Boa noite gente...
Segue mais um capítulo para vocês. Teremos mais uma música nesse capítulo e como de praxe, o link está nas Notas Finais.
Continuo agradecendo o carinho que vocês tem tido com a minha história.
Xeros
Capítulo 54 Carma é uma M...
Sua cabeça girava mediante tudo o que estava vivenciando e tudo o que passou e reencontrar Shay naquele mesmo lugar onde se conheceram parecia uma brincadeira das mais sádicas das senhoras dos destinos.
- Acreditarias se eu dissesse que esse era o ultimo lugar que queria estar hoje? – Cosima confessou com um leve rubor no rosto, denotando que estava para lá de encabulada.
- Acredito sim, pois você é a última pessoa que eu esperava encontrar em meu plantão. – Shay disse com a sua suavidade característica, mas sem demonstrar maiores emoções. – Ainda mais por esse motivo! – Verificou a velocidade em que o soro glicosado pingava. Ali sim Cosima pôde ver uma certa pitada de sarcasmo. Algo que não lembrava de ter visto naquela mulher.
- Bom, hoje foi uma noite de comemorações e eu meio que... Peguei pesado na Tequila. – Sorriu enquanto procurava se sentar para conversar com a outra, pelo menos, no mesmo nível. Sentiu um latejar em seu braço esquerdo e gem*u em meio a uma respiração de frustração. Só então percebeu uma tala sob uma luva ortopédica.
- Ah sim... Levarás essa pequena recordação da noitada. Uma luxação no pulso. Por pouco não quebrou. Agradeça a pouca altura do palco do El Rio. – Cruzou os braços e se posicionou mais próxima da janela revelando que havia cortado os cabelos e eles estavam numa tonalidade de louro mais acinzentado, dando-lhe uma expressão de mais maturidade.
- Como sabes que foi no El Rio? – Estava verdadeiramente curiosa. Mas pensou que, quem quer que a trouxe ali havia dito.
- O aniversário da Nomi! Eu também fui convidada, mas não pude ir. – Limitou-se a apenas dizer isso. Ela havia optado por privar-se momentaneamente daquela celebração, pois sabia que certamente iria reencontrar com Cosima e não tinha a certeza se queria passar por aquilo, embora soubesse que, mais cedo ou mais tarde, se esbarrariam, pois frequentavam muitos lugares em comum e compartilhavam amizades. Ficou até aliviada quando precisou cobrir um colega no plantão da noite, já que teria a desculpa perfeita. Contudo, quando recebeu o prontuário dela, precisou rir da ironia do destino.
- Droga! – A paciente praguejou, levando uma das mãos a cabeça que estava pesada, ainda sob os estragos do álcool em seu organismo. – Acho que estraguei o momento de Nomi e Amanita. Elas têm toda a razão em ficar com raiva de mim. – Tapou os olhos com os braços.
- Cos... Elas são suas amigas. – Shay se aproximou e sem pensar, tocou-lhe a perna, causando um sobressalto mútuo. Procurou se recompor antes que o clima estranho ficasse insuportável. – Além do mais foram elas que lhe trouxeram aqui e me imploraram para mandar notícias assim que você acordasse. – Sacou o celular do jaleco e começou a buscar um contato e digitar uma mensagem. – Pronto! Devidamente avisadas.
Cosima sorriu timidamente em agradecimento e ficou encarando a mulher diante de si por mais tempo do que gostaria ou deveria. Shay sentia o peso do olhar da mulher e não conseguiu discernir muito bem o que estava sentindo com aquela observação. Fingiu com afinco estar bastante interessada no prontuário dela, cujas poucas informações já sabia quase de cor.
- Shay? – Ela finalmente falou, quebrando o silêncio e adicionando mais desconforto para aquela situação.
- Hum? – Relutou em erguer os olhos para encará-la e estava certa em seu receio. Sempre se perdia no olhar caloroso e acolhedor dela e tê-la ali tão perto mexia com ela como não gostava em nada.
- Você está bem? – Sua voz era fraca e denotava dúvida e insegurança. E vê-la amassando o lençol só reforçava essa ideia.
- Estou sim, apenas um pouco cansada, pois já fazem quase 24 horas que estou acordada. – Massageou a própria nuca.
- Sim, mas... – A ressalva alertou a loira que involuntariamente enrijeceu sua postura, temerosa do que estava por vir. – Eu não me referia apenas a hoje... É que não nos vemos há algum tempo...
- Bom... Lembra da minha pesquisa de especialização? – Cosima apenas anuiu positivamente com a cabeça. – Estou concorrendo ao Prêmio Lesker de Medicina. – Disse com sincero orgulho embora a humildade fosse um traço importante de sua personalidade. Cosima arregalou os olhos, pois sabia que aquele era um prêmio de grande prestígio e importância e certamente teria um peso enorme na carreira de Shay.
- Nossa Shay! Meus parabéns.
- E... A pesquisa tem tomado praticamente todo o meu tempo desde que voltei da Espanha. – A empolgação inicial foi esmorecendo quando a conversa se aproximava do momento do término delas, visto que Shay fora para Barcelona assim que elas terminaram.
- E como está a capital da Catalunha? – Procurou fugir do tema, porém foi em vão.
- Linda e camaleônica como sempre, mas confesso que... – Baixou os olhos e depois os ergueu para olhar pela janela. – Não consegui curtir muita coisa. Não estava realmente no “clima”. – Encarou-a com um pouco de dureza e pesar. Cosima engoliu em seco, pois viu traços de rancor e mágoa nos lindos olhos azuis dela. E não poderia condená-la por aquilo. Havia magoado profundamente o coração de Shay, ferindo e frustrando os sonhos que a mulher tinha com ela e, de repente percebeu que possuíam muito mais em comum agora que estava no mesmíssimo lugar que ela.
