essas coisas...
--Nunca tia Naya. A avó Dina até costuma nos levar um lanche desses, mas raramente e elas nunca têm tempo para nos levar a passear...
--Hoje vamos comer hambúrguer. Mac ou Burger?
--Burger! - Gritaram juntos.
--Ok, Burger King e eu também vou comer um hambúrguer gigante.
Risos felizes.
**********
O lanche foi mais um momento de reflexão e êxtase para Nayami. Adorava o universo daquelas crianças, que simultaneamente lhe causavam uma imensa alegria e também alguma tristeza. A tristeza não era exatamente por elas, mas era mais um refrescamento de memórias antigas...dores que julgava ultrapassadas..., mas não, estavam ali escondidas dentro dela, á espera de um vento que as acordasse...
--Tia Naya, estou tão feliz... - Sorriu Bruno com aquele olhar meigo e cativante.
--Porque meu amor?
--Por tudo que aconteceu hoje. Eu sempre quis brincar num lugar como aquele que fomos, mas nunca tinha ido...já brinquei nos parquinhos do bairro, mas não é a mesma coisa...e até ganhei um dinossauro na maquina.
A inocência da criança fez pulsar o coração de Nayami.
--Tia, eu também adorei. Eu já tinha estado num parque, mas não tão gigante como este...foi quando tinha 7 anos e andava na ginástica, fomos a Braga e lá tinha um parque...eu gostei mais desse e também gostei porque brincaste connosco e também porque ganhei o sapo na máquina.
Nayami sorriu com os lábios e com a alma. Estava feliz. Feliz por ela e feliz por levar alegria àqueles pequenos seres.
--Que bom meus meninos. Vamos repetir outras vezes, querem?
--Simmmm. - Gritaram num entusiasmo desconcertante.
--Mari, gostas de ginástica?
--Muito, é minha maior paixão.
--Ela é chata, mas é muito boa nas acrobacias tia Naya.
Risos.
--E tu Bruno, gostas de quê?
--Jogar futebol na relva e jogar no tablet da tia Raquel.
Risos.
--Mas a tia Raquel não deixa ele jogar por muito tempo. Eu tenho o meu tablet que meu padrinho ofereceu-me, mas também só posso jogar aos finais de semana e às vezes nem isso...
--Sim, porque temos de estudar...
--Exatamente, têm mesmo de estudar. Há tempo para tudo, estudar e brincar.
--Nós estudamos numa escola um pouco longe de casa. A tia Kela diz que é para o nosso futuro...
--O que é futuro tia Naya? É amanhã?
Nayami sorriu diante daqueles olhinhos carregados de duvidas.
--Pode ser..., mas a tia quando diz futuro é algo mais longe ainda, ela quer dizer quando crescerem.
--Hmmm, mas eu quero ser jogador e a Mariana atleta. Precisa estudar para isso?
--Muito. Estudar e com dedicação. Precisamos estudar sempre.
Mariana de repente ficou levemente cabisbaixa e Nayami logo percebeu.
--Está tudo bem Mari? Não gostaste do lanche?
--Eu adorei. - Respondeu Bruno sentando-se no colo de Nayami que o abraçou.
--Gostei muito tia...
--Eu sei porque ela está assim...
--Bruno, cala a boca.
--É segredo Mari? - Perguntou Nayami brincando no cabelo da menina.
Ela limitou-se a olhá-la com uma profunda tristeza no olhar.
Bruno não se conteve por muito tempo...
--Tia, ela está triste porque não vai para a escola de ginástica.
--Bruno. - A menina começou a chorar com raiva.
Nayami rapidamente a acalmou com um abraço e palavras de conforto. Bruno também fez-lhe um carinho na cabeça.
Em minutos Mariana parou de chorar.
--Desculpa...pareço uma pirralha como esse chato do Bruno...
--Mas eu não chorei... - Replicou Bruno com os braços cruzados.
Nayami controlou-se para não rir.
