CapÃtulo 3
As horas daquele dia passavam como que em camera lenta. Valentina ganhou forças não soube de onde e dirigiu-se ao hospital. Protelou o quanto pode para encarar um momento que lhe pareceu cruel e desnecessário, mas Carlota não tinha parentes...
Reconheceu o corpo. Pediu para ficar sozinha com Lola. Pedido aceite seguido de um leve toque no ombro. Consolo? Como? Nada poderia deixá-la num estado diferente do que aquele, profundo e total desespero.
Carlota...sua companheira de muitas horas difíceis...companheira que silenciosamente ou com simples gestos e pouquíssimas palavras fora capaz de iça-la do profundo caos emocional, da apatia existencial...e agora?
--Lola...Carlota...fale comigo...o que aconteceu? Estavas tão bem...tão bem...
Tocou a mão gelada daquele corpo...era difícil pensar em Lola apenas como um corpo inerte. Ficou ali em silêncio, as lágrimas não caiam e ela queria chorar...beijou-lhe a testa e saiu.
Tratou da burocracia hospitalar característica daquele tipo de situação e decidiu que o funeral seria em dois dias. Precisava de alguma forma avisar as amigas de Lola, as pessoas com quem fazia algumas atividades...sim, tinha a grande amiga Salma cujo endereço ou contacto desconhecia, mas teria tempo de descobrir...
Saiu do hospital arrastando os passos. Ligou às amigas. Damarys não atendeu, mas Silene sim. Ela foi solidária como sempre e quis encontra-la, mas preferiu ficar só, precisava de espaço e de si mesma. Precisava expurgar a dor e só seria possível sozinha...na estrada...sem rumo...
Dirigiu durante muito tempo sem saber para onde ir...vento no rosto e silêncio ainda que a mente gritasse mil coisas sem sentido...dor...muita dor.
Deu por si a caminho de Sesimbra. Deixou-se ir...
Cabo Espichel e sua imponência. O penhasco sobre a baía dos lagosteiros deu-lhe impulsos quase suicidas...quem se importaria? Pensou no olhar de Lola e desistiu, não poderia desistir antes de conceder à companheira um funeral digno. Permaneceu no Cabo por algumas horas, o vento forte desviou os pensamentos mais depressivos, mas a dor permaneceu, criou fortes raízes e deixou-a em transe...
Andou sem rumo até ver-se às portas da Igreja de Nossa Senhora do Cabo. Não era religiosa, nem sabia mais se acreditava em Deus, no Deus de seu Pai ou Alá de sua mãe. Era difícil ter fé quando a vida teimava em arrancar-lhe tudo de bom que conquistava...tudo.
Entrou descrente. Estava deserta e a paz que apoderou-se de seus pensamentos fez com que permanecesse sentada por algum tempo. Enfim, as lágrimas...quentes, abundantes...de certa forma revitalizantes...ou quase isso.
Depois de algum tempo e bem mais calma, foi ao farol onde a beleza dos raios de sol deu-lhe forças para voltar. Precisava ultimar as coisas...Lola ainda precisava dela.
Munida de alguma força e com a mente mais tranquila, rumou de volta a Lisboa.
**********
O funeral de Lola apesar de triste foi ao mesmo tempo uma cerimonia bonita. Valentina não conseguiu avisar muitas pessoas e nem sabia ao certo a quem avisar, mas muita gente compareceu, pessoas que ela não conhecia, mas que certamente conheciam Lola e por ela tinham muito carinho.
Soube pelas amigas que uma das colegas da associação à qual Lola fazia parte conseguira avisar a um grande numero de amigos e que agora estavam presentes na ultima homenagem prestada àquela que durante anos fora dos membros mais ativos do grupo.
Valentina recebeu muito carinho, solidariedade de gente que jamais vira na vida e teve sempre o amparo de Damarys e Silene, e sem contar com o pessoal da revista que compareceu em peso.
O momento era triste sim, mas sentir acolhimento amenizou e muito a sensação de perda abrupta.
Depois da cerimonia Valentina permaneceu sozinha na capela por algum tempo.
A caminho do carro notou que Silene a esperava encostada na lateral do seu Kia Sportage prata.