- O carma é uma merd*! – Mordeu o lábio inferior e atraiu a atenção de Shay que a principio não compreendeu do que se tratava, mas logo imaginou ao que ela estava se referindo. Não sabia exatamente o que havia acontecido, apenas foi surpreendida com a notícia do retorno repentino de Cosima e que ela viera sozinha. O que só poderia significar que algo muito sério deveria ter acontecido entre ela e Delphine. Porém, não conseguiu responder nada naquele instante, apenas sentiu uma estranha compaixão pela mulher diante de si.
Muitos lhe disseram ao término da relação que ela deveria se ater ao sentimento ruim que foi deixado, pois isso iria lhe ajudar a superar a dor, mas ela não era assim, além do mais o que sentia por Cosima era intenso demais para que ela pudesse se quer pensar em odiá-la. Pelo contrário, desejava realmente que ela fosse feliz mesmo que com outra pessoa.
E com o tom amargo na voz da morena, ela teve a certeza que o estranho comportamento dela que culminou com um semi coma alcoólico só poderia significar uma fossa homérica. E a raiva que experimentou naquele instante não era direcionada para a mulher perdida e magoada diante de si e sim para quem causou aquela dor.
- Cos... Eu não sei ao certo o que aconteceu...
- Shay... – Teve sua fala silenciada.
- E nem preciso saber. – Gesticulou com uma mão estendida simbolizando que não queria ser interrompida. – Na verdade... Eu segui a minha vida... – Procurou se manter firme, embora estivesse praticamente desmoronando pela presença da mulher que amava diante de si e extremamente vulnerável.
A aparente frieza de Shay pegou Cosima de surpresa e ela não conseguiu esconder essa reação, o que provocou um arrependimento absurdo na loira.
- Eh... Fico muito feliz com isso Shay... – Gaguejou aquelas palavras, pois não sabia se estava sendo realmente honesta. Suas emoções estavam caóticas e seu discernimento estava bastante comprometido. O nome da Dra. Davydov sendo chamado pelos alto-falantes do hospital salvaram ambas de uma conversa ainda mais desagradável que se instalara entre elas.
- Essa é a minha deixa! – A loira se afastou da cama. – Além dessa bolsa de soro ainda irás tomar mais uma, por precaução, depois poderás ir para casa. – Disse já sob a soleira da porta do quarto, dando passagem para a enfermeira que trazia o segundo soro.
- Shay?
- Sim... Ainda passo aqui antes de você sair. – Ela disse sorrindo docemente e saiu rumo ao seu chamado.
Assistiu a não tão gentil enfermeira trocar o seu soro e nem se quer lhe olhar nos olhos. Bufou em desdém para a mulher que nem se dignou a lhe desejar um bom dia, apenas pôde ver o julgamento estampado no olhar da mulher de meia-idade e cabelos tingidos num laranja fogo. Certamente estava sendo condenada por ela, pois estava ali devido ao exagero na bebida. E findou que ela mesma começou a se condenar por ter tomado péssimas decisões naquela noite.
Já se passaram dois meses desde que Delphine terminou com ela e a dor, mesmo escondida sob várias camadas de mágoa, continuava a feri-la com a mesma intensidade e estava odiando se deixar levar daquela maneira.
E ali, sendo julgada por uma total estranha, decidiu que jamais faria algo assim novamente. Se teria de conviver com a dor, que fosse, mas procuraria viver sua vida e tentar deixar Delphine Cormier para trás de uma vez por todas.
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Se sentindo um pouco melhor ao fim dos soros que precisou tomar, decidiu que já estava na hora de voltar para casa. A desagradável dor de cabeça e o vazio em seu estômago lhe diziam que o domingo seria regado a uma bela ressaca, mas sabia que merecia aquilo. Naquele instante, tudo o que ela queria era um bom banho e jogar-se em sua cama. Olhou as roupas que teria de usar e pensou que o seu vestido e botas, que arrasaram na noite anterior, nada combinavam com àquela hora da manhã.
“Paciência!”
- De saída já? – A voz de Shay chamou sua atenção.
- Sim... Precisarei fazer uma belíssima “walk of shame!” – Gesticulou indicando o seu modelito. Viu que a loira sorriu da sua brincadeira, mas esse sorriso se desfez quando o olhar dela demorou demais sobre si. Cosima precisou pigarrear para acordar a loira de seu “transe”.
- Mas, quem virá busca-la? – Tentou disfarçar o embaraço enquanto ajustava sua bolsa sobre o ombro.
- Ninguém! – Cosima disse checando se o seu cabelo estava num nível de bagunça socialmente permitido.
- Está lindo... – Shay não se conteve e soltou um elogio mais escancarado. – Gostei do novo visual. – Indicou a mudança radical de Cosima sem os dreads.
- Fazia muito tempo que eu estava com os dreads e quis mudar... Sabe? Virar a página. – Gesticulou como só ela fazia.
- Combinou mesmo com você! Mas... Como assim ninguém vem lhe buscar? – Depositou ambas as mãos na cintura.
- Não quis incomodar ninguém a essa hora da manhã, mais do que já o fiz, não é? Pegarei um taxi ou um uber, sem problema algum. – Caminhou em direção a porta ainda sob a observação de Shay.
- Cosima?
- Eu! – Ela girou no próprio eixo e viu que a mulher vinha em sua direção para acompanhá-la.
- Você vem comigo! – A puxou gentilmente pelo braço, fazendo-a sair do caminho que levaria a entrada principal do hospital e acessaram uma porta que dava para a escada de emergência. Não teve tempo de responder ou protestar, estava com os movimentos ainda letárgicos devido ao efeito das medicações tomadas.
Após descerem dois lances de escadas, Cosima percebeu que estavam em um estacionamento subterrâneo e reservado para médicos e funcionários do hospital. Estava um pouco movimentando devido a troca de plantões e as duas pararam diante de um New Beetle azul bebê.
- Não sabia que estavas de carro! – Cosima disse assim que ouviu o som característico do destravar de portas.
- Pois é... Além do hospital estou atendendo numa clinica popular em Salsalito. – Disse abrindo a porta para que Cosima entrasse. Já sentada no pequeno, mas bastante confortável veículo observou mais atentamente a mulher sentada ao seu lado. – Então preciso ir até lá dois dias na semana, e estava ficando inviável de ônibus. Vamos? – Lhe sorriu já com o carro ligado.
