Capítulo 4
O amor de Endy
A tarde findava. O sol ia desenhando vestes coloridas no céu numa despedida esplendorosa. Endy olhava tudo aquilo sentindo uma tristeza peculiar naquele fim de tarde recordando mais uma vez seu passado.
O dia estava se despedindo do universo e uma mistura de cor tomava conta do céu. Ali diante toda aquela beleza Endy olhava a imensidão da campina e questionava a existência de Deus e o motivo de viver ao lado de Alexandre, um homem desprezado pelo seu coração. E embora recordasse a fala da pomba gira que lhe acolhia enquanto seu corpo repousava, alertando-a da importância de se resignar diante seu casamento, ela não aceitava. A chegada do marido no quarto e o seu abraço a tiraram de seus questionamentos, fazendo seu corpo rebuliçar num sentimento desagradável.
— Lamento muito minha amada, eu preciso viajar novamente. Mas farei o possível para me demorar o menos possível. Agora se me dá licença eu preciso distribuir ordens para esses dias que ficarei fora.
Alexandre seguiu deixando a esposa envolta em seus pensamentos, quando Núria bateu levemente a porta do quarto, depois de constatar que o tio já havia partido.
— Eu lhe incomodo minha amada?
— Você nunca me incomoda. Entre. Feche a porta.
Núria sentou-se ao lado de Endy na cama grande e macia. Tocou suavemente seu rosto com a ponta dos dedos, afastando os cabelos da jovem que estavam desalinhados e disse:
— Não sofra desse jeito.
— Cada vez que ele me toca, eu sinto uma vontade enorme de acabar com ele ou comigo. Oh, Núria! Maldito corpo de mulher que me faz tão frágil desse jeito. Somos escravas, mesmo portando a pele branca, somos escravas...
Núria tomou o corpo de Endy num abraço e ela se calou. O perfume do corpo da mulher adentrava sua narina e o seu calor parecia acalmar a avalanche de dor e revolta que a outra sentia.
— Seu amor é o meu bálsamo, - disse Endy beijando os lábios de Núria.
Os carinhos e carícias levaram as duas ao amor, fazendo com seus corpos liberassem todo o prazer represado pela impossibilidade constante da intimidade.
— O almoço deve estar quase pronto, minha amada, o cheiro já chega aqui em cima, - falou Núria levantando e ajudando Endy a se recompor depois de horas entregues ao deleite.
O almoço foi servido. Endy e Núria entabularam conversa alegre, aproveitando à ausência de Alexandre.
Endy e Núria seguiram para o quarto e adormeceram. A jovem e bela esposa de Alexandre se viu fora do corpo, e recordando que já havia feito isso, olhou para o lado e viu a moça que se intitulava por Maria Molambo.
— Quer vir comigo, Endy? – questionou Maria Molambo estendendo a mão para a mulher que indagou:
— Núria não vem conosco?
— Hoje não. – e seguiram para a CASA DO PASSADO.
O cheiro das rosas enchia toda a colônia que estava com o ar saturado de uma música suave. Endy olhava para as rosas reconhecendo ali uma infinidade de cores e texturas nunca vista na Terra. Depois de contemplar esse fato, ela seguiu com Maria Molambo para uma sala, sem deixar de observar que ao redor da grande construção havia sobre o muro, fios dourados, que pareciam fios elétricos, o que chamou a atenção dela.
— O que são esses fios?
— Esses fios dourados que são utilizados para lançar descargas de energia em combate às investidas de espíritos inferiores que vem de fora da Colônia, no desejo de perturbar os que estão aqui. E essa descarga queima formas pensamentos de ódio, tristeza e outros sentimentos que podem desequilibrar os que estão em tratamento.
— Que coisa interessante! – falou Endy seguindo para uma sala onde as paredes eram pintadas de uma cor amarela dourada. Numa das paredes havia uma tela branca, que foi ligada após a acomodação, por Maria Molambo que acionou um controle. Nesse instante apareceu uma mulher trazendo uma bandeja com dois copos pequenos e uma jarra transparente. Maria Molambo agradeceu e entregou um copo para Endy que se recordou naquele instante o prazer que proporcionava aquele líquido amarelo e o tomou vagarosamente, enquanto as cenas iam aparecendo na tela.
O sol se levantava iluminando os prados do sul do Brasil. O colorido matinal ia embelezando tudo ao redor enquanto a jovem coberta por finos lençóis de seda, espreguiçava, assistindo aquele espetáculo pela janela de seu quarto que estava aberta. O cheiro do café chegava até seu aposento que ficava no andar superior da casa grande da fazenda, Raio do Sol.
