Capítulo 1
Berta abriu os olhos e viu a luz da manhã invadindo seu quarto escuro pelos furinhos da janela persiana, desenhando dezenas de pontos luminosos na parede.
Ela não conseguia mover seu corpo, era quase como ele não existisse. Como uma portadora da Síndrome do Encarceramento, mexia somente os olhos.
Por alguns longos minutos, esperava que o torpor que acompanhava seu corpo em todos seus despertares se esvaísse lentamente, deixando somente a apatia que debilitava seus pensamentos para trás.
"Levanta! São dez da manhã!" Sua mãe bateu a porta, e por um breve instante, Berta desejou que não fosse capaz de se mover, que pudesse não sair nunca da cama e ter que enfrentar a batalha matinal contra sua mãe, contra ela mesma.
"Quantos dias fazem que não lava esse cabelo?" Sua mãe perguntou assim que Berta sentou-se a mesa.
"Bom dia, mãe." Berta respondeu cabisbaixa, "Eu não tenho me sentido muito bem, só isso."
"Não se sente bem... Nunca se sente bem. Queria eu poder ficar o dia inteiro na cama também." Sua mãe resmungou enquanto enxugava uma xícara e servia café da térmica vermelha, e continuava "Mas alguém tem que fazer as coisas pela casa. Arrumar, limpar, fazer as compras, cozinhar, e nem para me ajudar você se presta." Sua mãe largou a xícara na mesa em frente a Berta, e o som agudo das porcelanas da xícara batendo contra e do pires fez Berta fechar os olhos como se quisesse fechar os ouvidos.
Berta tomou um gole de café, estava morno e sem açúcar, mas ela não ousou reclamar.
Sua mãe escorou-se na pia, e sacudindo a cabeça negativamente, dizia
"Você tem que se ajudar. Até quando vai viver como um zumbi, acordada de noite e dormindo de dia… não presta para nada…”
Berta já sabia de cor o script das manhãs. Sua mãe fazendo sentir-se minúscula e ao mesmo tempo enorme como um peso morto. Não que os insultos disfarçados de conselhos fossem fazer Berta sentir-se pior, não há lugar mais inferior que o fundo do poço.
Enquanto sua mãe destilava mais palavras viperinas, Berta procurava conforto em suas velhas aliadas, aquelas sempre presentes em sua vida, como filhas que precisam ser cuidadas, como pais que a protegiam, suas cicatrizes.
Corria os dedos indicadores e médio da mão direita sobre a pele macia do antebraço esquerdo levemente até encontrar os traços horizontais que rasgavam sua pele como marcas de batalha, e uma por uma, as acariciava. Sabia exatamente quantas tinha, eram 18 grandes e 27 pequenas. Lembrava exatamente quando cada uma havia nascido, a dor interna vindo à tona em sua pele, o brilho rubi do sangue acalentando sua alma por um breve instante.
Como filhas, Berta amava a todas, mas tinha a sua preferida, e essa sempre deixava por último para tocar. Quando a dor causada pela verborréia ferina da sua mãe chegava ao ápice, Berta recorria à cicatriz mais profunda que tinha, dois centímetros abaixo da linha que conecta o braço à mão, horizontal e elevada, grossa como um quelóide. Se Berta a apertasse um pouco mais fundo, doía. Uma dor que ressonava braço acima. Era como se alguém segurasse Berta pelo braço, um aperto firme dizendo “estou aqui”. Berta amava aquela cicatriz, era uma lembrança viva da vez que quase foi corajosa o suficiente, de quando quase teve a força para cortar fundo o bastante.
“Eu sei mãe, preciso melhorar.” Berta falou baixo, e tentou argumentar “A depressão…”
“Não diga mais essa palavra nessa casa! Já não basta todo o mal que causou a esta família?” Sua mãe bateu o punho contra a pia, virando de costas.
