Brasília, Outubro de 2018

Alex andava de um lado para o outro pelo seu antigo quarto. Suas mãos tremiam de tensão e o calor fazia seu corpo suar descontroladamente.

- Eu tinha me esquecido o quanto essa cidade consegue ser quente – a menina enxugava o pescoço com um lenço improvisado pelo pai. – Por que a Júlia não atende o celular nem responde minhas mensagens? Vou me desintegrar antes que ela chegue aqui.

- Já disse pra você ficar tranquila, a Natasha está cuidando da Júlia – Eduardo entregou o terceiro copo de água que Alex esvaziou com alguns goles. – Seu nervosismo não está ajudando, filha

- Eu sei, mas não consigo evitar, afinal é o meu casamento e levando em conta o histórico da minha vida, as chances de alguma coisa dar errado são enormes – Alex abriu a janela e colocou a cabeça para fora olhando o céu em busca de qualquer sinal de tempestade.

- Venha aqui, tudo está sob controle – Eduardo puxou a filha para perto de si e a acolheu em um abraço. – Você cresceu e se tornou uma gigante, filha. Eu não consigo acreditar que hoje é seu casamento, parece que foi ontem que vocês chegaram aqui colocando essa casa silenciosa abaixo.

- Pai, eu nunca agradeci por você ter nos recebido e por toda paciência e dedicação que teve conosco. – Alex olhou para o quarto que permanecera intacto como da última vez em que dormira nele. – Sei que não foi fácil ser pai de adolescentes que pulavam a janela e te mandavam para SPA relaxante na esperança de esvaziar a casa. Mas se não fosse por você nada disso estaria acontecendo agora. Morar aqui foi o que me fez acreditar que eu podia deixar para trás o que aconteceu no Canadá. E eu não teria conseguido superar sem você.

- Pare com isso, não quero chorar antes de te deixar no altar – Eduardo pegou o lenço de Alex para secar as lágrimas indiscretas. – E que história é essa de me mandarem para um SPA?

- A Natasha é realmente muito boa no que faz – Alex lembrou-se de quando a irmã arquitetou o plano e garantiu que o pai nunca descobriria. – Mas vamos deixar isso pra lá, o importante é que agora estamos aqui esperando um céu que pode desabar no meu casamento.

- Alex, você planejou esse dia com tanto amor e cuidado, agora é hora de confiar e acreditar no seu trabalho.

- Tem razão, pai. Você está certo, a Natasha está cuidando da Júlia e elas estão seguras. – Alex tentou conter a preocupação que assolava sua vida desde o ataque. Recomeçar não estava sendo fácil para nenhuma das três, todas as noites o som dos tiros invadia seus sonhos e as acordavam aos gritos - Preciso me acalmar antes que eu derreta.

- Ótima ideia, lembre-se que você não tem uma madrinha para refazer sua maquiagem.

- Mas eu tenho você – Alex aceitou outro copo de água. - Obrigada por aceitar ser meu padrinho, por estar aqui comigo e principalmente por nos ajudar a controlar a Natasha.

- Não foi uma tarefa fácil, as ideias da sua irmã são completamente birutas.

- Natasha é um ser muito à frente do nosso tempo, pai – Alex disse pensando que uma estátua de gelo agora seria a solução para metade dos seus problemas. – Nós não estamos preparados para entendê-la.

- Você não sabe a alegria que me dá ao ouvir isso, little sis – Natasha abriu a porta do quarto e surpreendeu a irmã. – Aposto que agora vocês estão arrependidos de não me deixarem contratar aquele coral de música holandesa, são eles que estão fazendo falta nesse casamento.

- Definitivamente um coral holandês faria toda diferença agora, mas caso você não tenha reparado o que realmente está faltando aqui é a minha noiva – Alex tentou ligar outra vez e bufou quando a ligação caiu na caixa de mensagem. – Não consigo falar ela.

- Ahnn, você é péssima com rituais – Natasha tirou o celular da mão de Alex e entregou para o pai. – E você é um péssimo padrinho, te falei para não deixar que ela ficasse com o celular. As noivas não podem se comunicar antes da cerimônia, e é por isso que ela não está atendendo.

- Isso é ridículo – Alex tentou tomar o aparelho, mas foi impedida pelo pai após a bronca de Natasha assumira o completo papel de padrinho. – Eu preciso saber como ela está.