Endy visualizava as cenas com seu coração emocionado diante toda aquela beleza e a saudade adentrou seu coração de espírito liberto pelo sono.
— Bom dia, sinhazinha. Está na hora do café, - falou a negra velha de olhar sereno, adentrando o quarto depois do consentimento da menina que contava dezesseis anos.
— Estou com fome, Erminda. Com fome e muito nervosa.
— Não se ponha assim. Hoje é um dia especial e precisa estar linda.
Era o noivado de Endy, que naqueles tempos era chamada por Madalena, uma linda jovem de olhos negros e grandes, cabelos escuros e encaracolados. A jovem sorriu. Levantou-se com ajuda da negra e vestiu-se. Seus pais já a esperavam para o desjejum.
O dia ia findando quando Madalena ouve o barulho das carroças chegando, demonstrando pelo trotar dos cavalos que seu noivo tinha pressa em lhe ver novamente.
Os pais de Ricardo sentiam imenso prazer na união do único filho com a bela Madalena. E chegavam eufóricos para o evento nubente, trazendo junto o jovem Heitor, sobrinho do irmão mais velho de Reinaldo Gadelha, o pai de Ricardo, há pouco falecido.
Ricardo beijou a noiva suavemente nos lábios e depois a apresentou ao primo. O olhar de Heitor sobre Madalena fez o coração da jovem se sentir estranhamente angustiado. Tomando a mão de Madalena e beijando-lhe, o jovem a cumprimentou, sentindo que seu corpo estremecer de prazer com aquele gesto.
O salão de festa da fazenda Raio do Sol estava ricamente decorado. Rosas de todas as cores enfeitavam as mesas que eram cobertas por toalhas amarelas e brancas do mais fino linho. O vinho mais envelhecido era servido, enquanto carneiros e ovelhas eram assados e servidos com azeite e ervas finas. A música era alegre e Madalena era admirada por todos, com seu vestido azul celeste, com fitinhas douradas e pedrinhas na calda pequena que descia do véu que cobria-lhe a cabeça. Da tiara de brilhante descia uma renda azul escuro dando um tom sobre tom na calda.
Heitor seguia a imagem da mulher como se estivesse prisioneiro.
O beijo de Ricardo nos lábios de Madalena a fez sentir o corpo estremecer de prazer e ela sorriu, confessando baixinho:
— Nunca amarei outro homem que não seja vosmecê.
Heitor chegava naquele instante e ouvir isso o fez sentir ódio, que o jovem disfarçou no desejo de não demonstrar a paixão fulminante que havia apossado de seu coração desde dia que seus olhos deitaram sobre o lindo rosto de Madalena.
“Nunca. Eu não vou permitir que ame Ricardo para sempre. Será minha um dia Madalena, nem que para isso eu tenha que matar Ricardo. Nada vai separar-me de vosmecê, agora que lhe encontrei.” Pensava Heitor como se estivesse enlouquecido pela funesta paixão que dominava-lhe toda a razão.
Endy olhava tudo aquilo sem dizer uma palavra. Percebia que Heitor era Alexandre o seu esposo tão odiado do presente. E sentiu seu coração descompassar quando percebeu que Ricardo era Núria, hoje em veste feminina, o que desejou indagar, mas desistiu depois do olhar de Maria Molambo.
Os encontros de Ricardo e Madalena eram sempre vigiados por Heitor, que sentia-se ultrajado cada vez que Ricardo beijava a noiva ou que ela lhe jurava amor.
O dia amanheceu ensolarado. Gotículas de orvalho deitavam sobre as folhas e flores, brilhando à luz do sol. Madalena sorria vendo todo aquele espetáculo, esperando eufórica a hora ansiada para dizer sim ao grande amor de sua vida, no ato cerimonioso do casamento.
Os dias corriam, Ricardo e Madalena seguiam felizes. Heitor se fazia mais próximo do primo no desejo de conquistar-lhe cada vez mais a confiança.
— Vosmecê não pode falhar. Mate Ricardo. Quanto a mim, me deixe surrado para que nada possa levantar suspeita. – Dizia Heitor ao homem de olhos negros e face severa, que pegou o saquinho com moedas de ouro e seguiu, depois de receber todas as instruções para o crime nefando.
Nesse instante Endy levou a mão ao coração e chorou. Seu ser tremia e Maria Molambo desligou a tela, entregando para ela uma rosa branca que estava ali em cima de uma pequena mesa, pedindo que ela aspirasse ao aroma nela contido.
— Ricardo, era Núria? Pergunto por que nunca senti por ninguém além dele o amor que sinto por ela. Como pode tudo isso?