Berta não iria aguentar falar sobre aquele dia novamente. Já bastava ter que remoer sua culpa incansavelmente. Nem Narbe, sua fiel cicatriz nascida naquele dia fatídico, iria resgatá-la dessa dor. Berta precisava de alguma saída, mudar de assunto antes que sua mãe usasse suas armas mais lúgubres.
“Eu vou sair hoje mãe, tenho um encontro.”
As palavras de Berta assustaram sua mãe, que não acreditando no que ouvia, sentou-se à mesa ao seu lado e perguntou
“Um encontro? Com quem?”
“Uma garota que conheci online.”
Berta podia sentir a curiosidade de sua mãe gerando uma pequena conexão entre elas, e queria se apegar a essa linha débil com todas suas forças.
“Mas quem é essa garota?”
“O nome dela é Nina, ela é bailarina.”
Sua mãe arregalou os olhos e levantou-se novamente.
“Uma bailarina? Mas o que ela quer com você?” Sua mãe disse, gesticulando de cima para baixo com a mão em direção a Berta, suas palavras repletas de sarcasmo.
“Temos muitas coisas em comum, mãe.”
“Aff, como o quê?”
“Sofremos com o mundo ao nosso redor, muita pressão no trabalho, ela está se esforçando muito para conseguir o papel principal nessa apresentação, e também…” Berta engoliu seco, sabendo que havia falado demais.
“E também o que?”
“Nada não mãe…”
“Começou, agora termina Maria Roberta. E também o quê?”
Berta sentiu-se contra a parede, querendo continuar conversando com sua mãe, alimentando aquela breve interação, mas sabendo que suas próximas palavras iriam causar um reboliço. Sentiu vontade de ser sincera com sua mãe, de explicar como se sentia. Se usasse as palavras certas, talvez conseguisse. Acariciou Narbe embaixo da mesa mais uma vez, e disse.
“Nina também tem uma relação difícil com a mãe dela.”
“Ah, só podia ser. Tudo minha culpa não é mesmo? A causa de todas as desgraças do mundo! Nem posso imaginar o que você fica inventando sobre mim para estranhos! E tudo para quê? Para que fiquem com peninha de você? A pobre coitadinha da Berta que tem a pior mãe do mundo? Eu não aguento mais!”
“Não mãe, não é isso não. A gente só conversa sobre nossas vidas” Berta tentou apaziguar.
“E conversou como tudo o que eu faço é por ti e pelo teu pai? Que desde criança você só causa problemas? Que fica inventando doenças imaginárias para chamar atenção? Eu nunca vi nada igual na minha vida! Queria ver as outras mães com uma filha assim. Nem quando você contou que era lésbica eu me importei. Qualquer outra mãe ficaria arrasada, mas não a trouxa aqui, nunca dei bola. Isso que eu ganho em troca.”
Berta apertou Narbe mais fortemente, em movimentos circulares, a dor à ancorando aquele momento para que evitasse bloquear mais uma vez tudo que sua mãe dizia.
“Eu sei mãe, você nunca se importou.” Berta disse em tom baixo, o que para sua mãe era a confirmação de seu triunfo e para Berta a ratificação de seu fracasso como mãe.
“Vai então, some da minha frente e vai dar jeito nessa sua vida.”
Berta levantou-se e caminhou de volta em direção ao quarto, mas sem antes escutar o abuso final da manhã
“E vê se não se veste como um homem, se essa garota quisesse macho, pegaria um de verdade.”
Fim do capítulo
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olivia
Em: 23/07/2018
Ai meu deus , quanto sarcasmo,agradeço a mãe que tivi, olha que epôca era os anos 50. Estou curiosa também, em conhecer a Nina! Autora, já me agradou de cara!! Bjs
Resposta do autor:
Oi Olivia, eu também agradeço ter uma mãe maravilhosa, nada como essa mãe da Berta.
Que bom que gostou do começo da história, são cometários como o teu que nos estimulam a continuar escrevendo!
Muito obrigada e boa leitura
M.
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