- Alex, é o casamento dela, é claro que ela está bem – Natasha disse como se fosse o óbvio – Quer fazer o favor de se acalmar e me ouvir? Quanto antes começarmos a cerimônia, mais cedo você poderá vê-la. E além do mais, a mãe está sentada na mesa do Tiago e da Lara e está se esforçando para entender o que nós somos. Ela foi convidada para presenciar o seu casamento e não para especular o meu estilo de vida, então, por favor, vamos começar logo.

- Mas como vamos começar sem a Júlia? – Alex perguntou alarmada.

- O cenário político atual e todas as discussões em que você se envolveu te fizeram perder muitos neurônios nos últimos meses, sis – Natasha disse impaciente. – Eu sou a madrinha da Júlia, isso significa que ela está pronta há horas. Vocês dois é que estão atrasando tudo – a DJ semicerrou os olhos para o pai. – Te disse para cronometrarmos nossos relógios, mas você achou que era exagero. Aposto que ficaram aqui relembrando o passado e perderam a hora, será que podemos ir?

- Agora??? – Alex se apoiou no pai.

- Está pronta? – Natasha perguntou segurando as duas mãos da irmã.

- Estou – Alex suspirou balançando os ombros para aliviar a tensão.

- Ótimo, vou buscá-la para você e a gente se encontra daqui a pouco. Não surte.

Natasha acompanhara Júlia até o jardim onde a cerimônia seria realizada e após deixá-la, assumiu a mesa de som de onde tocava a música escolhida a dedo para a entrada de Alex, uma homenagem as vítimas do ataque.

Can hold a gun and hold your heart, can put out fires and make 'em start. Skin and bones and flesh and blood with all this nerve how did we get this numb… (Podem segurar uma arma, podem segurar o seu coração, podem apagar incêndios e fazê-los começar. Pele e osso, carne e sangue, com todo esse nervo, como ficamos tão insensíveis?)

Alex de braços dados com o pai descia os degraus da escada que levava até o jardim onde Júlia esperava com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos.

They can hurt or they can heal, they can give back or they can steal. They can break the world or they can change it too. (Elas podem machucar ou podem curar, podem devolver ou podem roubar. Podem destruir o mundo ou podem mudá-lo também)

Eduardo tentava desacelerá-la, mas seus passos teimavam em ser cada vez maiores na expectativa de diminuir a distância que a separava de Júlia.

Ooh hands, hands. Woo hands, oh hands. They can love or they can take. They can fight up until they save, they can break the world. They can change it too. Ooh hands change the world (Oh mãos, mãos. Woo mãos, oh mãos. Elas podem amar ou podem tirar. Podem lutar até salvarem ou podem destruir o mundo. Podem mudá-lo também. Oh mãos podem mudar o mundo)

Júlia lutava para permanecer parada, controlando seus instintos de correr até Alex e se jogar em seus braços.

Doesn't matter who you love, all that matters is you love.(Não importa quem você ama, tudo o que importa é que você ama.)

Os momentos que viveram passavam como flashs em sua mente. Desde o dia que deixara seu estojo cair ao vê-la entrando na sala de aula, até a noite anterior, quando dormiram juntas e jurou baixinho, entre um gemido e outro, que ela era o amor da sua vida.

 I've been watching news and seeing all this hate, tell me is it wrong to want a little change (Acompanho as notícias e vejo todo esse ódio, me diga se é errado querer um pouco de mudança)

Natasha da mesa de som olhava para os convidados e podia sentir emanar deles toda a emoção que era estar ali.

If a million hands can build a wall a million hands can break it down (Se um milhão de mãos podem construir um muro, um milhão de mãos podem quebrá-lo)

Familiares, amigos, colegas de time, pessoas do presente e do passado, cachorros, todos emitiam a mesma vibração de esperança e amor que aumentava a cada passo que Alex dava para mais perto de Júlia.
 

Just take my hand baby, everybody's in love. All that matters is your love. Change it or break it. They can love or they can take it, take it all. If a million hands can build a wall, a million hands can break it down. (Apenas pegue a minha mão, baby. Todos estão apaixonados, tudo o que importa é o seu amor. Mude ou destrua. Elas podem amar ou podem tirar, tirar tudo. Se um milhão de mãos podem construir um muro, um milhão de mãos podem quebrá-lo).