Seguiram tranquilamente passando pelas ruas pouco movimentadas devido a hora da manhã de domingo. Conversaram sobre as incríveis mudanças que também aconteceram com Shay e Cosima realmente se surpreendeu como em tão pouco tempo, ela poderia estar tão diferente e ao mesmo tempo representar algo tão familiar.
- Chegamos! – Estacionou diante do Rabbit Hole e ficou observando a fachada do café onde esteve incontáveis vezes, mas que desde que retornara para os EUA, não havia pisado lá. Haviam muitas recordações para alguém que estava com o coração partido. – Sinto falta do Maltado de banana brasileira com waffles para o café da manhã. – Suspirou.
- Pois então venha que preparo para você! – Abriu a porta do carro, mas não saiu esperando a resposta da outra.
- Cos... Eu acho que não deveria...
- Shii... Deixe de bobagem! Eu não posso retribuir a gentileza da carona e o cuidado comigo? – O que mais Shay desejava era sair daquele carro e aceitar o convite, mas ao mesmo tempo, não tinha certeza se seria saudável se reaproximar de Cosima, que naquele momento já estava do lado de fora, na frente do carro, com os braços abertos, tentando “impedir” que ela partisse com o carro. Sorriu daquele gesto e percebeu que, apesar de todas as mudanças de visual, ela continuava a mesma pessoa. E que como sempre, conseguia o que queria. Desligou o carro e cedeu ao pedido.
A cafeteria ainda estava fechada quando entraram. E assim que passou pela porta, o cheiro tão familiar acertou Shay em cheio, e parecia que havia estado ali no dia anterior. Sentiu seu coração disparar enquanto assistia Cosima passar para trás do balcão e mergulhar na cozinha.
- Venha! – Demandou. Shay foi até lá com certo receio e silenciosamente a observou separar os ingredientes e bate-los no liquidificador enquanto a massa de waffles já assava na máquina adequada. – Mel, Chantilly ou Chocolate? – Perguntou o que ela queria como acompanhamento. A cara serelepe de Shay respondia por ela. – Os três! – Riram juntas e comeram aquela deliciosa refeição enquanto conversavam alegremente sobre possíveis outras combinações para aquele prato.
- Bonito Dona Cosima! – A voz raivosa de Amanita se vez ouvir assustando as duas.
- Nita? – Virou-se para a amiga e viu que ela estava parada no meio do café segurando a mão de Nomi que apenas ria da cena. – O que foi que eu fiz?
- O que você fez? – Bufou! – Acabamos de vir do hospital onde a srta deveria estar para ser buscada por nós! Ai chegamos lá e você não está mais...
- Mas veja só Nita... Ela está bem melhor, não é mesmo? – Nomi se referia a cena das duas mulheres, que outrora formaram um belíssimo casal, se dando tão bem novamente. Contudo, a reação de Amanita não foi tão efusiva quanto a da sua noiva.
- Desculpem meninas! Minha culpa! – Shay ergueu uma mão e levou a outra ao peito. – Eu deveria ter avisado que a Cos havia tido alta e que... Eu dei uma carona para ela.
- Mas como você está querida? – Nomi envolveu Cosima pelos ombros.
- Confesso que após tanta glicose na veia e todo esse açúcar aqui, estou bem melhor. – Falou ainda com um pedaço de waffle na boca. – Por falar nisso gente... Eu queria pedir desculpa por ontem... – Baixou a cabeça verdadeiramente envergonhada.
- Cos... Me poupe né? Quem nunca tomou um porre para esquecer um coração partido levante a mão! – Nomi exigiu. – Além do mais, foi a primeira vez em que você se divertiu de verdade desde que retornou. E... Cantou lindamente durante o meu pedido de casamento. – Abraçou Amanita que ainda estava estranhamente em silêncio.
- Gente, meus parabéns! Eu soube do noivado! – Shay se levantou e abraçou as amigas e teve o anel de Nomi quase esfregado em seu rosto, causando gargalhadas em Cosima.
- Faz tempo que não lhe vejo sorrindo assim. – Amanita quase cochichou em seu ouvido e indicou Shay com um movimento de queixo. Cosima fingiu não ter compreendido a indireta da amiga e continuou sugando o restante de seu maltado de baunilha e banana.
- Bom meninas, o papo está maravilhoso, mas as 24 horas de plantão estão cobrando por minha cama. – Shay se levantou, anunciando sua saída. – Cos, muitíssimo obrigada por esse café da manhã maravilhoso. Matei a saudade... Do meu maltado favorito! – A pausa dramática não escondeu o real significado do que ela disse e todas as quatro compreenderam perfeitamente.
- Tudo bem Shay... Mas antes de ires, precisamos registrar esse reencontro. Como nos velhos tempos. – Amanita sacou o celular da bolsa e se posicionou para tirar uma selfie. Tomou cuidado de enquadrar as quatro e clicou várias vezes, inclusive conseguiu capturar o exato momento em que Cosima olhou debilmente para Shay, que a abraçou pelos ombros.
- Agora vou mesmo. Nita, me manda a foto tá? – A médica se despediu soltando um beijo já da porta. Ela demorou o olhar um pouco mais do que deveria em Cosima e piscou um dos olhos para ela.
- Shay? – Surpreendendo a todas, Cosima correu até a porta do café e a alcançou antes que ela ligasse o carro. Gesticulou para que a moça baixasse o vidro. – Na próxima quarta-feira teremos um sarau musical aqui no café e eu... Gostaria que você viesse.
A loira foi totalmente pega de surpresa pelo inesperado convite. Lembrou-se de que negou o chamado de Nomi para a festa justamente porque temia reencontrar Cosima, e poucos dias depois, a recebeu em seu hospital e acabou tomando café da manhã com ela. Tudo exatamente como menos esperava. Em seu íntimo, a confusão de sentimentos dificultava ainda mais a sua tomada de decisão, pois a razão dizia para ela recusar educadamente, enquanto que seu coração já havia aceitado.