Recebeu um abraço que a fez desmoronar. Chorou em silêncio por uma eternidade e teve sempre braços afetuosos envoltos no seu corpo.
Algum tempo depois...
--Não queres ficar lá em casa? Ou se preferires eu fico contigo na tua casa...não quero que fiques sozinha.
Silene disse o que melhor lhe pareceu para aquele momento, mas Valentina permaneceu calada. Só se ouviam soluços.
Algum tempo depois, já mais recomposta ela agradeceu, mas declinou.
--Preciso ficar sozinha. Vou desconectar-me do mundo por alguns dias...
--Vais ficar em casa?
--Não...vou viajar por aí, sem rumo...parar onde a alma quiser...
Silene estava preocupada, mas conhecia Valentina o suficiente para não insistir. E lá no fundo sabia que ela ficaria bem...ou quase isso.
--Ah, a dona Maria Teresa, uma das amigas de Lola, pediu que te avisasse que tentaram de todas as formas avisar Salma do que aconteceu, mas sem sucesso...parece que ela viajou...
--Salma...já ouvi esse nome...ah já sei quem é, grande amiga de Carlota, uma senhora a quem ela visitava com muita regularidade...obrigada pela informação. - Claro que sabia quem era Salma, mas naquele momento sua cabeça não se fixava em nada.
--Queres que eu te deixe em casa? Posso dirigir o teu carro...
--Sim, aceito mas e tu?
--Vim com a Damarys, mas ela teve que voltar depressa para o trabalho e eu decidi ficar para te acompanhar. Preciso passar no Vasco da Gama para tratar de um assunto e é lá perto da tua casa, então tudo certo.
Silene sorriu e Valentina agradeceu com o olhar entrando no lado do passageiro do seu carro.
**********
Valentina chegou em Óbidos guiada pelo instinto. Deixou o carro num dos estacionamentos pagos fora da vila e dirigiu-se a passos lentos para dentro das muralhas. Queria sentir-se protegida e nada melhor do que as muralhas...
Óbidos estava linda como sempre e mais linda ainda pela época do ano. Tudo florido e alegre. Velhotes felizes e sem pressa a conversar sobre nada e tudo na cadência das horas que por lá pareciam obedecer a um tique taque bem diferente.
Valentina não se alegrou com nada daquilo, nem mesmo com o músico que entoava uma bela canção à entrada da vila. Queria chegar no pequeno hotel e perder-se na sua dor que até então estava camuflada. Nada de distrações.
Passou a primeira noite em claro. Não saiu para jantar e exigiu na receção que não fosse incomodada sob hipótese alguma. Não queria comer, não sentia necessidade de nada no estomago e nem queria se dar ao trabalho de fazer alguma coisa que a distraísse da dor. Queria senti-la, dilacerante, soberana...queria que todos os chicotes açoitassem a sua pele...
A dor já não era apenas por ter perdido seu ponto de equilíbrio, a linha ténue que a separava do mais completo breu...a dor era maioritariamente por ter escancarado o portal da escuridão. Tudo vinha em doses cavalares, toda a ilusão de que tinha superado os traumas era apenas isso, mera ilusão...
Voltou aos anos de felicidade...quase enlouqueceu...sua mente pregava peças, não sabia mais o que era real ou imaginação...fora feliz e tudo tinha sido arrancado como num sopro, sem aviso, sem anuncio...do nada, um dia a mulher mais feliz do mundo e no outro arremessada para a escuridão...
Lola...seu elo com o mundo, sua parede de proteção...e agora?
Amanheceu mais um dia sem que tivesse pregado o olho. Sentia-se tonta, náuseas fortes incomodava-lhe o estomago, sequer passou perto de comida, mas bebeu muita água.
Saiu para as ruas coloridas da vila com a mesma roupa que usava há três dias. O cabelo mal preso no alto da cabeça e um andar incerto. Desceu e subiu as ruelas com casas simples e flores à janela. Ofereceram-lhe pacotes turísticos, tours de meio dia pela cidade, mas ela sequer prestou atenção. Seguia sem rumo com uma alma perdida...
Passou pelo museu e não entrou, também pela Igreja de Santa Maria cujo arredor estava apinhado de gente e não teve o menor interesse de saber o que se passava, tão pouco o castelo mereceu sua atenção.
