"ELA" por mcassolwriter
"ELA"
Letícia Eloá preparou o café para ela e sua esposa como havia feito nos últimos 24 anos: primeiro servia o leite frio e uma colher de açúcar mascavo para Vera e entornava o líquido preto como tinta nas xícaras.
Caminhou até a sacada do chalé de madeira que fazia parte do famoso resort na Suíça levando as xícaras consigo. O silêncio era inebriante e a beleza do lugar contrastava com os momentos tétricos que se seguiriam. Logo a neve e a desolação cobririam tudo.
Letícia Eloá bebeu um gole do seu café e respirou o ar límpido da floresta. Uma tristeza entranhável remoía seu peito, mas ela havia prometido à Vera que não iria chorar mais. "ELA" não merecia suas lágrimas.
Fazia cinco anos que "ELA" havia chegado em suas vidas e pouco a pouco levou tudo embora. Tomou sua paz, seus sorrisos, sua alegria de viver, deixando um rastro de destruição para trás.
Letícia Eloá lembrava bem da desconfiança do início de tudo, do seu instinto gritando que alguma coisa não estava bem. Vera tentava esconder o óbvio em vão. Logo os sinais eram evidentes demais para serem acobertados.
"ELA" esperou pelo momento certo para mostrar sua cara e arrasar com a vida de ambas. Foi quando comemoravam os 20 anos de relacionamento. Uma festa gloriosa para todos os amigos do casal no Salão Frontal do Copacabana Palace.
A celebração de um amor que nasceu durante a ditadura. Um romance proibido, escondido, escarrado, desqualificado, mas que sobreviveu.
O evento V.I.P. era um prato cheio para a mídia. A festa pomposa da Engenheira Civil responsável pela restauração dos Arcos da Lapa e sua esposa, a fotógrafa Letícia Eloá que colocou o nu artístico no mapa das exposições do país foi anunciada em todos os jornais do Rio.
Em frente a todos os convidados, "ELA" mostrou suas garras sórdidas. Quando Vera estava sob os olhares de todos, fazendo um pequeno discurso agradecendo a presença das pessoas importantes em sua vida e enaltecendo o amor que sentia por Letícia Eloá, "ELA" tomou as rédeas, queria ser o centro das atenções.
A mão de Vera que erguia a taça de champanhe começou a tremer incontrolavelmente e logo o braço perdeu as forças, e para o espanto de todos, Vera tombou, estatelando-se no chão junto com os cacos do cálice.
"A Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), infelizmente é uma doença degenerativa terminal." Disse Dr Ulysses, renomado neurologista carioca, entre os soluços de ambas as mulheres no dia seguinte.
"Qual o prognóstico, Doutor?" Vera perguntou, agarrando firme a mão da esposa.
"Temo dizer, que não muito favorável, Vera. A ELA provoca o desgaste e a morte dos neurônios motores do cérebro e da medula espinhal, responsáveis pelos movimentos. Lentamente você deixará de andar, mover-se e ter qualquer força muscular, e com a progressão da doença, cessará de falar, engolir e finalmente o diafragma pára e você só conseguirá respirar com ajuda de aparelhos." Ele disse com olhar genuinamente triste. "É um diagnóstico que todo neurologista abomina dar a um paciente."
Passado o choque, Vera pôs-se a pesquisar suas alternativas e não levou muito tempo para que já tivesse arranjado tudo o necessário para a sua ida ao Instituto Dignitas, na Suíça, onde poderia morrer com dignidade.
Os protestos de Letícia Eloá foram em vão. Vera era uma mulher obstinada na vida e seria também na morte. Quando a sua hora chegasse, antes de perder completamente os movimentos, deixaria de viver em seus próprios termos.
O barulho da cadeira de rodas de Vera sendo empurrada pela enfermeira até a sacada onde Letícia Eloá se encontrava chamou sua atenção, virou-se para encontrar sua esposa sorrindo.
"Humm, cheirinho de café." Vera disse com a voz rouca, esforçando-se para que as palavras deixassem sua garganta.
Letícia Eloá pegou as xícaras e sentou-se no banco de madeira ao lado de Vera, passando a bebida quente para ela.
"Aqui, eu te ajudo." Letícia Eloá disse, levando o copo lentamente aos lábios de Vera que mal conseguia beber um gole.
"Obrigada, meu amor." Vera disse.
Ambas ficaram em silêncio por alguns minutos admirando a vista, até que Vera perguntou:
"Como era o nome daquele restaurante em Paris que gostávamos tanto, lembra? Aquele fillet Chateaubriand com batatas?"
"L'Entrecôte." Letícia respondeu, tentando esconder a lágrima que rolava em seu rosto.
"Você lembra que delícia? Lembra do que você dizia depois de nos esbaldarmos naquela receita maravilhosa? Vera perguntou, sua voz falhando em algumas sílabas.
"Já posso morrer feliz." Letícia Eloá disse.
"E logo depois de terminamos a refeição, você conseguiria comer outro Chateaubriand daqueles?" Vera seguia seu raciocínio.
"De jeito nenhum. Estava mais que satisfeita." Letícia Eloá respondeu.
Vera olhou profundamente nos olhos de sua esposa e lentamente moveu sua mão trêmula em direção ao seu rosto.
"Minha vida com você foi meu melhor Chateaubriand. Muito mais do que eu podia sonhar. Você me fez tão feliz, tão completa. Agora, em frente a essa doença que corrói meu corpo, tenho-me como satisfeita também. Está na hora de descansar, não permitirei que você me veja definhar. Quero que você se lembre de mim no meu melhor, no nosso melhor, e serão essas lembranças que irão te dar forças, meu amor. Não é porque fui embora da festa cedo que você deve deixar de se divertir, faça cada dia valer a pena."
"Estamos prontos." A enfermeira disse solenemente, e após um sinal positivo de Vera, conduziu sua cadeira de rodas para o quarto onde a equipe médica se encontrava.
Vera foi colocada sob a cama e Letícia Eloá sentou ao seu lado, firme, usando todo a força de sua alma para não se desesperar, para não chorar. "ELA" não merecia.
"Eu te amo." Letícia Eloá disse alisando a testa de Vera.
"Uma dama sempre sabe a hora de partir. Toma conta de você por mim tá?" Vera disse antes de fechar os olhos pela última vez e morrer com um sorriso.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Nay Rosario
Em: 26/09/2018
Eu não sei o que é pior. A doença em si ou o sofrimento do casal.
Resposta do autor:
Situacao horrivel mesmo, mas sempre é pior pra quem fica ???? Obrigada por ler Nay!
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