- Cos... Não posso prometer, pois sabes como é a vida de uma médica, mas... – Observou o jeito quase infantil que ela juntava as mãos. – Farei o possível!
- Ótimo! Te vejo na quarta. – Disse com um tom que indicava que não aceitaria recusas. Shay a observou retornar para o interior do café e pensou consigo mesma.
“O que porr* você está fazendo?”
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O frio, a escuridão e um desagradável cheiro de algo muito antigo que lhe doía nas narinas, contribuíam para aquela sensação de quase sufocamento. Buscava o ar e ele entrava em seus pequenos pulmões com dificuldade. Caminhava com receio, pois não conseguia enxergar bem onde estava. Tateava as paredes que pareciam ser de pedra áspera e em alguns pontos havia um tipo de musgo verde, indicando que aquele lugar onde estava era bastante antigo.
Forçou seus olhos e viu que mais adiante havia alguma luz que parecia dançar contra a parede e o que começou a lhe afligir ainda mais eram os sons que vinham daquela direção. Sabia que devia ir até lá, pois esse era o motivo de estar ali. Fora levada até aquele local, até aquela ocasião por alguma razão. Sentia que precisava ver algo. E assim caminhou para a origem daqueles sons aterradores.
Quando chegou mais próxima, percebeu que os sons que lhe assustavam eram gritos, gemidos e um choro tão dolorido que era capaz de lhe roubar toda a vontade de ser feliz. Concentrou-se para tentar compreender o que as vozes diziam. Inicialmente não compreendia o idioma que era falado ali, mas aos poucos, assim como seus olhos se acostumaram a baixa luminosidade, seus ouvidos traduziram as palavras complexas que ela ouvia.
- Não deves fazer isso minha senhora... – Uma voz feminina que parecia pertencer a uma mulher de mais idade suplicava enquanto outras repetiam a mesma frase.
- Isso é uma loucura... Nada assim jamais foi feito! – Outra mulher falava com mais segurança, embora pudesse ser percebido o temor.
Ela chegou bem próxima, ao ponto que assim que entrasse no próximo salão, veria o que estava acontecendo, porém o pavor que experimentava naquele instante lhe tirava as forças. Olhou ao redor e só então percebeu que haviam coisas pintadas nas paredes, pensou se tratarem de desenhos, mas logo reconheceu os símbolos dos livros e pergaminhos que estudara. Eram inscrições antigas. O idioma sagrado das antigas fundadoras da Ordem. Só então percebeu que estava em um lugar que não era mais tão estranho para si. Já havia estado ali, embora aquilo parecesse impossível demais.
O pavor ganhou ainda mais força em seu pequeno coração quando um gemido agonizante se fez ouvir em meio aos choros e as vozes que discutiam.
- Deixem-me morrer!
Aquela voz... Ela sabia quem era, ela a conhecia...
Não podia ser. Ouviu novamente e mais outras tantas vezes aquela terrível frase.
- Deixem-me morrer! Por favor mãe... Me deixe ir! – Teve a certeza de quem falava.
- Delphine! – Sussurrou e tomada por um desespero nunca antes provado em sua curta vida, mergulhou naquele ambiente. - DELPHINE? – Gritou com toda a força de seus pulmões, mas não foi ouvida. Nem por ela, nem por mais ninguém ali presente. Caminhou por todo aquele salão e viu que só havia mulheres lá dentro. Algumas estavam ajoelhadas ao chão, balbuciando palavras que ela não conseguia compreender. Viu também que duas estavas caídas num canto e quando caminhou até elas escorregou, batendo a cabeça no colo de uma delas. A mulher não se moveu, pois estava morta.
Ela tentou se levantar, mas voltou a escorregar e percebeu que o chão estava repleto de uma substância pegajosa e escorregadia. Tocou nela e encarou sua mão encharcada de...
- Sangue! – Arrepiou-se por inteira ao perceber que muito dele escorria de uma mesa retangular de pedra. Sua pouca altura dificultava a sua visão, mas havia alguém sobre aquela mesa, e certamente deveria estar bastante ferida.
- Não Manu! – A menina arrepiou-se ao ter seu nome pronunciado naquele ambiente grotesco e agoniante. Contudo, não era a ela que chamavam. Foi então que se afastou no exato momento que viu uma figura ficar de pé sobre a mesa de pedra. Imediatamente reconheceu a imponente figura daquela mulher. Já a havia visto antes, numa belíssima tela que lhe fora mostrada por Delphine.
- Emanuelle Chermont! – Disse em total devoção, e juntou-se as demais mulheres que estavam ali e ajoelhou-se. – Manu!! – Seus grandes olhos azuis se arregalaram diante da grandiosidade daquela mulher. Aquela a quem escolheu herdar o nome e ali, diante dela, teve a certeza da escolha.
Ela estava de pé, com os cabelos soltos e o rosto e o vestido verde manchados de sangue que ainda brilhava sob as luzes das velas que mal iluminavam aquele ambiente. Numa das mãos ela segurava algo. Parecia ser um livro. A pequena forçou os olhos para tentar identificar qual era aquele misterioso livro, mas antes que conseguisse fazê-lo, assustou-se com a entrada desesperada de outra mulher.
- Eles estão no castelo! – Foi o que ela disse. Percebeu que o temor que pairava naquele salão foi convertido num terror urgente. Todas focaram na mulher de pé diante delas, mas antes que ela pudesse dizer algo um gemido mais agudo dado por quem estava deitada sobre a mesa capturou todas as atenções.
Emanuelle ajoelhou-se desesperada e a segurou nos braços...
- Delphine! – A menina voltou a berrar assustada. A mulher mortalmente ferida sobre a mesa era sua querida Delphine, porém ela foi chamada por outro nome.
