Capítulo 2
Ao acordar pela manhã, sentiu o forte aroma de café, vindo da cozinha. Amanda já havia se levantado, e preparava o desjejum.
Visivelmente abatida, em poucos segundos, apareceu na sala com uma bandeja, indo sentar-se no sofá com a mulher, precisavam se alimentar antes de mais um dia de trabalho.
- Bom dia. Amo você. – Beijou-lhe a testa, como de costume àquela hora.
- Bom dia. Também amo você. Vem pra baixo do edredom, está muito frio.
Sem protestar, aconchegou-se com a mulher sob a coberta e, abraçadas, tomaram café, admirando a vista daquela manhã cinzenta de inverno.
- Se continuar frio assim, vai nevar em Gramado. E, se nevar, quero ir pra serra no final de semana. Você tem algum compromisso agendado? – Amanda perguntou à esposa.
- Nada que não possa ser desmarcado, se você não tiver plantão. – Sabia que a mulher estava mal e, se estava resolvida a não trabalhar no final de semana, nada a impediria de estarem juntas, mesmo que tivesse que inventar uma boa desculpa para não irem ao o almoço na casa de seus pais.
No meio da manhã, Amanda teve uma folga entre os atendimentos, quando decidiu ligar para Denise, ex-mulher de Fernando, irmão de Ellen. A psicóloga, que hoje morava no Rio de Janeiro, era uma das melhores amigas de Amanda. E, apesar da distância geográfica, costumavam conversar com frequência, por telefone, sempre relembrado os velhos tempos, fazendo planos para um reencontro, e falando sobre os assuntos que lhes pareciam interessantes.
- De, você está podendo falar agora? – Perguntou, sabendo que a psicóloga poderia estar em horário de atendimento.
- Oi, estou num intervalo, tenho uns dez minutos. Como você está?
- Bem, e você?
- Bem também.
- De, Renata falou com você?
- Sim, ontem.
- Ela contou sobre a Ellen?
- Sim... Não quis comentar porque não tinha certeza se você já sabia.
- Ela ligou pra Bruna. Soube ontem à noite.
- Que droga, Amanda. Ainda não acredito. Não sei se vou conseguir ver Ellen assim. Nessas horas toda a teoria vai ralo a baixo, não me servindo pra nada.
- Não consegui dormir essa noite também. Tô sem chão. Minha primeira reação foi querer falar com ela, mas Bruna me impediu, e terminei achando bom, porque tenho medo de cair no choro por telefone, e sei que Ellen odiaria que eu fizesse isso.
- Ela é a última pessoa no mundo que não permitiria algo assim. E é uma das razões pela qual a admiro. Sempre foi tão realista com tudo, levando tudo para o lado divertido. Definitivamente, auto piedade é uma palavra que não faz parte do vocabulário dela.
- Você vai?
- Sim. Hoje já verifiquei a agenda, pedi para minha secretária desmarcar todas as sessões agendadas para a segunda semana de julho. Não poderia deixar de atender ao convite.
- Bruna e eu nem conversamos sobre isso, especificamente, mas sei que ela vai conseguir ajeitar tudo irmos também. Honestamente, não me animaria ir sem ela. E sei que Bruna também não se furtaria de ir, antes de tudo por causa de Ellen mesma, depois por Renata, a quem ela admira muito, também.
- Amanda, a secretária está interfonando para avisar que o próximo paciente já chegou. Conversamos mais depois. Beijos.
Despediram-se e Amanda também retornou ao trabalho, ficando ocupada pelo restante do dia, sem ter tempo nem de almoçar em função de um paciente que deu entrada na emergência com fortes dores no peito, exigindo atendimento e vários exames para descartar uma lesão maior no miocárdio, fruto do infarto. Mas, dada a extensão da lesão, foi preciso dilatar a agenda da manhã seguinte, para permitir que Amanda fizesse uma angioplastia do novo paciente.
***
Denise levantou da poltrona no consultório e caminhou até a porta para fazer entrar o paciente daquele horário, uma moça de vinte e poucos anos, a quem atendia há quase um ano, com problemas de baixa autoestima, cuja maior preocupação era a aparência física.
A jovem sentou na poltrona em frente à psicóloga e, antes mesmo que lhe perguntasse algo, passou a relatar as impressões e sentimentos que a abalaram nos dias anteriores. Denise, de quando em vez, fazia algumas anotações, pontuando os aspectos a serem explorados a partir da fala da paciente, mas não conseguiu deixar de pensar no quanto tudo era absurdo. No quanto a banalidade tinha se entranhado e transformado a sociedade moderna numa neurose que, evidentemente, permitia-lhe uma vida cômoda, mas que intimamente via como abjeta.
