Capítulo 9
"Berta! O que houve contigo? Esqueceu o guarda-chuva?" Ticiana disse, caminhando ao encontro de Berta na portaria do prédio de Bibi.
"A tempestade me pegou de surpresa." Berta respondeu, esfregando as mãos uma na outra.
"Eu não sei se a Dona Bibi vai deixar você subir assim." O guarda disse sacudindo a cabeça ao pegar o interfone e discar o número do apartamento.
"Dona Bibi, como vai a senhora? Pois então, a mocinha de ontem está aqui de novo, com uma amiga, mas ela está toda molhada. Posso deixar elas subirem mesmo assim?" Ele indagou e seguindo um minuto de interação, começou a se desculpar. "Mil perdões, Dona Bibi, pode deixar, digo."
Ele virou-se para encarar o par de garotas olhando para ele e disse:
"A Dona Bibi disse que por favor vocês subam imediatamente e também pediu para eu me desculpar por ser grosso." Ele fez uma careta, baixando os cantos da boca como uma criança que acabara de fazer uma travessura que foi descoberta.
"Não tem problema não, moço. Nós entendemos." Ticiana respondeu, cutucando Berta com o cotovelo e segurando o riso.
"Tu estas quase encarangando guria, me dá tuas mãos aqui." Ticiana disse ao entrarem no elevador, segurando as mãos de Berta e gentilmente esfregando-as para que aquecessem.
Berta ainda estava anestesiada, inapta a sentir qualquer forma de calor.
"Senhor, que pedras de gelo!" Ela continuava a massagear as mãos de Berta e perguntou "Está tudo bem, Berta? Aconteceu alguma coisa?" O olhar de Ticiana cheio de preocupação genuína.
Berta permanecia muda, olhando os números dos andares iluminando-se no painel do elevador até finalmente perceber o gesto de Ticiana, tentando esquentar suas mãos, sobrancelhas arqueadas numa expressão apreensiva. Um sentimento desolador invadiu Berta, com a força de um ‘tsunami' as lágrimas transbordaram em seus olhos pela realização de que nunca em sua vida, alguém tinha demostrado carinho num gesto tão simples. Berta nunca havia experimentado empatia antes, não sabia como reagir, não conseguia entender como Ticiana poderia se preocupar com o frio que sentia. Ticiana mal a conhecia e a atitude terna não havia aquecido somente as mãos de Berta, acalentava também seu coração.
"Berta, o que houve?" Ticiana continuava indagando em tom afável quando a porta do elevador abriu-se.
"Vem" Ela disse, guiando Berta ainda chorando até o apartamento 1900.
Bibi abriu a porta e arregalou os olhos ao ver a cena defronte sua porta.
"Benza Deus! Entrem, entrem." Bibi disse veementemente, colocando a mão nas costas de Berta a conduzindo até a sala. "Sentem, vou pegar uma toalha." e caminhou até o final do corredor a sua direita voltando prontamente com uma toalha branca, uma camiseta e um par de pantufas de couro forradas com lã.
Berta tremia, seu queixo movendo-se rapidamente prevenindo que ela pudesse dizer qualquer coisa. Seu frio era muito mais profundo que sua pele, tinha a alma gélida.
Bibi passou a toalha a Ticiana que a colocou sobre os ombros de Berta, enxugando seu cabelo, seu pescoço, esfregando suas costas tentando de todas as maneiras, estimular a circulação para que Berta parasse de tremer. Bibi ajoelhou-se em frente a Berta e desamarrou seus All Stars, tirou seu tênis e suas meias ensopadas e colocou as pantufas nos pés de Berta que finalmente conseguia parar de chorar, mas permanecia em estado de choque.
Ticiana continuava esfregando a toalha pelas costas, os cabelos e os ombros de Berta com movimentos firmes e começou a enxugar os braços e mãos de Berta quando, num ato automático, empurrou as mangas do moletom de Berta braço acima expondo o emaranhado de cicatrizes que adornavam seus antebraços.
Num reflexo involuntário, Ticiana deixou um som agudo escapar sua garganta como tentando tomar fôlego, levando a mão direita em frente a boca e arregalando os olhos.
"Berta..." Foi só o que conseguiu dizer.
Bibi, vendo a comoção tentou entender o que acontecia e levantou-se, também reagindo à visão das cicatrizes de forma intensa. "Criaturinha de Deus, o que houve contigo?" Ela disse antes de sentar-se ao lado de Berta.
Berta num movimento automático puxou as mangas sobre seus braços, cobrindo sua pele e agarrando as mangas do moletom firmemente em seus punhos cerrados.