- Evelyne!... Por favor, não desista minha filha. – O choque do que acabou de ouvir foi tamanho para a pequena menina, levando-a a fechar os olhos e tapar os ouvidos se sentindo mergulhar em plena confusão. Não suportava mais permanecer ali e desejou, com toda sua força. E então, quando abriu os olhos percebeu que não estava mais no chão e sim sobre a mesa de pedra, segurando o corpo moribundo de Delphine. Apavorou-se quando viu o quão o amado rosto estava desfigurado com hematomas e cortes de onde minava cada vez menos sangue. Olhou para baixo e viu que sobre o abdômen dela havia muitas bandagens encharcadas do vermelho líquido vital, que também manchava os dourados cachos dela.
Nada fazia sentido. O que significava tudo aquilo? Sua infantil mente não conseguia discernir tamanha brutalidade. A ouviu mais uma vez.
- Deixe-me ir mamãe... Não quero viver sem ela... – E a viu fechar os olhos pela última vez.
- Delphine!!! – Chamou desesperadamente por ela, a chacoalhou, mas ela não mais reagiu. – NÃO!!! – Lágrimas copiosas escorriam de seu rosto infantil.
- MANU! – Levantou o rosto que estava afundando sobre o queixo sem vida de Delphine, pois a ouviu lhe chamando, contudo a mulher permanecia imóvel e sem vida. – Vem comigo Manu! – Olhou ao redor e não via de onde aquela conhecida e surreal voz estava vindo. – Por favor, volte! – O desespero naquela voz lhe tocou profundamente e num giro brusco em sua mente, se viu na posição invertida. Ela agora estava deitada sobre a pedra e que Delphine estava sobre ela, lhe chamando.
- Del? – A respondeu com um filete de voz e com um alivio partilhado por ambas, a viu com um imenso sorriso nos lábios, a despeito das lágrimas que lavavam seu rosto.
- Ai Manu... Você voltou pra mim!
- Del! Você tá viva!
Disseram ao mesmo tempo enquanto se abraçavam, levando as demais mulheres presentes ali às lágrimas.
Após um demorado abraço, Manu olhou com mais atenção ao redor e percebeu que estava no mesmo salão com o qual acabara de sonhar, contudo ele estava um pouco diferente. Mais limpo e com lâmpadas estrategicamente posicionadas. Só então percebeu que a vários metros de altura havia uma claraboia, uma abertura no teto que dava para ver fragmentos do céu azul sobre elas.
- Finalmente você retornou criança! – Siobhan estava ao seu lado, com a expressão aflita, porém aliviada e apertava sua mão.
- Graças à deusa! – As velhas anciãs clamaram em uníssono, arrancando um olhar de quase reprovação de Delphine. Tinha sido ela que havia mergulhado nos sonhos da pequena menina e a trazido de volta. Esse era um dom que jamais havia manifestado nela até a primeira vez que precisou trazer a criança de volta a realidade.
- Onde estamos Del? – A vozinha dela capturou sua atenção.
- Tudo bem Manu. Estamos em casa. – A loira lhe disse enquanto a ajudava a se sentar.
- Minha cabeça tá estranha... Eu tive um sonho assustador... – Ela acariciava a testa diante de uma Delphine completamente aflita e angustiada. A menina acabara de ter outra visão do passado, algo que seria impossível para alguém que não esteve naquele lugar nem nunca ouviu relatos daquela terrível noite. – Ei! – Um grito mais acentuado assustou a todas.
- O que foi Manu?
- Onde está a Andrômeda? – Olhava para todos os lados procurando a sua gatinha.
- Está lá em cima com a Helena! – S respondeu mais aliviada. – E ela está super ansiosa para reencontra-la. – A segurou no colo com todo o cuidado.
Aos poucos, todas foram deixando aquele especial recinto, exceto Delphine que permaneceu encostada à mesa de pedra com o olhar perdido. Quando se viu completamente sozinha, levou ambas as mãos ao rosto e escorregou pela lateral áspera até cair ao chão em prantos, arrebatada pela enxurrada de emoções que todas as lembranças daquele lugar lhe traziam.
Ali ela vivenciou os momentos mais terríveis de sua vida. Fora sobre aquela mesa que todo o seu tormento imortal teve início. Também fora ali que foi salva após ter recebido aquele fatídico tiro que quase pôs fim a seu sofrimento. E agora, fora ali que conseguiu trazer a sua pequena e amada Manu de volta.
- Eu detesto esse lugar! – A voz mais amiga que conhecia lhe trouxe de volta.
- Temos isso em comum também! – Respondeu à Helena que estava parada diante dela. A morena evitava ao máximo entrar ali, pois sabia tudo que se passara lá e também esteve presente na caótica ocasião após o atentado contra Delphine. - Manu? – Questionou já enxugando as lágrimas.
- Brincando com a gata e devorando uma generosa porção de sorvete de limão. – Sentou-se ao lado dela e a observou por alguns instantes. Delphine recostou a cabeça na pedra e fechou os olhos suspirando pesadamente.
- É ela Helena... – Disse baixinho. A morena não disse nada, pois sabia que naquele momento precisava deixá-la desabafar. – Minha... Mãe. Ela voltou para mim... Não existe mais nenhuma dúvida disso. Eu relutei em aceitar quando a Siobhan me sugeriu tal hipótese, mas tudo o que essa menina é capaz de fazer... Todo esse poder em um ser tão pequeno... É ela. E essas visões que ela tem... Assim como a Cosima teve, são memórias profundamente guardadas em suas almas. – Ela sorriu levemente.
- Isso explica muita coisa. – Helena brincou, tentando suavizar o pesado clima e até conseguiu arrancar um sorriso mais escancarado de sua amiga, mas esse não perdurou.
- Mas tanto poder tem um preço muito alto para alguém tão pequena. – Lamentou. – Dessa vez ela ficou adormecida por muito tempo.
- Dois dias?
- Exato! Eu preciso descobrir como ajudá-la a lidar com todo esse poder. Eu devo isso a ela.
- Ela é realmente muito poderosa não é mesmo? – Helena perguntou preocupada.