Ellen, uma mulher cheia de energia, de apenas quarenta e dois anos, uma profissional de extrema competência, tendo que lidar com as imposições de uma doença fatal, e a jovem à sua frente, no auge da vida, perdendo tanto tempo com coisas tão pequenas, tendo condições de ocupar um lugar de excelência e podendo dar sua contribuição à sociedade.
Em sua profissão, muitas vezes, se julgava hipócrita, pois, apesar de ter vontade de dar uns gritos com alguns pacientes fazendo-os perceber o quanto eram estúpidos e se ocupavam em arrodear o próprio umbigo, os ouvia pacientemente, tentando conduzi-los a esse entendimento, o que exigia muito mais tempo para, finalmente, terem alta, muitas vezes jamais alcançando a compreensão de que, em verdade, são seus únicos inimigos.
Os quarenta minutos reservados à sessão passaram sem que percebesse, sem que conseguisse prestar atenção ao enfadonho relato da jovem. Tudo que lhe ocorria era o quanto Ellen estava sofrendo, e no quanto seu desaparecimento ia afetar a vida de todos que a conheciam. A mulher tinha sido o porto seguro de todos os amigos. Sua força, alegria, realismo e modo sarcástico de dizer exatamente o que cada um precisava ouvir era o que os mantinha centrados.
Fora Ellen quem dissera a ela, com todas as letras, que nada tinha em comum com seu irmão. Depois de idas e vindas, Ellen, categoricamente, disse a Denise que não entendia por que a mulher, tão inteligente, e tão conhecedora de todas as teorias comportamentais, não via que seu casamento estava fadado ao insucesso. E mais, que o irmão, em verdade, só seria feliz ao lado de uma mulher menos capaz intelectual e profissionalmente que ele, pois carecia ser idolatrado, por esta razão viviam em conflito. Fernando, na época, ao saber do comentário, cortara relações com a irmã, mas passado algum tempo da derradeira separação, procurou-a para admitir que estivera certa, pois encontrara alguém com o perfil traçado, então havia percebido que, com o comentário, Ellen apenas tentara abreviar o sofrimento da amiga e dele próprio.
***
Fernando tinha recebido a notícia, e o convite da cunhada, na tarde anterior. Desde então tentava, inutilmente, se concentrar na campanha publicitária pela qual era responsável. Por sorte, os dois outros sócios podiam acompanhar a elaboração do projeto e supervisionar a criação. Quando finalmente o esboço da campanha estivesse pronto, então, ele voltaria a tomar a frente do projeto, para apresentação ao cliente.
Apenas um ano mais velho, o publicitário tinha praticamente crescido e descoberto o mundo ao lado de Ellen. Tinham sido mais que irmãos, foram companheiros e cúmplices, em todos os momentos da infância ao início da vida adulta. E, por terem perdido a mãe ainda cedo, ficaram ainda mais unidos, principalmente tentando fazer com que o pai não se deixasse aniquilar com a dor causada pela morte da esposa, tão jovem.
Tinham na figura do pai o exemplo de retidão de caráter, senso de justiça e dedicação profissional. Professor universitário, Júlio se dedicara à família e aos alunos, fazendo muitas vezes com que sua casa fosse extensão de sua cátedra, constantemente frequentada por jovens universitários. O que fizera que os filhos cultivassem também muitos amigos, principalmente colegas de colégio, depois, de faculdade, espantando a solidão.
Somente depois de ter formado ambos os filhos, Júlio se permitiu admitir que precisava encontrar uma companheira, mas a escolha não seria nada fácil, uma vez que os termos de comparação com a falecida esposa sempre pesavam. Por fim, há alguns anos, pouco antes de completar sessenta e cinco anos, tinha se rendido aos encantos de uma senhora pouco mais jovem, também viúva, e cujos filhos já tinham inclusive lhe dado netos.
Desde então, viviam numa casa bastante confortável, no Bairro Ipanema, em Porto Alegre, onde recebiam os filhos e netos de Anete, para os almoços dos finais de semana. E Fernando e Themis, Ellen e Renata, uma ou duas vezes ao ano.
Em pensar no pai, Fernando se sentiu ainda mais covarde. Sabia que Júlio já havia sido posto a par da saúde da filha, mas relutava em ligar para conversar sobre o assunto, certo de que estava atordoado com a situação, sem aceitar que sofreria em breve mais uma perda, e justamente da linda menininha de olhos verdes que durante anos tinha acalentado para que dormisse. Nem Fernando queria imaginar não poder mais contar com a irmã e amiga que o conhecia melhor que qualquer outra pessoa.