— Sim. Ricardo de Gadelha é Núria Solano da Nóbrega.
— Senhor Deus, que maldito Heitor. Aproveitou do carinho de Ricardo.
A bela Maria Molambo segurou a mão de Endy e seguiu com ela para o jardim. A beleza da lua iluminava toda a colônia que era inebriada pelo cheiro das rosas, lírios e flores do campo. Endy respirou a fragrância e sentou-se num banco, onde Maria Molambo sentou-se ao seu lado, silenciosa, esperando que a emoção de Endy fosse amainando.
— Como Heitor pôde fazer isso? Ricardo confiava nele. Não consigo, por mais que eu tente deixar de ter raiva pelo seu ato maldito, - disse Endy limpando as lágrimas que voltaram a molhar seu rosto.
Maria Molambo ouvia o desabafo de Endy sem questionar, depois que ela calou-se, a pomba gira tomou a palavra, que era carregada de amor e empatia pela dor que Endy sentia.
— A justiça de Deus está em todo o lugar, Endy. E o julgamento é o nosso grande equívoco, visto que nem tudo é somente o que parece ser nesse momento...
— Não estou lhe entendendo.
— Eu lhe explico. Esse passado, essa existência onde você e Ricardo estiveram juntos, não foi o primeiro capítulo do grande livro que é a vida. Em outros tempos, ainda mais imemoriais, você foi a jovem Samanta, uma mulher belíssima, que desejava a todo custo pertencer à nobreza, odiando a sua condição de plebeia.
Heitor era um nobre da corte. Era casado. Seu maior desejo era pertencer ao mundo dos nobres e não hesitou em infiltrar-se na vida de Heitor que na época era Alfredo D’Avila. Com a ajuda de um soldado, você foi trabalhar no castelo do nobre, a quem passou a servir no lugar da negra velha e cansada. O primeiro olhar de Alfredo sobre você culminou numa paixão nunca sentida pelo nobre, que fez de você a sua amante. Tempos depois a esposa dele faleceu vítima de uma doença. – Maria Molambo parou um pouco, olhou para Endy que parecia ter diminuído o sentimento de raiva sentido até ali e continuou:
— O amor de Alfredo era sincero e sem importar-se com a diferença de casta, ele desposou você, que parecia ter tudo o que havia desejado, esquecida que existem outros valores que são mais preciosos do que o ouro. O tempo foi passando e a rotina dos nobres já lhe cansava e saturada da vida de casada, você passou a buscar entretenimento nos braços de outros homens, que a mera visão de sua beleza, lhe cortejavam. Alfredo sabia de suas traições, mas adoecido pela paixão, fingia não ver, desde que você não lhe abandonasse. Mas um dia adentrou a guarda de Alfredo, um jovem guerreiro, por quem você se apaixonou perdidamente. Levada pelo amor que lhe dominava, abandonou Alfredo, seguindo o jovem Saul, o bravo guerreiro, que também se apaixonou perdidamente por você. Alfredo sentindo-se ferido no orgulho, desesperado pela dor e a falta que sentia de você, buscou na morte o alívio para a sua vergonha e sofrimento.
— Era Ricardo esse jovem soldado?
— Sim.
Endy chorou com a narrativa de Maria Molambo que silenciosamente aguardou aquela avalanche de emoção se amenizar.
— Depois de algum tempo, - continuou Maria Molambo, — Alfredo foi resgatado, precisava reencarnar para aliviar a loucura que havia se instalado em seu ser. Você foi trazida para cá em desdobramento, como acontece agora. Depois da nossa conversa você estava carregada de compaixão e aceitou ser a mãe dele.
— E falhei... – disse a jovem sentindo as recordações fluírem em sua mente.
— Sim. A vaidade lhe impediu de ser mãe.
— Gostaria de me lembrar de tudo isso, talvez fosse mais fácil consertar os erros do passado.
— Você está enganada, Endy, o esquecimento é uma benção, tenha certeza disso. Recordar os erros poderia nos travar ao longo da estrada, impedindo-nos de amar, inflamados pelo ódio que ainda nos macera o coração.
— Mas como viver com um homem que não amo? Como deixar de lado o sentimento que vibra dentro do meu coração por Núria, mesmo sendo ela, mulher assim como eu?
— Deus não pede que deixe o amor que sente por Núria, minha cara, mas que o sacralize, para que em algum tempo da vida ele possa ser vivido livre da culpa. Alexandre é um homem adoecido pela paixão e somente o amor poderá curar as feridas que foram abertas no mais recôndito do seu ser.