Anoiteceu. O aspeto medieval do lugar intensificou-se com o acender das luzes amareladas dos postes da cidade. Valentina sentou-se num muro e observou o mundo ao seu redor sem nada ver...
A escuridão era a melhor opção.
**********
--Conseguiste falar com a Valentina? - Perguntou Damarys a Silene enquanto juntas degustavam um vinho gelado num final de tarde ao por do sol sobre o Tejo.
--Tentei, mas já sabes como tem sido...
--Mais de um mês e ela não reage...
--Reage à maneira dela, embrenhando-se no trabalho e sendo melhor do que si mesma.
--Estou preocupada Silene...eu sei que cada um tem o seu próprio ritmo para reagir às coisas e que eu sou bem diferente dela, mas a Valentina entregou-se... - Disse com o olhar perdido ao longe.
--Tantas perdas...não sei se no lugar dela eu teria condições de agir diferente. Ela ao menos trabalha e com sucesso...
--Não sai mais connosco...
--Não sai para nada. A Isabela outro dia telefonou-me pedindo auxilio pois nem para os compromissos do trabalho ela tem ido. Comparece apenas quando não pode delegar e mesmo assim quase arrastada. A menina tem sido perfeita, graças a Deus ela pode contar com uma equipa de pessoas humanas e preocupadas com o próximo.
--Outro dia passei na revista...ela está tão magra e veste-se com roupas sem vida...parece que regrediu à época da morte do Daniel...
--Pior, está a sofrer duplamente e não permite que ninguém se aproxime...não sei mais o que fazer...
--Eu não sou muito de me aprofundar nas coisas...
--És feliz e nem sabes. - Silene sorriu levemente olhando para a amiga que estava séria.
--Nunca vivi algo semelhante ao que ela viveu com Daniel...amor forte, conto de fadas...essas coisas que vocês acreditam...eu vou vivendo minha vida colecionando sapos, ora sapos de azul, ora sapos de rosa, - Silene riu com gosto, Damarys era muito engraçada. - Mas não passa disso, pessoas que aparecem e desaparecem sem deixar marcas...eles viviam uma história linda e que foi construída sobre fortes alicerces. Daniel era engraçado, inteligente, jovial e amava Valentina como se ela fosse a única mulher na face da terra...
--Intensamente, e ela lutou para manter sua história...os pais dele queriam outra coisa para o filho, uma moça que seguisse as tradições deles e ele apaixonou-se por uma espanhola, intempestiva, segura de si...enfim, nada a ver com os ideais dos pais de Daniel. Os próprios pais dela, mais a mãe do que o próprio pai, eles queriam que ela seguisse uma carreira mais promissora, queriam que ela fosse para o mundo já que consideravam Lisboa apenas uma província...ela foi contra tudo e todos e viveu a sua história, sem contar na forte componente religiosa da mãe dela, uma egípcia algo fervorosa...
--Valentina é guerreira...eu a admiro tanto...
--Damarys...há um facto que tu desconheces...
--Hmmm?
Silene pensou um pouco antes de falar.
--Valentina estava grávida quando o avião de Daniel se despenhou...
--Nossa Senhora...nunca soube disso...
--Pouca gente sabe...ela não quis divulgar e nem estava em condições...
--E o bebé?
--Perdeu poucos dias após a tragédia...não teve condições de levar a gravidez adiante.
--Meu Deus...
--Consegues dimensionar a dor? Eles quiseram tanto esse filho...eu via os planos, o brilho nos olhos...a Carlota foi fundamental para que ela voltasse para à vida...
--E agora isso...de enlouquecer qualquer um...nem sei o que dizer...
--Nem eu...sinto-me impotente e quase inútil...ela sempre está disposta a me ouvir, sempre tem a palavra certa a dizer e às vezes o silencio é suficiente para me acalmar e agora, que ela precisa que eu faça algo, sinto-me incapaz...
--E o namorado dela? Ele tem aparecido?
--Não sei..., mas convenhamos que aquilo não é namoro, está mais para amizade colorida ou acordo convencional do que algo mais intimo...não vejo cumplicidade e muito menos comprometimento e falo pela parte dela...
--O que fazemos Silene?