"Não é nada." Disse em tom baixo.
Bibi e Ticiana se entreolharam em silêncio. Ticiana tinha novamente o olhar preocupado e Bibi exuberava uma calma de quem já passou por muitas tragédias na vida e não se abalava mais com facilidade. Ela tocou as costas de Berta e disse gentilmente:
"Berta, nós mal nos conhecemos, então você ainda não sabe a pessoa que sou, mas escuta o que essa velha ranzinza tem para te dizer: nessa casa você sempre estará segura. Não importa se você quer ou não conversar sobre seus problemas, nem eu, nem... Como é seu nome mesmo?" Ela gesticulou para Ticiana.
"Ticiana" Ela respondeu e Bibi continuou.
"Nem eu, nem a Ticiana estamos aqui para te julgar." Bibi sorriu
Berta levantou o olhar e encontrou o rosto enternecido de ambas mulheres e deixou um suspiro longo e cheio de angústia deixar seu peito.
"Eu nunca conversei com ninguém sobre isso, sobre elas." Berta inconscientemente começou a massagear Narbe que já latej*v*.
"E tu queres falar?" Ticiana perguntou.
"Eu não sei... É difícil." Berta disse.
"A vida é difícil, Berta, só você sabe do fardo que carrega. Falar sobre os transtornos que te atormentam tornam-nos menos pesados. Tudo ao seu tempo, quando estiver pronta." Bibi disse, batendo a mão delicadamente na perna de Berta que finalmente parara de tremer.
"Está se sentindo melhor? Mais calma?" Ticiana perguntou.
"Acho que sim." Berta disse.
"Que tal um chazinho? Minha mãe já dizia "Quando estiver precisando se sentir melhor, "chá" seus problemas para lá". Flor de Maracujá e mel para acalmar?" Bibi perguntou andando em direção a cozinha. "Tenho Rivotril também se chá não adiantar." Brincou.
"A gente não precisa ouvir a história da Bibi hoje não Berta, se você não estiver se sentindo bem, nós marcamos outro dia." Ticiana disse inclinando a cabeça para o lado.
Berta olhava para o chão em silêncio, ainda metodicamente tocando seu pulso até Bibi voltar com os chás.
"Quero contar." Berta disse resoluta.
Duas estranhas. Eram isso que Ticiana e Bibi eram para Berta e, ao mesmo tempo, eram as pessoas que a fizeram sentir mais protegida na vida. Elas não tinham motivo nenhum para mostrar compaixão e gentileza, elas não a conheciam, não sabiam de seus problemas. O gesto de carinho já repercutia dentro de Berta.
"Vocês sabem aquela sensação de náusea horrível quando se tem uma virose? Aquele enjoo que repugna só de sentir um cheiro, só de pensar em comida? Ter o estômago embrulhado dum jeito que parece que nunca vai conseguir comer novamente e então os sintomas vão aumentando, a barriga contrai, a boca saliva e os espasmos começam, você engasga uma, duas vezes, perde o fôlego, lacrimeja, e finalmente, o vômito vem com uma força incontrolável e a única coisa que você tem a fazer é deixar que tudo que te faz mal saia de dentro?" Berta disse, levantando os olhos para encontrar as duas mulheres concordando positivamente com a cabeça e continuou.
"Então no minuto depois que você vomita, tudo melhora, o alívio é algo sublime e nem parece que a meros instantes atrás você estava se estrebuchando sobre o vaso sanitário?" Bibi e Ticiana concordaram silenciosamente.
"Pois, minha vida é uma náusea constante. A dor que sinto dentro de mim toma proporções que eu não consigo controlar, tenho que deixar sair. Os cortes ajudam a aliviar, a expelir todo o mal, pelo menos por alguns instantes. Quando as coisas se tornam insuportáveis eu preciso da dor física para me ancorar à realidade, senão eu temo que enlouqueceria de vez."
"E tu já procuraste ajuda? Um psicólogo, psiquiatra?" Ticiana perguntou, ainda com a expressão apreensiva marcando seu rosto.
"Não. Minha mãe diz que esses são médicos para loucos." Berta respondeu.
"Berta, quem faz você se sentir tão mal assim a ponto de se machucar desse jeito? É a mesma mãe que fala um absurdo desses?" Bibi perguntou retoricamente.
"Mas não é culpa dela!" Berta disse defensivamente. "Sou o problema, sempre fui, desde pequena."
"Como que pode ser isso, Berta?" Ticiana perguntou, trocando olhares desconfiados com Bibi. "Como que uma criança pode ser culpada por qualquer coisa?"