--Queres contar-me o que te deixou triste? - Ela falou num tom tão acolhedor que a menina não hesitou em abrir o seu coração.
--Eu adoro ginástica tia...é minha maior paixão. - Os olhos brilhantes dela não deixavam margem para qualquer duvida.
--Que bom Mari.
--Ela é muito boa tia...ela voa, tem muita força, faz umas coisas que me dão medo, parece que vai cair, mas ela não cai...
--Tenho técnica Bruno, treino muito para isso.
--Naya, a Mariana está triste porque ela não vai mais frequentar a ginástica...
--Porquê Mari?
--Porque passei de nível, agora vou para um clube muito bom, o melhor do país e minha família não tem condições... - Ver aquela criança falar num fio de voz e com aquele olhar tão triste, transportou Nayami para a sua própria infância. Pareceu-lhe um redemoinho...de repente tinha 9 anos e estava algures na Holanda...tantos sonhos solitários...tantas vontades frustradas...tanta carência de afeto..., mas poderia ter sido pior, muito pior...tinha que pensar assim...tinha que pensar exatamente assim...e crescera, era adulta, agora controlava a sua própria vida...seus sonhos e poderia ajudar aquela menina a continuar o seu...claro que poderia.
--Tia Naya...
--Sim meu bem...
--Parece que estás triste também...- Bruno acariciou-lhe a face.
--Nada disso meu amor, estou bem...Mari, quando começam os treinos?
--Dentro de quinze dias...minha avó quer que eu vá, mas a tia Kela é que controla a parte do dinheiro lá em casa e eu ouvi...
--Tu não, eu ouvi. - disse Bruno com autoridade.
--Claro que foste tu, o único que escuta atrás das portas.
Mais uma vez Nayami controlou-se para não soltar uma sonora gargalhada.
--O Bruno ouviu a tia dizer que estamos sem dinheiro para gastar com coisas sem importância...- A fragilidade no tom de voz daquela menina de 11 anos comoveu Nayami. Precisava fazer alguma coisa...
--Não fiques triste Mari...acredite no teu sonho e deixa o resto para lá...depois mostras-me os teus movimentos?
--Sim, com muito prazer. Só preciso me aquecer um pouco.
--Ela faz cada coisa tia...parece que não tem osso...
Risos.
--Técnica Bubu, apenas isso...e muito treino. - Disse a menina com propriedade.
A partir daquele momento e até entrarem no metro a caminho de casa, a conversa girou em torno de ginástica, acrobacias, treinos, técnica.
Nayami não tinha mais duvidas, a menina adorava ginástica acrobática. O brilho nos olhos, a ansiedade nas palavras, o medo de não poder seguir com o sonho, tudo corroborava a paixão da pequena.
No metro, Bruno adormeceu no colo da irmã e Nayami notou o semblante preocupado da menina a viagem inteira. Era inconcebível uma criança daquela idade com uma aflição tão gritante no olhar. Ela tinha que fazer alguma coisa. Não seria fácil porque Raquel alem de orgulhosa às vezes era intransigente, mas tentaria de alguma forma derrubar aquela muralha.
**********
Valentina entrou em casa com a mesma sensação que a acompanhava há alguns dias. Não sabia bem o que era, mas o facto era que voltar para casa ultimamente era sinónimo de bem-estar. Sorriu ao imaginar o sorriso de Nayami. Sim, ela sempre a recebia com um sorriso quando estava em casa. Muitas vezes não estava por causa do trabalho, mas quando se encontrava era sempre recebida com um sorriso e perguntas corriqueiras que a agradavam e que transformavam um dia comum e muitas vezes chato, em algo muito melhor.
Não sentiu o cheiro dela o que significava que não estava em casa, mas voltaria em algum momento e isso já era motivo de alegria.
Tomou um banho rápido, fez algumas coisas triviais e preparava-se para pedir algo para o jantar quando ouviu um sinal de mensagem no telefone.