--Não sei...estou agoniada...
--Ela precisa de um milagre...precisa acontecer alguma coisa que a devolva à vida, algo como uma onda que revire tudo e ela tenha a necessidade de fazer alguma coisa...
--Algum milagre que a faça emergir dessa apatia...entendo, mas o quê minha amiga? O quê?
--Não faço a mínima ideia, mas acreditemos na vida, em Deus...não és tu que sempre dizes que quem é bom merece o melhor? A Valentina é uma mulher e tanto..., mas preciso ser franca, só nascendo uma nova versão da Valentina da que eu conheci até hoje...
Silene sorriu e ficou a pensar na teoria de Damarys...fazia sentido. Damarys duvidava porque conhecera apenas uma leve brisa daquela Valentina feliz e senhora de seu mundo, mas ela a conhecia há mais tempo e sabia que por trás daquela frieza e desinteresse que chegava a ser charmoso, existia uma mulher que respirava vida. Que o milagre acontecesse logo e viesse sob forma de luz, uma luz suficientemente forte para arrancar a amiga da escuridão à que estava prisioneira.
**********
Valentina mais uma vez seguiu o seu ritual desde a morte de Lola. Entrou em casa depois de mais um dia longo no escritório. Silêncio. Não ouvia mais os passos de Lola caminhando pela casa e dizendo coisas como "como correu o dia" "seu chá já está pronto e exatamente como gostas" "fiz o pudim que adoras" "o técnico passou e o ar condicionado já funciona perfeitamente". Às vezes tinha a impressão que a ouvia pela casa, que sentia seu cheiro..., mas era ilusão.
Depois do banho e ainda com a toalha no corpo serviu-se do chá que preparara e cujo sabor nem de longe lembrava o de Lola e para acompanhar apenas duas bolachas agua e sal, ah, e algumas uvas já que a médica que atendia na revista dissera que estava com episódios de queda brusca dos níveis de açúcar no sangue.
Levou algum tempo a comer, era quase um sacrifício, mas precisava estar viva para manter a Life Up no topo das vendas.
Andou pelo apartamento como que á procura de alguma coisa que nem ela sabia ao certo o que era. Fechou tudo como já vinha sendo habito...aquela função era de Lola e agora dela. Fazia aquele ritual quase como obsessão. Trancava, verificava e voltava a verificar.
No quarto vestiu um microvestido que era um pijama, era assim que gostava de dormir ou então apenas de calcinha. Limpou a pele e parou para observar-se. Estava pálida, os ossos da face salientes, sem brilho. Não ligou a mínima para a pessoa refletida no espelho...
Saiu do quarto e foi beber mais chá.
Sem sono decidiu entrar no quarto que era de Lola. Ficava numa área oposta ao seu quarto. Sempre quis que ela tivesse a sua privacidade e ainda mais que Lola madrugava e começava a sua lida muito cedo. Entrou. A segunda vez desde que ela se fora. Mas a primeira vez de forma consciente. Da outra vez, há mais de um mês, tinha sido para colocar a bolsa dela sob a cama...a bolsa com os pertences que o hospital lhe devolvera. Naquela ocasião nem sentiu o soalho debaixo dos pés. Entrou como um relâmpago e colocou a bolsa sobre o primeiro móvel que encontrou. Ainda estava lá, no mesmo lugar.
Não mexeu em nada, não abriu...não tinha coragem de encontrar o telefone, os documentos...as coisas dela...Lola era muito organizada e gostava de guardar tudo...
Respirou profundamente...o quarto estava limpo porque alguém aparecia uma vez por semana para deixar tudo em ordem. Não queria mais ninguém em caracter permanente e muito menos a morar dentro de sua casa. Tudo descartável e superficial...o melhor dos mundos, sem apego, nada de sofrimento.
Ficou de pé durante algum tempo sem saber o que estava a fazer ou o que pretendia naquele lugar. O coração estava em alvoroço, parecia querer gritar alguma coisa, mas as pernas estavam presas e ela manteve-se ali...
Sentou-se no chão frio ao lado da cama. Encostou a cabeça na borda...levantou o olhar e viu a caixa de som que oferecera a Lola num dos aniversários dela. A mente foi lá para aquele momento...felicidade, genuinidade, gratidão...