Alex e Júlia finalmente estavam frente a frente, eram capazes de sentir a respiração uma da outra. Seus olhos se encontraram no momento em que a música parou e tudo ao redor parecia acontecer em uma velocidade menor.

- Senhoras e senhores – Valéria, a amiga que Júlia fizera na Turquia celebrava o casamento. – Estamos aqui nessa tarde quente para celebrar o casamento dessas duas mulheres maravilhosas. Não vamos nos alongar, porque apesar do sol escaldante, fui avisada que uma possível chuva se aproxima. Então vamos pular para a parte dos votos e, por favor, sejam rápidas. Júh, eu sei que você está super ansiosa, então pode começar.

- Alex, eu já te escrevi tantas coisas e eu até deveria ter medo de soar repetitiva, mas a verdade é que não importa quantas vezes eu te diga o quanto te amo, sempre que me lembro do seu sorriso, consigo pensar em infinitas maneiras de dizer isso e em nenhuma delas eu preciso repetir uma palavra. Sem nem precisar tentar, você é capaz de renovar, potencializar e transbordar tudo o que eu sei sobre o amor. E é por isso que hoje eu estou aqui, diante dessas pessoas para dizer que eu quero você. E eu quero porque foi você quem me tirou do eixo, você quem impulsionou meus planos, apoiou meus sonhos, entendeu meus medos, perdoou minhas fraquezas, me perdeu, mas me encontrou e desde então me cuidou, me protegeu e me amou. E estou aqui porque prometo te amar de volta todos os dias pelo resto da minha vida.

Júlia entregou o microfone a Alex, enquanto os convidados silenciosamente acompanhavam o momento que parecia acontecer apenas entre as duas.

- Hoje é o dia mais feliz da minha vida, eu sonho com isso desde as nossas tardes no parque, quando ainda não tínhamos noção da proporção que nosso relacionamento tomaria – Alex fez uma pausa enquanto tomava fôlego e olhou para os convidados. - Sabe, talvez eu não devesse falar sobre isso agora, porque é o nosso casamento e o meu amor por você é a única coisa que deveria estar em questão. Mas eu preciso que você e todos os presentes entendam o que significa estar aqui segurando suas mãos, entrelaçando sua vida com a minha. Antes de entrar por esse corredor eu estava aflita com a possibilidade de não te encontrar no final dele, eu sei que não deveria mais sentir isso, afinal nós já passamos por tantas coisas, mas a verdade é que eu nunca tive tanto medo de te perder como tenho agora. Estivemos frente a frente com um pesadelo que não fomos capazes de prever e por mais que eu tente esquecer, a lembrança daquele dia insiste em passar pela minha cabeça. E nos últimos dias ela tem estado com mais frequência, como quando tenho consciência de que estamos prestes a eleger um candidato que é movido pela violência, que espalha ódio, terror e desespero, o que é um combo de todos os sentimentos horríveis que presenciamos aquele dia. E não consigo controlar a aflição que me consome por saber que se ele for eleito, podemos viver aquele pesadelo outra vez a qualquer momento. E é por isso que mesmo apesar de toda a dor e o medo dos últimos meses, eu estou aqui segurando suas mãos pra dizer que nada, nem ninguém, muito menos ele, é capaz de tirar o nosso direito de amar. Enquanto você estiver ao meu lado, resistiremos juntas, pela nossa família e por todas as outras que mesmo diferentes também são cheias de amor. Para que o ódio nunca mais vença e a violência que sofremos não seja corriqueira. Ele não, ele nunca, ele jamais. Você sim, você sempre e você pra sempre.

Quando Alex devolveu o microfone para Valéria, o silêncio dos convidados se transformou em uma explosão de aplausos e gritos emocionados que enchiam o jardim enquanto Alex e Júlia apaixonadamente se beijavam.

Uma gota de chuva suavemente caiu entre elas, as duas olharam para céu e viram a tempestade imediatamente desabar. Natasha protegia seus aparelhos de som enquanto os convidados corriam para se protegerem dentro da casa.

No tumulto que se instaurou, Alex encarou Júlia e abriu seu mais lindo sorriso, porque mesmo em meio aquele temporal foi capaz de encontrar o céu em seus olhos. E isso significava que nada mais era capaz de separá-las.

Fim do capítulo