"Olá Valentina, espero que teu dia tenha sido perfeito. Sei que não estás à minha espera, mas aviso que hoje não durmo em casa. Está tudo bem. Nos vemos amanhã. Nayami."
Com o telefone nas mãos por largos minutos, releu aquela mensagem inúmeras vezes. Outra sensação nova...vazio. Nem tão nova assim, mas nos últimos dias o vazio não fazia parte do leque de sensações que a acompanhavam ao longo da jornada.
Releu mais uma vez e com um longo suspiro deixou o aparelho sobre a mesa da cozinha e dirigiu-se à sala de estar.
Estava irrequieta e não sabia exatamente porquê. Quis perguntar algumas coisas a Nayami, nomeadamente onde estava, mas sabia que não tinha direito de agir assim...não tinha.
"Olá Nayami. Tudo bem. Até amanhã. Valentina."
Foi a sua resposta. Queria ter dito outras coisas, mas não cabiam...
Vagou pelo apartamento, ouviu musica, mas a impaciência permanecia.
Pegou no telefone e convicta ligou para Silene.
**********
A alegria imperava em casa de Raquel. Após o relato entusiasmado das crianças do que tinha sido o passeio com a tia Naya, agora dançavam. Melhor, Raquel dançava e Nayami olhava admirada.
Raquel, com a ajuda de Nayami e Mariana, tinha transformado a sala de visitas numa pista de dança e nela reinava linda e soberana.
--Vem Naya, vamos dançar.
--Deus me livre criatura, eu sou dura...olha para isso, esse quadril...mulher, tu nasceste para isso.
Risos.
--Não é possível que não saibas dançar. És ou não és uma crioula da gema criatura? Mas também com essa falta de melanina...
Gargalhadas.
--Tia, dança Melanin para a Naya ver.
--Sim quero ver. Tu danças divinamente Raquel...estou extasiada.
--Ainda não viste nada tia Naya...tia Kela é uma estrela, só que escondida.
--Deixa de asneiras e procure logo essa musica sua pirralha deslumbrada. - Raquel fingiu-se irritada, mas a verdade é que estava muito feliz.
A menina mexeu no computador da tia e em segundos a sala foi invadida pela melodia de Melanin de Sauti Sol.
Raquel deu um show de sensualidade e técnica, deixando Nayami de boca aberta e todos os sentidos em alerta. Começou a mexer o corpo querendo fazer a mesma mágica que aquela mulher fazia, mas era completamente impossível.
Raquel transformava-se. A postura era outra, altiva, elegante, senhora de si e domínio total de todos os movimentos...e a sensualidade...não, aquilo não poderia ser apenas um hobby.
A pequena também dançava e muito bem, claro que sem a sensualidade e técnica da tia, mas dançava lindamente. Até o pequeno se aventurava...a dança estava no DNA daquela família, definitivamente.
--Vem dançar connosco Naya. -Pediu Bruno puxando Nayami para o meio da pista.
--Nãoooo, eu sou uma nulidade...
--A tia Kela te ensina. Vem. - O menino puxou-lhe o braço com maior convicção.
--Vem Naya, eu ensino-te. - Raquel sorriu e Nayami entrou na onda da dança.
--Gostas de dançar o quê Naya?
--Qualquer coisa que me deixe livre na pista e que não exija muita coordenação motora..., mas devo confessar-vos, adoraria saber dançar quizomba, acho sensual...sei la...eu gosto de ver...
--Tia, posso escolher uma musica para ensinares a Naya a dançar quizomba?
--Agora Mari.
--Meu Deus...sou dura...não danço há muito tempo...
--Nos meus braços ficas leve...
--Aiii que nervoso...
A menina escolheu Break of Dawn de Nelson Freitas e Raquel bateu palmas. Os pequenos seguiram a sua própria coreografia enquanto Raquel enlaçava Nayami nos braços convidando-a a uma viagem sensual.