Lola gostava de musica, vivia cantarolando pela casa e adorava dançar, particularmente os bailados típicos da terra dela que prometera levá-la para conhecer...isso jamais aconteceria...jamais.
Tentou ligar numa radio qualquer, mas sem esperança já que acreditava que o aparelho estivesse sem bateria. O som invadiu, já não estava mais sozinha. Ouvia música sem prestar atenção às melodias...a mente girava e o coração permanecia em descoordenação.
O tempo passava, mas ela tinha todas as horas que quisesse...sozinha...
Josh Krajcik cantava Let me hold you...viu-se aos soluços. Abraçou-se e teve a certeza que seria assim pelo resto dos seus dias. Ela se bastaria, queria o seu mundo solitário, sua casa vazia ali ou em outro lugar qualquer...silêncio, nada de envolvimentos com nada e nem ninguém...compromisso apenas com o trabalho a única coisa que a mantinha viva. Talvez fosse embora dali...o mundo era grande o suficiente e em algum lugar ela seria apenas mais uma desconhecida na multidão.
Adormeceu no chão frio e essa não foi a única noite...
**********
Mais uma falha na edição da revista. Mais branda, era certo, mas ainda assim uma falha e Valentina detestava falhas. Sempre fora muito meticulosa, mas ultimamente não lhe escapava nada, nem uma virgula fora de lugar. Corrigiu tudo, afinal era algo sem muito significado, mas tratava-se da Life Up e falhas não eram toleráveis.
Precisava reunir-se com o departamento de artes da revista, mas antes teria uma reunião apenas com Joaquim, afinal ele era um excelente profissional e se davam muito bem. Mas não naquele momento...estava cansada, mal dormira. Uma agonia que ia e voltava, uma sensação estranha...quase tumulto interno e era algo diferente, parecia pressagio de alguma tempestade, mas ela não acreditava naquelas coisas.
Talvez fosse a pressão social para que voltasse a ser o que era, a Valentina que circulava pelos spots de Lisboa com um leve sorriso no rosto e sendo educada com todos.
Não, definitivamente não. O mais perto daquela mulher que se permitia chegar era sair esporadicamente com as amigas para um almoço ou jantar em que mal tocava na comida, ou uma bebida ao final do dia.
Almoçaria com Silene e já estava atrasada. Procurava o telefone no momento em que Isabela entrou na sala.
--Tudo pronto para a gráfica? - Ela perguntou tentando emprestar à voz um tom jovial na tentativa de animar a chefe.
--Sim...identifiquei alguns erros, mas já corrigi tudo e podemos sim enviar à gráfica.
A resposta veio no mesmo tom dos últimos tempos, sem muita emoção.
--Não encontro o meu telefone. Por caso não o deixei na tua mesa?
--Não...e por falar em telefone, já ligaram duas vezes da Clinica Santa Clara querendo falar contigo. Disseram que não atende ao celular. Não a interrompi porque sei que não gosta que o façam em dias como hoje.
--Clinica o quê?
--Santa Clara, uma que fica no Restelo e é bastante famosa.
--Nunca ouvi falar, mas também não ando propriamente interessada em clinicas de saúde...meu telefone...
Continuou a procurar o telefone sem dar nenhuma importância à informação da assistente.
--Desculpa Valentina, mas se ligarem de novo eu digo o quê?
--Pergunte o assunto...
--Perguntei, mas a atendente disse que o assunto era particular.
--Que liguem para mim então...se eu encontrasse o meu telefone já ajudaria...
--Procurou na bolsa?
Ela olhou fixamente para Isabela como que a duvidar que tivesse feito aquela pergunta idiota.
--Foi o primeiro lugar Isabela...- Mas a moça já estava com a bolsa dela nas mãos.
--Aqui está. -Sorriu ante uma Valentina admirada. - É que está no modo silencioso. - Entregou o aparelho à chefe.
--Tantas chamadas perdidas...vou sair. Não volto depois do almoço.
--Sim, mereces descansar depois dessa maratona dos últimos dias.
--Tire a tarde livre também.
Isabela sorriu, mas Valentina apenas desejou um bom resto de dia e foi embora.