- Demais Helena. Eu ousaria dizer que ela é ainda mais forte do que a minha mãe... Acho até que... – Pausou sua fala, pois sabia que aquela constatação poderia ser assustadora demais. – Ela é mais poderosa do que eu.
- Isso é impossível Delphine! – A morena se levantou verdadeiramente indignada com aquela afirmação.
- Não Helena! Eu estive na mente dela. Veja tudo o que ela pode fazer! – Levantou-se e já caminhava ao lado da sua Protetora para fora daquele salão, que teve suas luzes apagadas assim que passaram pelo alto e ornado portal de entrada. - Ela é uma pitonisa... Só isso já faz dela a mais poderosa de todas nós e S sabe disso.
- Eu acho até que a Siobhan... Tem medo dela. – Cochichou assim que atingiram o topo da escada que dava acesso a copa do castelo no andar principal da Fundação Ártemis.
- E ela está certa em temer algo que não pode controlar.
- Ela talvez não possa... Mas tenho certeza que você sim.
- Eu sinceramente não sei. – Confessou tristemente enquanto assistia a pequena gata preta Andrômeda mergulhar e “mastigar” o bagunçado cabelo loiro de Manu.
Estava diante da reencarnação da mulher que mais respeitou em toda a sua existência e também foi inevitável não se compadecer com a menina. A cada dia que passava aquela pobre criança causava ainda mais medo e receio nas mulheres da Ordem e ela sabia exatamente como era aquela sensação, pois passou exatamente pelo mesmo.
Desde que nasceu causou temor nas mulheres da Ordem, que temiam o que ela poderia fazer e elas estavam certas em temê-la. Fez coisas terríveis em sua juventude e foi muito cruel com sua mãe, algo que se arrependia até os dias de hoje. Secretamente jurou para si mesma que faria tudo ao seu alcance para ajudar a pequena Manu, assim como a sua mãe lhe ajudou. Ela foi a única que não a temeu e se não tivesse sido por ela, não estaria ali, naquele dia podendo cumprir a sua missão.
- Manu, acho que está na hora de um bom banho! – Esticou a mão para a menina que a aceitou de pronto.
- Vamos Andrômeda! – Chamou e a pequena bola de pelos saltou do sofá e as seguiu com dificuldade pelas escadas.
- Porque Andrômeda? – Questionou enquanto ajudava a criança a se despir.
- Gosto de mitologia grega. – A criança disse enquanto corria com a gatinha saltando ao seu redor. – Além do mais Andrômeda é filha de Cassiopeia. – Delphine paralisou diante daquela referência e a menina percebeu aquela reação e caminhou de volta para ela e lhe pediu seu braço direito. – Cassiopaia! – Disse com expressão divertida após indicar e acariciar os sinais no antebraço de Delphine que a observou surpresa. Aquela menina era realmente impressionante.
- Eu gosto de Mitologia sabia? – Delphine a ergueu e a colocou dentro da imensa banheira.
- Cosima também gosta! – A menina disse tranquilamente enquanto jogava água no rosto. Delphine sentiu uma pontada em seu coração ao ouvir aquele nome, Havia tido pouquíssimo tempo para pensar nela nos últimos dias devido a aflição com o estado da menina. – Quando ela volta? – Aquela pergunta lhe atingiu em cheio.
- Eu... Eu não sei Manu. – Era evidente a tristeza da mulher sentada na beirada da banheira e essa não passou desapercebida pela pequena. – Talvez demore um tempinho. – Mentiu para menina e para si mesma.
- Tá tudo bem Del? – Lhe tocou a coxa, deixando uma pequena mancha de água. A mulher olhou para a criança e foi quase como experimentar um Deja vú... Lá estava àquela mesma expressão, aquele mesmo olhar terno e acolhedor que só sua mãe lhe lançava.
- Vai ficar tudo bem! – Se esforçou para disfarçar a dor que exigia vir a tona. Sorriu e espirrou um pouco de água no rosto da criança que gargalhou alto. Mas logo cessou seu sorriso.
- Del... O que está acontecendo comigo? – Exigiu saber. – Por que eu tenho esses sonhos estranhos? Eu não quero mais tê-los. – Disse com o queixo tremulo.
- Ei, ei... – Segurou-lhe o rosto. – Eu estou aqui para ajudá-la a compreender tudo isso. Não estás mais sozinha.
- É que eu sinto que... Que... – Gaguejou e franziu a testa, procurando as palavras certas para se expressar. – Eu devia ver algo... – Olhou com os redondos olhos azuis arregalados. – Você estava lá...
- Sim Manu... Eu fui buscá-la!
- Não! – Disse de forma enfática e se levantou. – Você estava no meu sonho... Em um outro tempo... E a Emanuelle Chermont também estava lá! – Sorriu enquanto saia da banheira e se enrolava na felpuda toalha verde musgo. – Ela era incrível! Tão poderosa... Tão linda! – Rodopiava em direção ao quarto, usando a toalha como uma espécie de capa. Andrômeda saltitava e tentava pegar a bainha da toalha.
- Foi só um sonho...
- Não mesmo... É algo mais! – Ergueu a mão silenciando a poderosa Mestra da Ordem. – É como se eu estivesse... Me lembrando de tudo aquilo. – Delphine enrijeceu sua postura, preparando-se para explicar o inexplicável a uma criança tão nova.
- Manu... Você sabe que é uma menina especial. Diferente da maioria das outras crianças, pois tens certos...
- Poderes! – Disse orgulhosa assim que venceu a luta contra uma blusa que tentava vestir sozinha, não aceitando a ajuda de Delphine.
- Eu iria dizer dons... Mas “poderes” podem ser usados também. – Sorriu ao gesticular as aspas com a mão e sentou-se com ela na imensa cama.
- Mas você também tem “dons”... – Brincou de imitar o mesmo gesto da ênfase na palavra desejada.
- Sim, tenho!
- A Sr S também tem!
- Isso mesmo Manu... Todas somos especiais.
- A Tia Helena também tem... Só não descobri ainda qual é! – Coçou a cabeça e atrapalhou um pouco as escovadas que a mulher desferia em seus longos cabelos. Delphine interessou-se pelo que ela disse.