Dura? Nada disso. Nayami dançou muito bem. Poderia não ter a sensualidade palpável de Raquel, mas deslizou na pista como uma pluma nos braços da amiga.
Palmas foram ouvidas mal a musica terminou e Nayami escondeu a cara com vergonha.
--Tiiiia, tu danças muito bem. - A menina pulava na ponta dos pés cheia de entusiasmo.
--Muito bem. Eu estou pasma com a ginga dessa mulher...branquela, tu és wow...está no sangue.
--Ah para Raquel...não danço há muito tempo...adorei a musica, muito obrigada Mariana, excelente escolha.
--Aqui em casa todo mundo é estrela na dança. Precisas ver a minha avó a dançar o batuque e o funaná, ela arrasa.
--Mari, repeat please, quero dançar mais um pouco com esta falsa que esconde muito bem o jogo. Ainda por cima é gostosa e cheirosa.
Gargalhadas altas.
Mais uma vez dançaram aos pares, Naya e Raquel, Mariana e Bruno. Só alegria.
Terminaram a sessão musical de ritmos variados pulando ao som de Algo Contigo, Gente de Zona.
**********
--Esse vinho é um afago no paladar...Hmmm, há muito tempo não provava algo tão bom. -Silene fechou os olhos saboreando o aroma inconfundível de vinho.
--Sabia que aprovarias...
--O que aprovei mesmo foi o convite...há séculos que a senhorita não me chamava para noites de vinho e conversa...adorei.
Valentina sorriu um pouco nostálgica. Momentos assim eram frequentes quando era feliz ao lado de Daniel. Sempre que ele se ausentava por períodos mais longos, Silene, Damarys e uma ou outra amiga a acompanhavam em noites de vinho e risos. Desde que ele se fora, ela nunca mais tivera disposição para momentos de descontração. Passara a preferir a reclusão, o silencio e suas dores...
--Esse vinho não poderia esperar muito, e tu és excelente apreciadora, então...
--Só por isso? Meu deus ai meu ego...
Risos.
--Não, claro que não. És das melhores companhias que eu conheço...
--Melhorou. E por falar em excelente companhia, a Nayami está a trabalhar? Ela seria uma mais valia para risadas e afins...
--Não...
--Não o quê? Não concordas com o que disse sobre a Nayami?
--Não, concordo sim...
--Então?
--Não, ela não está a trabalhar...foi dormir fora...
--Hmmm, entendi. A Nayami que chegou aqui outro dia já tem um namorado e já dorme fora, só a Silene que não consegue nada...Valentina eu estou acabada, confessa.
Gargalhadas.
--Parva. Tu és linda, apenas acho que não miras no alvo certo...sei lá, tu queres um príncipe encantado de conto de fadas, isso não existe minha amiga...
--Eu quero um homem lindo, atlético, companheiro, bem-sucedido, que me ame muito...
--Conto de fadas.
--Mas tu não tinhas um homem assim?
Valentina bateu levemente com a cabeça. Daniel estava longe de ser o homem perfeito, mas aquilo não era assunto para aquele momento.
--Continua a tua saga, quem sabe um dia não és agraciada...quem sabe.
Risos.
--Já conheceste o namorado da Nayami? Ele é lindo como ela?
Valentina mordeu o lábio denotando algum nervosismo cujo motivo estava longe de entender.
--Não...nem sei se ela tem namorado...
--Dormiu algures...sim, mas não temos nada a ver com a vida da tua hospede.
--Exatamente.
--E como estão as coisas por aqui? Dessa vez parece-me tudo muito melhor...
--Sim...deixei de ser idiota e intransigente e a Nayami é...
--É?
--Ela é encantadora.
--Salve minha Nossa Senhora das pessoas de noção, ela acordou meu Deus, ela acordou.
Valentina arremessou uma almofada na amiga que fartou-se de rir.