**********
O almoço com Silene decorria tranquilamente. A amiga contava alguma coisa e ela ouvia em silêncio tentando prestar atenção.
-- Está tudo bem?
--Sim...
--Pareces distante... - Na realidade distante ela estava sempre ultimamente o que a amiga queria mesmo era que ela falasse...
--Mais um erro na revista e de novo do departamento de artes.
--Sério? Mas isso já está recorrente...
--Pois e preciso tomar providencias..., mas não hoje e nem amanhã...estou cansada...
O telefone tocou e ela sobressaltou-se. Não conhecia o numero, pensou em não atender, mas lembrou-se da história da clinica.
Atendeu e não entendeu nada, melhor, ficou irritada porque sentiu-se intimada a deslocar-se à tal clinica.
--O que aconteceu que lhe provocou uma ruga nessa cara linda? - Silene tentou desanuviar.
--Uma chatice...desde cedo estão ligando de uma tal clinica Santa Clara exigindo que eu compareça...
--Sei onde fica..., mas o que querem?
--Sei lá...chatice, claro. Não estou com cabeça para isso e hospitais e afins não são exatamente meus lugares de eleição...
--Vou contigo.
--Não vais trabalhar?
--Estou em stand by, tranquilo...
--Ok, obrigada Silene. Sozinha não iria...
**********
Um homem elegantemente vestido que mais parecia um executivo do que um médico conversava com Valentina e ela não entendia uma palavra. Nada fazia sentido.
--Desculpa-me mais uma vez, mas o senhor quem é?
--Dr. Francisco Guimarães, médico cirurgião geral e sócio da Clinica Santa Clara.
--Dr. Francisco, eu não entendi nada...
--Explico de novo. Temos convénio com várias seguradoras de saúde ao redor do mundo e recebemos pacientes do exterior assim como enviámos quando há necessidade. Ontem ao final do dia recebemos uma paciente da Austrália, mais concretamente de Brisbane que pediu que a contactássemos. Ela sofreu um grave acidente há alguns meses e esteve em coma por mais de quatro meses. Esteve muito debilitada, quase não resistiu, mas agora está em franca recuperação. Ela decidiu terminar o tratamento aqui em Portugal e a recebemos com muita atenção. Ela não precisa ficar internada, pode fazer o tratamento em casa porque são essencialmente exercícios de fisioterapia e dispomos desse serviço a domicilio e ela terá apenas que deslocar-se quinzenalmente à clinica para acompanhamento.
Valentina sentia-se cada vez mais confusa.
--Austrália? - Olhou para a amiga que também parecia confusa. - Dr. Guimarães, está havendo um engano aqui, eu não conheço ninguém na Austrália que viria para uma clinica em Lisboa com o meu contacto...
--A senhora não é Valentina Villar?
--Sim...
--Foi esse o nome que a paciente nos facultou. - Disse o médico convicto.
--Eu vou embora, não tenho tempo a perder...
--Calma Vinah, vamos conversar com a senhora, quem sabe ela não consegue nos esclarecer melhor.
--Exatamente, sugiro que façam isso. Ela está no segundo andar, quarto 229. Qualquer coisa que precisem, peçam á atendente para me chamar. - Disse simpático e retirou-se.
Mesmo relutante, Valentina seguiu a amiga que tomara as rédeas daquela situação insólita.
**********
Entraram no quarto amplo e claro e viram uma mulher sentada numa cadeira de rodas olhando para o exuberante jardim através da enorme janela de vidro.
Valentina estagnou-se. Aquilo era surreal...
Silene aproximou-se e tocou o ombro da mulher que virou-se lentamente. Remanejou a cadeira e olhou para Silene com um leve sorriso nos lábios, um olhar triste e quase sem brilho, mas ainda assim com um semblante tranquilo.
--Olá Dona Valentina, muito prazer em conhecê-la e obrigada por comparecer...já estava preocupada e segundo os médicos isso não é bom no meu estado de saúde. - Disse com uma voz fraca, mas clara e num português com um sotaque diferente.
Fora do campo de visão da moça, Valentia sentia-se cada vez mais intrigada.
--Olá, seja muito benvinda e estimo as suas melhoras, mas não sou a Valentina...é ela. - Apontou para a amiga que finalmente ficou no campo de visão da mulher na cadeira de rodas.