"Eu sempre fui um peso para família. Meu pai saiu de casa por minha culpa." Berta apertou os lábios, fazendo força para não chorar.
"Que idade você tinha quando isso aconteceu?" Bibi perguntou.
"Três e meio, quatro." Berta disse.
"E o que uma criancinha pode ter feito de tão grave para que o pai saísse de casa?" Bibi continuava perguntando, alinhavando um raciocínio que Berta não aceitava entender.
"Eu chorava muito, noites a fio. Tinha problema nos ouvidos, minha mãe não dava conta de passar as noites em claro comigo, gritando de dor e meu pai não suportou. Minha mãe sempre me diz isso, que a culpa da infelicidade dela é toda minha." Berta suspirou profundamente.
Bibi fechou os olhos e apertou a raiz do nariz entre os dedos da mão direita, dizendo para si mesma "Por favor, agora não." E voltando a olhar para Berta disse "Sertanejo." Ela sacudiu a cabeça negativamente "Somente quando estou muito incomodada com alguma coisa toca essa porcaria no rádio interno. Pode ter certeza que estou, e muito, chateada com o que você está dizendo Berta." Ela tocou o ombro de Berta afetivamente. "A culpa nunca foi sua, minha querida. Sua mãe tem sérios problemas se é isso que ela te disse, você é uma vítima inocente. Quantos anos de abuso, meu Deus." Bibi continuava.
"Concordo, Berta. Tua mãe parece ser bem tóxica. Foi por causa dela que tu estavas chorando hoje?" Ticiana perguntou.
Berta somente balançou a cabeça positivamente sem dizer nada.
"E o que ela fez hoje, Berta?" Bibi disse, enfiando o dedo indicador no ouvido esquerdo e movimentando-o vigorosamente.
"Ela me bateu. Me colocou para fora de casa." Berta disse mostrando as marcas de unhas ainda reluzentes em suas bochechas.
"Senhor do céu, agora que vai começar toda a discografia do Chitãozinho e Xororó... Que mulher desgraçada essa sua mãe! Como pode tratar uma filha assim?" Bibi levantou-se em indignação. "Certas pessoas deveriam serem proibidas de procriar. Fica tranquila, minha filha, sem teto você não vai ficar, Mi Casa, Su Casa... Pode ficar aqui o tempo que precisar." Bibi acalmou-se e sentou novamente ao lado de Berta. "Penso que quem precisa um Rivotril agora sou eu."
Berta não sabia o que sentir, ela nunca aprendeu a aceitar carinho, nunca exercitou confiar em ninguém, não conseguia merecer coisas boas, mas sentia-se calma. Uma paz que não lembrava de experimentar por mais de alguns segundos após riscar sua pele com o metal frio de sua navalha. Conseguiu sorrir.
Bibi caminhou até um dos cômodos no fim do corredor e voltou com uma bolsa de couro que atravessava seu corpo do ombro esquerdo ao quadril, caindo sobre o lado direito de seu corpo e usando um boné verde da John Deere.
"Vamos meninas." Disse sinalizando para que Ticiana e Berta a seguissem.
"Aonde, Bibi?" Ticiana perguntou.
"Primeiro comprar umas roupas novas para Berta e depois ver se a mãe dela é assim tão corajosa com alguém do mesmo tamanho que ela."
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/08/2018
Eita agora o bicho vai pegar.
Resposta do autor:
Ah vai... :)
Bruna DX
Em: 30/08/2018
Nossa!
Acabei de ler todos os capítulos postados, e tenho que dizer que fiquei chateda quando chegou ao último:(
Olha adorei a forma como você escreve, como coloca sentimento nas palavras. Dá pra sentir daqui o que Berta sente. Sofri esses 9 capítulos com ela!
Que mãe mais mejera! Quer dizer, isso nem mãe é. Ainda bem que ela encontrou duas pessoas capazes de demonstrar carinho e atenção. Gostei da forma como Ticiana entrou na vida de Berta. E não vejo a hora de Bibi ter uma conversinha com a mãe frajuta.
Caraca! Tô muito ansiosa pelo próximo capítulo. Quero ver essa conversa e quero ver Bibi e Ticiana darem mais um pouquinho de carinho a Berta!
Ow moça, cê volta logo né?! Demore não, traga mais um capitulozinho aê, favorzinho...
Parabéns autora!
Beijos
Resposta do autor:
Oi Bruna, muito obrigada pelo cometario, isso é super importante no processo de criação e dá um incentivo maravilhoso! pode deixar que logo vem os próximos. :)
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]