--Ela achava que não teria assunto para conversar comigo e, no entanto, eu tenho aprendido muitas coisas com ela...temos aprendido juntas...às vezes ficamos horas à conversa e o tempo voa sem que percebamos...ela é engraçada, espontânea...
--Gostas dela...aprendeste a gostar...
--Sim, ela é sobrinha de Lola, era o mínimo que poderia fazer...confesso-te, não doeu nada...
Silene sorriu feliz. A felicidade abrangia muitas coisas...o momento...o resgate de coisas boas há muito esquecidas...a troca com a amiga de quem gostava demasiado..., mas a felicidade maior era perceber que a Valentina moribunda estava a ficar esquecida...o sorriso brilhante e espontâneo já aparecera muitas vezes naquela noite, o sentido de humor também...as risadas...o franzir de sobrancelha em sinal de desacordo, o atirar de almofadas...muitos motivos para sorrir.
Bendito o regresso de Nayami àquela casa, bendita Nayami na vida da amiga.
**********
--Naya, desculpe essa cama que mal cabe nós duas...
--Eu estou muito bem.
--Sei, muito bem quase caindo para o lado.
Risos altos.
--É sério, estou bem. Não sou muito espaçosa, se a senhora não me chutar e muito menos cair em cima de mim durante a madrugada, terei uma esplendida noite de sono.
Risos abafados.
--Não te preocupes, eu sou uma pedra. Onde caio não me mexo, a menos que esteja com a cabeça agitada...
--E a cabeça como está?
--Calma...
--Raquel, não queres fazer nada com esse teu inegável talento para a dança?
Silêncio.
--Raquel...
--Oi...
--Então...tu és maravilhosa a dançar mulher e sabes disso, tens técnica, elegância, sensualidade...és perfeita.
--Gosto de dançar...desde menina, e a técnica ganhei nos muitos anos de ginástica...
--Nota-se pela tua graciosidade, pela leveza e precisão dos movimentos...ah Raquel, tu és maravilhosa menina, maravilhosa.
--Obrigada.
--E então, não vais fazer nada com esse talento?
--O quê por exemplo?
--Dançar, ser professora de dança, dar aulas numa academia, coreografar espetáculos, fazer parte de um espetáculo...vi que quizomba está muito na moda aqui em Portugal, que tal mostrar ao mundo que és uma das melhores nessa arte?
--Ah Naya...
--Sim?
--Falas como se tudo fosse muito fácil...
--Já tentaste?
--Sim...algumas vezes e nunca consegui...
--Tentaste o quê?
--Não ria de mim...
--Jamais...diga...
--Quis fazer parte do corpo de bailado do espetáculo de um cantor cabo-verdiano que está muito em evidencia nos PALOP. Ele faz grandes espetáculos aqui, em Angola e não só...não consegui...
--Não deve ser muito fácil, mas e outras tentativas?
--Já tentei dar uma aula demonstrativa numa academia, em várias na realidade, mas nunca me chamaram...
Mesmo na penumbra do quarto, Nayami sabia qual era a postura de Raquel. De derrota, de subserviência, falta de confiança...ninguém jamais daria uma chance a alguém com essa postura.
--Sabes que tens talento, não sabes?
--Sei...
--Mas também deves saber que apenas talento muitas vezes não é o suficiente. Temos que ser bons e mostrar que somos bons. Autoconfiança, entendes?
--Sim...ah, quem sabe minha vida não é passar o resto dos meus dias atrás de um balcão?
--Só será assim se quiseres e é claro que não queres. Nasceste para brilhar Raquel.
--Na tua boca tudo parece tão fácil...
--E não precisa ser difícil...só precisamos tentar e tentar e tentar até que dê certo.
--Fui uma excelente ginasta...no auge dos meus 16 anos...
Raquel mesclava tristeza com alegria.
--Muitas medalhas?
--Muitas. Muitas viagens, muitas aventuras...muitos tombos...
Risos.
--Muitas alegrias, suponho...