--Peço desculpas dona Valentina pela confusão...
--Apenas Valentina. - Interrompeu sem muita paciência. - E quem és tu afinal?
--Nayami Carvalhal, sobrinha de Carlota. Estou a tentar falar com ela há dias, mas o telefone está sempre desligado. Eu sei que ela trabalha com a senh...contigo, foi ela que me deu o seu contacto. Depois de muita insistência desde a Austrália e agora aqui sem que ela retornasse, só me restou contactá-la...onde está a Lola?
Silene e Valentina trocaram um olhar com muitos significados que Nayami ignorava.
Na cabeça de Valentina uma única certeza martelava, aquela mulher não poderia jamais ser parente de Lola.
Fim do capítulo
Boa leitura.
Nadine Helgenberger
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Veka
Em: 09/06/2020
Perder alguém, o que ela representou e ela sendo seu ponto de salvação... nem imagino o quão desnorteador, desestruturante... isso possa ser
E isso quando você deixa tudo trancado a sete chaves e mantém distância afetiva do mundo.
Acho que nunca comentei sobre isso, mas gosto da diversidade cultural que vc busca para construir uma personagem. A mãe tem origem de não sei que canto, o pai vem lá de outro lugar.
Naná, vc tava numa pegada densa no início desta história... vou te contar.
BjusResposta do autor:
Ah eu vivo cercada de muitas culturas e adoro essa fusão. Meus personagens "sofrem" com isso kkkk. A Valentina é desafiante e por isso, apaixonante.
Bjs, obrigada
Aurelia
Em: 26/08/2019
Opa que o milagre na vida de Valentina chegou, ela preferiu a escuridão e mesmo assim a luz chegou a sua vida. Agora é que são elas, com a descoberta de uma sobrinha de sua querida Lola. Silene tomando rédia da situação. Ainda bem se não Valentina nem tinha ido ao hospital.
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brunafinzicontini
Em: 02/09/2018
Querida Nadine,
Capítulo maravilhoso! Muito tocante! Você sabe transmitir o sentimento íntimo de uma pessoa, faz-nos sentir a dor de uma alma! Pobre Valentina. Imaginava um rompimento doloroso com o primeiro marido, mas não pela morte – e ainda com a decepção de uma gravidez interrompida. A perda de Carlota, então, foi o suplício final, o “golpe de misericórdia” nessa sucessão de sofrimentos, deixando sobreviver apenas uma mulher apática, fechada para o mundo. O aparecimento inesperado de Nayami nos deixa na maior expectativa, já vislumbrada pelo título da história: que brilhe, enfim, esse sol, com todo o esplendor que Valentina merece!
E, como sempre, você nos presenteia com a beleza de lugares bem descritos e a música que enriquece a cena com muita propriedade.
Parabéns, Nadine! Aguardando o próximo capítulo com a maior ansiedade!
Beijos,
Resposta do autor:
Olá Bruna,
Gostei de escrever este capitulo...gosto de momentos extremos em que os personagens vão lá no fundo, enfim rsrsrs e gostei mais dele ainda porque Nayami apareceu, timidamente mas apareceu e SEI que vou adorar escrever sobre essa mulher rsrsrs
Proximo capitulo a caminho rsrs
Muito obrigada Bruna, sempre :)
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NovaAqui
Em: 02/09/2018
Pobre Valentina ;-(
Agora chegou Nayami e a vida deve começar a ganhar cor S2
Abraços fraternos procês aí em CV!
Resposta do autor:
Vamos lá ver o que a Valentina vai fazer com esse inesperado na vida dela...vamos ver rsrsrs
Muito obrigada por acompanhar e comentar.
Bj
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maria lucia
Em: 02/09/2018
E com imenso prazer que retorno ao meu ritual!Ler...viajar em suas historias.Agora sim o milagre ja esta no prenuncio.Mayani Carvahal vai ser sua Fenix.Obidas e linda!!!Descreveu maravilhosamente e cantor Josh Krajcit com aquela musica.O capitulo ficou perfeito.Parabens!!!
Resposta do autor:
Muito obrigada. Simmmm Óbidos é lindo, maravilhoso, inspirador...adoro :)
Bjs
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