- Mas como sabes que todas nós temos poderes?
- Eu vejo nas cabeças delas... – Disse com a sua usual naturalidade, referindo-se a incrível capacidade de ver além das palavras ditas. Dom que só a própria Delphine possuía. – Por isso eu sei que a Sra. S consegue... – Estalou os dedinhos no ar, como se buscasse as palavras que ainda faltavam em seu infantil vocabulário. – Tipo... – A mulher estava achando adorável o jeito como a menina estava lidando com tudo o que poderia enlouquecer qualquer pessoa, por isso tentou conter o ímpeto de responder por ela, além do mais, isso também fazia parte de seu treinamento e também precisava ter a real noção dos limites dos dons de Manu. Se é que existiam. – Ela meio que pode ver os dons de outras pessoas... Não! – Virou-se e ficou de joelhos diante dela. – Ela enxerga dentro das pessoas... – Gesticulou com as mãos, como se desenhasse um corpo humano no ar.
- Isso mesmo. Siobhan consegue sentir as pessoas, as almas delas. Ela é muito poderosa! – Enalteceu e a menina apenas concordou com um aceno de cabeça.
- Eu gosto da Sra. S!
- Claro! Ela faz todos os seus gostos. – Brincou, levando a menina a cruzar os braços numa momentânea birra que logo foi dissipada.
- Mas e a Tia Helena? Eu não consigo ver os poderes dela... – Fez uma expressão engraçada, resumida na pequena e quase imperceptível ruga que se formava entre suas sobrancelhas sempre que ela forçava sua mente.
- Isso porque esse é o dom da Helena. Ela é imune... – Percebeu o estranhamento da pequena com aquela palavra. – Nenhum outro poder pode atingi-la, por isso você não consegue ver dentro dela. – Apertou a ruga na testa dela sorrindo.
- Uau! Isso faz dela uma Superpoderosa! – Ensaiou um assovio mal sucedido.
- Isso mesmo!
- A... Cosima também é bem poderosa. – Pausou antes de mencionar aquele nome, pois apesar de não saber o motivo, ele causava uma tristeza profunda em Delphine e isso a magoava demais.
- Ela é sim. – Arriou os ombros e desviou o olhar. Sentiu a gentileza dos dedos da menina em seu queixo, demandando que ela volta-se a encará-la.
- Tudo vai ficar bem viu! Eu sei disso! – O tom de voz doce tocou fundo seu coração, obrigando-a a esforçar-se para não deixar as lágrimas que se formaram caírem.
- Mas nenhuma delas é tão poderosa quanto a grande Mestra da Ordem! – Ficou de pé na cama e rodopiou na cama, fazendo-a balançar um pouco e causar o protesto da gatinha que dormia por ali. – Desculpe Andrômeda! – Delphine riu daquele comentário. De fato possuía muitos dons, mais do que qualquer outra mulher que já fez parte da Ordem. Pelo menos até aquele momento. Fitou a menina com seriedade. – Acho que só teve uma única pessoa tão forte como você... Emanuelle Chermont! A Manu! – Abriu seus braços e os baixou em seguida, lembrando-se novamente de seu último sonho.
- O que foi? – Perguntou já sabendo a resposta.
- Del... No meu sonho eu vi a Manu e a... Evelyne... Filha dela. – Olhou com ar desconfiado para a mulher a sua frente. De alguma maneira ela já possuía as respostas, só não conseguia que fizessem sentido.
- E... – Incentivou que ela continuasse em sua linha de raciocínio.
- Ela era igualzinha a você! – Arriou sobre os próprios joelhos, como se o esforço de tentar processar tudo aquilo lhe roubasse as forças.
- Manu... – Ajeitou-se e segurou as mãozinhas dela nas suas. – Existe um motivo para a Evelyne se parecer tanto comigo. – Esperou um pouco enquanto a observava. Quase dava para ouvir as engrenagens se encaixando dentro da cabecinha dela. E num suspiro mais alto, trocaram olhares cúmplices, fazendo com que os redondos olhos azuis brilhassem com uma intensidade impressionante. – Isso mesmo... – Confidenciou seu maior segredo para ela.
- Mas... Como? – Foi tudo o que ela conseguiu balbuciar.
- Venha comigo! – Decidiu que a melhor forma de fazê-la compreender de uma vez por todas seria fazendo-a ver com seus próprios olhos.
Desceram as escadarias da Fundação passando por várias funcionárias e membros da Ordem. Caminharam pelos corredores daquela construção repleta de história que quando a menina percebeu que estava sendo levada para a área do castelo que mais desejava ir, mas que lhe era proibida, precisou controlar o seu agitado coração.
Siobhan estava na sala que dava acesso aquela área especial e surpreendeu-se ao ver a menina segurando firmemente a mão de Delphine que apenas se fez entender com um aceno de cabeça. S levantou e abriu a imensa porta de madeira, dando passagem para as duas.
Manu forçou os olhos assim que entrou, pois estava escuro, porém a medida que andavam as luzes iam sendo acesas e caminharam até o antigo elevador que havia ali. O tomaram e desceram alguns andares em total silêncio. Estranhamente a falante criança estava tão emocionada que só conseguiu emitir gritinhos e suspiros baixos de encantamento. Assim que atingiram o andar desejado, saíram e foram saldadas por duas seguranças que reconheceram Delphine de imediato. Porém, não entraram na sala do Conselho, desviando para outra porta que ficava quase escondida, por trás de uma parede de concreto maciço.
A mulher digitou um código num grande painel eletrônico e num estalo baixo, a porta foi destravada e abriu automaticamente. Deu passagem para a criança que engoliu em seco antes de entrar.
- Manu... Essa é história da Ordem... – Disse em tom sério, mas tranquilo. A menina não conseguiu acreditar no que seus olhos lhe mostraram. – Essa é a minha história! – Trancou a porta atrás delas.
- Uau! – Foi tudo o que a menina conseguiu dizer diante de tamanho estarrecimento.