Sabendo que mais cedo ou mais tarde precisaria enfrentar a situação, e falar com o pai, rezou por não ter sido ele a ter que lhe dar a notícia. Nesse momento, agradecia silenciosamente a coragem da cunhada, que além de ser a portadora das más notícias ainda estava sufocando as próprias dores, confortando tanto a ele quanto ao sogro, e ainda contatando os velhos amigos da turma, para combinar o encontro.
O cunhado sempre admirara Renata que, além de bonita, inteligente, talentosa, conseguira ser e fazer feliz sua irmã. Lembrou-se do quanto Caio, seu amigo de infância, fora facilmente atraído pela menina vibrante, que era sua irmã, quando adolescentes. Mas conseguia entender que ninguém melhor que Renata para conviver com a mulher tão multifacetada que era Ellen.
***
Odiava ter que fazer corte na folha de pagamento, mas era necessário. No último ano a empresa amargara resultados negativos, e os acionistas agora exigiam que medidas mais austeras fossem tomadas, e não havia como mudar esse panorama sem desativar uma das fábricas, a unidade que tinha se transformado em um peso morto há alguns anos.
Embora Caio soubesse que o início da crise tenha sido justamente o retardo do fechamento daquela unidade, não conseguia esquecer os duzentos e quarenta funcionários que teriam de ser dispensados. Ela tinha sido a segunda fábrica criada pelo pai que, até pouco antes de morrer, ainda circulava pelo local, chamando pelo nome cada um dos que ali trabalhavam. Muitos filhos dos primeiros funcionários da fábrica, aberta há mais de cinquenta anos.
Precisaria, antes de desativar a unidade, conversar com seu conselheiro jurídico, e o gerente de recursos humanos, garantindo que todos os aspectos legais fossem cumpridos e que pudesse estimar as cifras totais que as indenizações alcançariam.
Com o peso da decisão pressionando-lhe os ombros, recostou-se na cadeira, fechando os olhos. Precisava respirar fundo, silenciar o coração e agir racionalmente. Era isso que os acionistas esperavam dele. Pensando no quanto precisara endurecer para manter-se à frente do império deixado pela família, lembrou-se, mais uma vez, que Ellen rira escancaradamente dele, a primeira vez que o vira de terno e gravata, fingindo ser um grande homem de negócios. Ela o conhecia bem demais para se impressionar com o falso ar austero que tentava impingir a si mesmo. “Você não leva o menor jeito pra isso. Tem coração mole.” Dissera na época. Quase quinze anos tinham se passado, mas ainda era aquele garoto cuja gravata o asfixiava, e cujas mãos suavam cada vez que devia tomar uma decisão tão difícil quanto a que precisava.
Tentava não pensar na mulher fantástica por quem tinha sido apaixonado na adolescência. Agora ela estava perdendo os movimentos, e isso era algo que, por mais que quisesse, afinal fatalidades não têm explicações lógicas, não conseguia. No mínimo era uma ironia do destino, alguém como Ellen, tão cheia de vida, ser tolhida de se mover.
Passou as mãos pelos cabelos, agora mais grisalhos que devidos, pois tinha apenas quarenta e quatro anos, e cruzou os longos dedos atrás da cabeça, que latej*v*. Precisava ficar de olhos fechados um pouco, talvez a sensação de queimação no estômago passasse. Devia ter-se lembrado de, a caminho do escritório, passar em uma farmácia para comprar antiácido. Faria isso antes de ir para casa, do contrário não conseguiria jantar, nem dormir, pois tinha certeza de que a dor aumentaria no cair da noite. E compraria um estoque extra, para a viagem à Palhoça, porque, além de ter que ver a amiga numa cadeira de rodas, ainda encontraria a mulher por quem tinha resolvido assumir os negócios da família, para impressioná-la. Alicia, por certo, estaria lá e, provavelmente, acompanhada do marido, que a tinha roubado dele, apenas com conversa mole, típica de intelectualóide da classe média.
Fim do capítulo
Boa noite!
Como amanhã será um dia bem pesado, antecipei o capítulo de forma a tentar não decepcioná-las caso não conseguisse efetuar a postagem.
Em tempo, agradeço a leitura e os comentários.
Informo, ainda que procuro uma co-autora aventureira. Tenho outros 16 capítulos prontos. Mas uma segunda opinião seria ótimo.
Para contato: Face Ghi Leonard ou por e-mail: temposdepois@gmail.com
Grata pela paciência, a leitura e as possíveis críticas e sugestões.
Abraços, até domingo!
Comentar este capítulo:
Mille
Em: 27/06/2018
Olá GLeonard
Todos os amigos abalados pela doença da amiga Ellen.
Que parece ser uma pessoa sensacional no meio deles.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Oi, Mille,
Obrigada pelo incentivo. Os comentários sempre nos estimulam. Domingo sem falta posto o terceiro capítulo.
Bjos
G.Leonard
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