--Inúmeras...e muitas frustrações também...
Agora ela tinha os olhos húmidos.
Nayami sabia que era o momento certo para abordar a questão Mariana.
--Raquel, a Mariana tem o teu talento...
--Não, ela é muito melhor...minha menina é um fenómeno...
--Raquel, peço desculpas por intrometer-me na tua vida, na vossa vida...nem sou disso, mas não consigo ficar parada diante de obstáculos contornáveis...
Raquel ergueu a cabeça apoiando-a num braço e encarou Nayami expectante.
--A Mariana contou-me do clube novo de ginástica...
--Essas crianças...foi coisa do Bruno, não tenho duvidas...
--Isso não interessa...ela não vai prosseguir no sonho de ser campeã olímpica por problemas financeiros...eu posso ajudar...-- concluiu a frase num fio de voz, conhecia Raquel...
--Nayami, essa questão é nossa...eles não tinham o direito...
--São apenas crianças e com muitos sonhos...ah, e talentosas...permita-me ajudar, por favor...
--Nayami...
-Quisera eu ter tido alguém disposto a me ajudar quando tinha meus 9 anos...
Foi a vez de Nayami ficar com os olhos rasos de agua.
--Naya...o que aconteceu?
--Longa história e com final nada feliz...um dia eu te conto..., mas queria ser patinadora de gelo...tinha talento...muito...outros tempos...passou...deixa-me ajudar a Mariana, por favor.
Raquel suspirou profundamente.
--Eu nem sei quanto vai custar essa loucura toda...não temos condições de arcar com mais gastos...eu e a minha mãe já fazemos muito e a desgraçada da minha irmã nem se lembra que pariu essas duas crianças...
--Podemos ir ver os detalhes, juntas?
Nayami sorriu.
--Quem resiste a esse sorriso mulher? Quem?
--Espero bem que tu não sejas imune ao meu charme.
Risos.
--Alguém no planeta terra consegue ser? Duvido.... Ok, dona Nayami...prometo pensar nisso...
--Não demores muito, a Mari só tem 15 dias para decidir...
--Meu Deus, tu és persistente...
--Hum-hum...muito.
Risos abafados.
--Ok. Palavra de Raquel. Mas só vamos ver as condições financeiras, se for um absurdo eu não aceito nada e a Mariana terá de se conformar...
--Ok, prometo.
Nayami sorriu confiante. Tinha certeza que ganhara aquela batalha.
--Agora vamos dormir dona Raquel porque amanhã trabalho das 11 às 17 e já passa das duas...
Risos.
--Sim senhora. A senhora manda...
Algum tempo depois, Nayami já estava no limbo...
--Naya...Naya...
--Hmmm...
--Obrigada. Acho que precisava de uma amiga como tu...nem sei se mereço, mas se Deus te colocou na minha vida...então, obrigada...
Palavras sussurradas...saídas do coração de uma mulher um bocado crua...com marcas da vida...palavras com uma verdade palpável, o elo agora era incontornável.
Sonolenta, Nayami sorriu e abraçou a amiga. Adormeceram profundamente em minutos.
**********
Nayami entrou em casa com muita energia. O dia no trabalho tinha sido tranquilo e agora tudo o que queria era sair para correr no parque. Estava feliz com o desfecho da conversa com Raquel. Tudo faria para ajudar Mariana na prossecução do seu sonho.
Tinha certeza que estava sozinha em casa. Era cedo demais para Valentina ter voltado do trabalho. Sorriu ao constatar que estava feliz por estar de volta...aos poucos, aquele apartamento ganhava contornos de lar, do seu lar.
Sorria ao passar perto da cozinha quando foi surpreendida por uma voz inconfundível.
--Olá.
Nayami especou na porta. Abriu o seu melhor sorriso e para espanto das duas correu em direção à Valentina.
Parou por segundos...escassos segundos. Abraçou-a, sem hesitar. Agora não sorria, ria alto.