______
Delphine acordou e percebeu que a noite já havia chegado, porém percebeu que havia um vazio ao seu lado. Sua atual companheira de sono não estava onde deveria, e tinha a certeza que deitaram juntas, após a criança capotar logo depois de todas as inimagináveis revelações que teve.
Sentou-se na cama ainda com a cabeça levemente pesada do sono que não fora saciado.
- Manu? – Chamou por ela, mas não obteve resposta. Alarmou-se e se levantou de pronto, pegando seu celular que repousava na mesinha de cabeceira, pensando em ligar para Helena. A menina não estava no banheiro ou em lugar nenhum do quarto. Nem se preocupou em vestir um roupão ou coisa do tipo e saiu de camisola mesmo. Passou pelo quarto de Helena que ficava ao lado do seu e percebeu que sua amiga também não estava lá. Começou a verdadeiramente se preocupar. Foi então que ouviu um som vindo de algum quarto mais afastado do seu. Era uma música. Caminhou até lá e à medida que se aproximava reconhecia a melodia.
Abriu a porta de pronto e surpreendeu-se com a inusitada cena que encontrou. A preocupação que tivera fora totalmente apagada de sua mente quando viu Siobhan, Helena e Manu dançando e cantando a plenos pulmões o refrão de How Soon Is Now do The Smiths.
(...) I am the son
And the heir
Of a shyness that is criminally vulgar
I am the son and heir
Of nothing in particular (...)
(...) am human and I need to be loved
Just like everybody else does (...)
- Vem Del! – Manu precisou gritar para ser ouvida acima da música alta. Siobhan e Helena tomaram um susto e logo caíram na gargalhada quando perceberam que foram flagradas. Siobhan correu para baixar o volume de seu aparelho de som que tocava um vinil antigo que fazia parte da belíssima coleção dela.
- Por favor, não parem por minha causa. – Sentou-se numa confortável poltrona de couro cruzando as pernas sob si.
- Desculpe Delphine... Estávamos aqui ouvindo um pouco de música e a Manu chegou. – Helena tentou justificar porque a criança estava fora da cama tão tarde. – A loira apenas ergueu as mãos e anuiu negativamente com a cabeça.
- Não tem problema algum nisso... Afinal, vocês estão apresentando boa música para ela. – Recolheu alguns LPs que estavam sobre a mesa de centro. – The Cure, Bowie... Smiths. – Indicou a melodia que ainda tocava.
- Yeah! Aumenta o volume Sra. S! – Manu pediu e foi imediatamente obedecida e logo as três voltaram a dançar e cantar sob o olhar divertido de Delphine.
Aquele cada vez mais raro momento de tranquilidade precisava ser vivido. A alegria de Manu era como um bálsamo para o seu coração ferido e enquanto percebia que todas as musicas de corações partidos pareciam servir-lhe perfeitamente, lembrou-se que há dois dias não checava as suas atualizações acerca da segurança de Cosima e se repreendeu por isso, mas não poderia ser diferente. A preocupação com o estado de saúde da menina lhe consumiu cada segundo.
Acessou seus e-mails pelo celular e leu atentamente os relatórios de Ingrid e Anne, as duas seguranças que foram designadas para proteger sua amada mais de perto. Nada parecia fora do normal, até que chegou num trecho em que era citado um porre homérico que Cosima havia tomado e que acabara no hospital. Desdobrou as pernas e debruçou-se para ler aquele relato com mais cuidado, mas logo fora tranquilizada com as informações de que tudo que a mulher precisou foram apenas doses de glicose.
Lembrou-se de como ela era fraca para álcool e que beber até cair não era do feitio dela. Foi tomada por uma repentina culpa. Parecia que Cosima estava se afastando cada vez mais... Ficou momentaneamente encantada com a mudança de visual que ela tivera, mas depois percebeu que aquilo significava que ela queria seguir uma nova vida. Seu coração doeu ainda mais e deixou de ouvir as canções que tocavam ali.
Finalizou a leitura e quase automaticamente seguiu até sua agenda, clicando na letra C. O nome dela apareceu de imediato e aquela dolorosa pequena auto-tortura teve inicio novamente. Era consumida pela vontade quase irresistível de ligar para ela, de ouvir sua voz. Até chegou a fazê-lo algumas vezes, mas desligara assim que ela atendia. Parecia uma adolescente inexperiente e que sofria após a sua primeira desilusão amorosa. Riu de si mesma e saiu da sua agenda. Passou a checar as suas mensagens que haviam se acumulado. Contudo um número chamou sua atenção. Ignorou todas as outras e clicou direto nela. Leu receosa a curta frase.
“Delphine, veja o que está acontecendo do lado de que cá do Atlântico:”
Hesitantemente, clicou na imagem em anexo e no segundo seguinte se pôs de pé completamente consternada.
- NÃO! NÃO É POSSÍVEL!– Esbravejou e no mesmo instante o som do arranhar da agulha sobre o vinil cessando a música assustou as outras.
- O que foi Delphine? – Siobhan ficou em alerta e estremeceu quando um trovão ecoou ao longe, anunciando uma inesperada tempestade. Aquilo não significava boa coisa. Voltou sua atenção para a loira e viu que seu corpo tremia um pouco. Ela ergueu ambas as mãos e as levou a cabeça, mexendo nos cabelos e andando de um lado para o outro. Apertava o celular com tamanha força, que ele estava prestes a ser esmagado. Helena aproximou-se dela e tomou o aparelho enquanto Manu era abraçada por Siobhan completamente assustada.
Assim que olhou para a tela do celular, Helena percebeu o que causou aquele brusca mudança de humor em sua amiga.
Era uma foto tipo selfie, onde havia quatro mulheres, sendo que uma delas era Cosima e a outra bem ao lado dela, com o braço sobre os ombros dela era Shay Davydov. Engoliu em seco.
Delphine ergueu os olhos assustadores, capazes que causar medo no mais corajoso dos seres e demandou.
- Ligue imediatamente para a Srta. Amanita Caplan!
Fim do capítulo
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