— Amor? Como posso amar um homem que me obrigou a casar com ele?
— Mais uma vez você está enganada, minha querida. Quando você se libertou da prisão do corpo, através da morte sagrada, então mais consciente dos seus equívocos, você pediu a Deus que lhe desse outra oportunidade. Ricardo aceitou vir ao seu lado como Núria, a sobrinha de Alexandre, para perdoar a mágoa que ainda vibra em seu coração. Então veja Endy, como em todas as ações de Deus há perfeição.
— E como será dessa vez, minha nobre Maria Molambo? Confesso que toda essa história me emociona, mas ainda reverbera em mim o imenso desejo de ser livre e viver esse amor que sinto por Núria. E gostaria depois de ver tudo isso e ouvir, olhar para Alexandre com mais compaixão.
— Endy cabe a cada um de nós seguirmos no desejo de mudar os sentimentos do passado, cabe a Alexandre também essa mudança e então o futuro será melhor. E a liberdade é uma graça dos seres que estão apaziguados com o passado. Todos nós somos paradoxalmente livres e prisioneiros de nossos atos insanos e equivocados. Por isso, retornamos à Terra para desfazer os nós que fomos fazendo ao longo de outras caminhadas. Nós, esses que foram dados, pela nossa incapacidade de entender o amor. Pela nossa incapacidade de entender e seguir o caminho que o Cordeiro percorreu, quando nos alertou na sua passagem, que somente o amor cura a multidão de erros e pecados. Pela nossa incapacidade de doar o perdão as ofensas, esquecendo-nos que aquele que fere ao outro, fere a si primeiro. A liberdade, minha cara, somente é comungada pelos seres que desfizeram seus nós e os transformaram em laços de amizade, de perdão, de humildade, de empatia com a dor alheia.
— Então... nunca seremos livres, pois que não conhecemos o amor dessa forma que o Cristo ensinou...
— Um dia. Um dia nos encontraremos, todos nós, com os nossos adversários e então transformaremos o que era ódio em amor, o que era vaidade em humildade, o que era orgulho em simplicidade, e aí, então, estaremos livres. Livres e aptos a viver num mundo melhor.
Endy enxugou uma lágrima. Olhou para Maria Molambo sentindo seu coração vibrar com as palavras proferidas pela mulher.
— Ouça Endy, a vida é muito mais do que somente o hoje. – continuou a pomba gira, — a vida foi anos, décadas e muitas vezes séculos, recheado de mágoas. Um ontem cheio de poder utilizado de forma errônea, no desejo de sobrepujar o mais fraco. Um ontem onde a vaidade imperava em nossos seres e vivíamos alheios ao amor, nos importando apenas com o ter e o ser, mais que o outro, esquecido que a morte nos iguala e que Deus não favorece a nenhum de seus filhos, pelos títulos que possuíram ou pelo ouro que carregaram. Não perca mais tempo olhando para a dor, para a vida como se você fosse uma vítima por ser uma mulher. Não continue vivendo como se fosse uma pobre coitada que foi obrigada a se casar, pela força irascível de seu pai. Não, por favor, Deus não permite que caia a folha de uma árvore sem que haja um propósito para isso. Você consegue entender o que eu falo?
— Acho que sim, minha cara Maria Molambo.
— Agora vamos, já é tarde. Amanhã ao acordar ficará com reminiscência dessa nossa conversa, ainda que pouca, isso lhe ajudará.
— Obrigada por tudo, senhora.
Endy acordou. O cheiro do corpo de Núria rescendia e ela abraçou a mulher amada, sentindo seu coração acelerado e triste por perceber que aquele amor era impossível de ser vivido.
A volta de Alexandre se fez em uma semana. Endy sentia seu coração oprimido como se algo ruim estivesse prestes a acontecer e buscava consolo no colo de Mirna que intensificava suas orações.
— Endy meu amor, esse mês é nosso aniversário de casamento, - disse Alexandre com largo sorriso, — então planejei uma viagem, vamos conhecer Portugal.
O coração da jovem ficou ainda mais angustiado naquele instante e lutou para que as lágrimas não molhassem seu rosto.
— Portugal?! Tão longe assim Alexandre, por quê?
— Sempre foi meu sonho conhecer Portugal, mas esperei para ir com você, meu amor. Faça suas malas que partiremos dentro de uma semana.
Endy despediu-se Núria num abraço carregado de dor e tristeza. Seus lábios não podiam nem sequer unir-se aos da mulher amada, Alexandre estava ao lado e ela afastou seu corpo, sentindo naquele instante uma dor quase mortal.
Fim do capítulo
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