Valentina sentiu-se baralhada. Ficou parada no abraço sem coragem para retribuir.
--Tiveste saudades minhas? - A pergunta veio com uma naturalidade desconcertante.
A resposta seguiu no mesmo ritmo.
--Sim. - Sem pestanejar.
Sorrisos.
Um beijo na bochecha...singelo, mas que provocou uma onda de calor...
O calor serviu de combustível e Valentina esqueceu de ser fria e distante...frieza estava longe de combinar com o calor que lhe ia na alma.
--E tu? - Perguntou olhando dentro dos olhos de Nayami que eram o perfeito reflexo dos seus.
--Muitas...acho que pensei em ti até na hora de dormir...
A espontaneidade era a melhor arma daquela mulher.
Sorrisos seguidos de risos.
Nayami saiu correndo. Valentina sentiu algo como vazio..., mas não poderia ser...não poderia.
--Preciso ir, estou atrasada.
--Vais sair?
--Vamos.
Gritou já fora da cozinha.
Valentina levou as mãos ao peito e sorriu. Sentiu-se quase a flutuar...os pés estavam longe do chão...
--Essa menina é um furacão.
Sorriu sozinha indo atrás de Nayami.
**********
--Eu não acredito que me convenceste a correr no parque à noite...ah menina...
Risos.
--Não gostas de correr?
--Sim, mas nunca à noite...corro mais num tapete na academia...
--Com o Tejo à tua frente? Pelo amor de Deus...vamos correr sempre por aqui...aceitas?
Valentina sorriu. Teve vontade de dizer uma insanidade, mas calou-se a tempo.
--Quando nossos horários se cruzarem...
--Ah, mas isso não é problema...se não for de noite, pode ser de manha...logo cedo, adoro também...aceitas?
--E eu lá tenho escolha?
--Não. Mas diga lá, não é bom correr ao meu lado e com o Tejo como cenário?
Valentina teve vontade de rir às gargalhadas e não era a primeira vez.
--É muito bom...o Tejo é um encanto e a senhorita uma inspiração.
--Wow! Quem nos viu quem nos vê...Lola haveria de ficar muito feliz.
Valentina sorriu...sim, Lola haveria de ficar muito feliz.
--Vamos dona Valentina. Ainda precisamos nos alongar e estou com fome.
Nayami puxou Valentina pelo braço e seguiram correndo pelo deck de madeira do parque.
**********
Nayami já estava na cama ouvindo um pouco de musica antes de dormir. Sentia-se muito bem. Leve, acolhida...
Sorriu abraçando uma almofada. Fez uma retrospetiva. Tinha sido tão difícil no inicio, ali mesmo naquele quarto que agora a abraçava, já chorara noites a fio sentindo-se sozinha, dolorida e agora aquela paz.
Rolou na cama sorrindo. Aos poucos, suas dores iam ganhando outros contornos e já não a atormentavam tanto...
Teve sede e saiu para buscar água.
Com o copo na mão, viu luzes no lounge. Valentina. Ela sempre ficava acordada até tarde...insónia, dissera.
Não queria incomodá-la, mas algo mais forte do que o bom senso carregou-a até á porta do lounge.
Lá estava ela. Sentada de costas, mexendo no laptop e ouvindo musica...ah, uma chávena de chá por perto.
Nayami sorriu. Entrou sem fazer muito barulho, mas seria impossível ouvi-la, estava descalça e andando ora num chão de madeira ora num tapete felpudo.
Ficou atrás de Valentina que continuava pesquisando alguma coisa no computador, alheia à sua presença.
Sem pensar muito, colocou as duas mãos nos ombros dela.
Calor...intenso.
A cadeira era giratória, Valentina virou e ficou de frente para ela.
--Desculpa...não queria desconcentrar-te...
--Não...tudo bem...- Sim, Valentina estava desconcentrada, ou seria desconcertada...desorientada, talvez...
Nayami ajoelhou-se.
--Fui beber água, vi luz aqui e vim ver se estavas bem...
--Hum-hum...a trabalhar um pouco à espera que o sono venha...
--O exercício físico vai ajudar...funciona comigo...bom, não quero roubar tua concentração...só queria desejar boa noite...mais uma vez. - Sorriu de forma encantadora. - E dizer...
Parou um pouco, não tinha certeza de muita coisa...
--E dizer...
Falavam baixinho, quase sussurrando ainda que sem intenção.
--Dizer que estou feliz em viver aqui contigo, que jamais passou pela minha cabeça que pudesse ser assim e...obrigada.
Nayami falou tudo muito depressa deixando Valentina sem respirar.
--Boa noite. Vou dormir.
Ia saindo, mas decidiu voltar.
Beijou Valentina demoradamente na cabeça e depois numa das mãos e...foi embora.
Valentina não respirava.
Recuperou o ar de sofreguidão.
Traces cantava Hypnotized...nada mais perfeito para aquele momento.
Recuperada, Valentina saiu da inercia e andou pela sala.
Encostada na janela com a vista para o parque pensava muita coisa e nada ao mesmo tempo.
--Não sei se estou feliz...não sei..., mas sei que há muitos dias que minhas dores não me atormentam...
Sorriu.
--Furacão Nayami...é bom ter-te aqui...sim, é muito bem ter-te aqui.
Mais um sorriso.
--Vou dormir...agora o sono vem...
Fim do capítulo
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Veka
Em: 14/06/2020
Ida ao parque, comer hambúrguer!!!! Que saudadeeee!!!! Aumentou a saudade do meu sobrinhoooo...
Uma dorzinha pela Mari, desde a conversa entre a Raquel e a mãe dela.
Kkkkkkk.... A dinâmica Bruno e Mari é ótima!
Amizades são uma das riquezas da vida!
Ainn que fofa a Naya chegando em casa!
É muito difícil não nos apaixonar pelas suas personagens...
Nada como um evento da natureza para mudar nossas vidas, né Valentina?
Beijos....Rosie
Em: 07/09/2019
Olá autora querida
A Naya é um anjo, tinha tudo pra ser amargurada infeliz, mas não, quer ajudar a Mari, não quer vê-la frustrada, isso a remete a sua própria infância que não foi nada fácil, a falta do dinheiro é ruim claro, mas a falta de amor e carinho é muito triste e deixam marcas profundas
Bjs NH
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Aurelia
Em: 30/08/2019
"O elo agora era incontornável" amizade linda da Naya com a Kela, quem planta amor como a Nayami acaba por colher também, tudo bem que a vida as vezes dá uma derrapada aqui e ali, mas vai se ajeitando. Naya tem uma espontaneidade que deixa Valentina desconcertada e sem reação, mas não deixa de embarcar na ousadia pois está na mesma vibe tanto que as dores estão deixando de atormentá-la e a alma está aquecendo. Que tenha mais de Valentina humana e feliz pela frente.
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brunafinzicontini
Em: 25/10/2018
Não há como deixar de se encantar por uma pessoa tão carismática como Naya! Que ser humano adorável! Atitude nobre querer ajudar Mari, muito embora não esteja em situação exatamente folgada.
Adoro a espontaneidade de Naya, a explosão de sentimentos que ela demonstra com a maior naturalidade! É realmente um sol a aquecer a frieza da vida de Valentina, um sopro de ar puro na aridez de um deserto! Muito lindo o capítulo inteiro, Nadine. Realmente revelador desse belo ser humano que és tu.
Beijos
Bruna
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Thai_muniz
Em: 24/10/2018
Você sempre maravilhosa, né? Que escrita perfeita a senhorita tem. Encantador e único!
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maria lucia
Em: 23/10/2018
Valentina e Nayami estão se descobrindo!Há revista da Valentina poderia patrocinar a Mari.
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