Capítulo 1 - A Configuração do primeiro problema
Capitulo 1 - A Configuração do primeiro problema
O problema todo começou com um convite de casamento.
Rafaela estava atarefada, soterrada sob uma pilha de plantas baixas, esquemas hidráulicos e elétricos do projeto de um Museu Filantrópico para um magnata da capital, ela nem bem havia levantado os olhos quando a assistente entrou na sala e só percebeu que a moça lhe estendia um envelope quase um minuto depois.
- Me perdoe, Ana - disse, franzindo a testa - Pode deixar a correspondência na mesa.
- Se eu deixar você não a abrirá - a assistente sorriu - Parece importante.
- Por que acha isso? - Rafaela perguntou sem desviar a atenção dos cálculos que rascunhava num papel.
- Foi enviado de sua cidade natal.
Aquilo sim chamou a atenção de Rafaela. Ela pegou o envelope com cuidado, como se o objeto fosse explodir no instante em que ela o abrisse, quando leu o remetente sentiu como se a pele tivesse esfriado, uma bola de neve se alojou no estômago, pois o nome escrito ali era o eco de um passado que ela fazia o possível para esquecer. Não percebeu que estava estática há tempo demais e ao erguer os olhos, pegou Ana a fitá-la com interesse.
- Obrigada, Ana - disse ela pousando o envelope na mesa, bem longe.
- Não vai abrir?
- Não, não agora.
- Você está pálida, Rafaela - comentou a assistente - Quer alguma coisa, um copo de água?
- Obrigada, não é preciso.
Rapidamente ela catou um projeto e tratou de afundar sua atenção nele; insatisfeita e curiosa, Ana não teve alternativa a não ser dar meia volta e se retirar. Mas Rafaela não foi capaz de retornar completamente ao trabalho, sua concentração tinha evaporado. Ela passou o resto da tarde esmurrando os deveres, errando cálculos básicos, borrando rascunhos padrões e abrindo e fechando o editor de imagens no computador, indecisa sobre como começar aquela parte do projeto. Rafaela costumava ser a última a sair do escritório, habituara-se a trabalhar até tarde, normalmente a inspiração e a liberdade criativa costumavam surgir na quietude e na surdina da noite, momento em que o lugar ficava deserto, sem zum zum zum ou telefones tocando, agora, no entanto, ao verificar no relógio que mal passara das cinco da tarde, decidiu que não suportaria mais ficar ali.
Antes de sair, porém, pairou uma mão indecisa sobre o envelope tentando evitar pegá-lo, mas com um gesto súbito meteu-o na bolsa e deixou o escritório de forma intempestiva e sem avisar ninguém.
A distração a acompanhou até seu apartamento. No trajeto, dirigiu de forma tão desatenta que apenas por milagre não causou um acidente, àquela hora o trânsito do fim da tarde ainda não estava caótico e ela conseguiu chegar em casa em pouco tempo. Por sorte. A primeira coisa que fez foi rumar para o banheiro e tomar um banho gelado; em pleno Janeiro, o calor estava a todo vapor e às 17:30 da tarde o sol abrasivo queimava o mundo lá de cima, de um céu sem nuvens. Rafaela permaneceu debaixo da água fria por longos minutos, procurando reorganizar as ideias e lutando para evitar que certas memórias retornassem daquele canto escuro onde ela as enfiou há tanto tempo.
Não, decidiu, 10 anos não é tanto tempo, afinal. É logo aqui, alguns segundos atrás.
Ao sair do banho enrolada numa toalha, Rafaela parou para encarar o envelope sobre a cama. O objeto parecia encará-la de volta, como uma imprecação. Ela sentia o coração acelerado, fechou os olhos e respirou profundamente, depois, sentou-se na cama e forçou as mãos a pararem de tremer, então, pegou o envelope e leu em voz alta o nome da remetente nele escrito.
- Mariana Sales de Brito.
Ela passou os dedos sobre o nome da cidade que não visitava há anos. Florianópolis, Santa Catarina. O lugar de onde ela fugiu e prometeu nunca mais voltar.
Ela abriu o envelope, dentro encontrou um convite de casamento. Mariana Sales de Brito e Igor Silva Brás tem a enorme honra de convidar para a cerimônia... e todas as palavras bonitas que seguiam qualquer convite de casamento. A pequena Mariana vai se casar, pensou ela. Ao olhar no envelope, descobriu um papel dobrado que se revelou um bilhete manuscrito numa letra que pertencia claramente à Mariana. Era um bilhete bem curto.
Querida Rafaela.
Eu vou me casar. Esse dia não será o mesmo sem você.
Sei que não tem motivos para voltar, mas por favor, venha... caso ainda sinta algo por nós.
Venha pelo que tivemos.
Pelo que fomos...
Com amor, Mari.
E apesar de tentar represar as lágrimas, o esforço foi vão, pois mesmo a poderosa Rafaela de Alcântara Trevizzan não era imune aos sentimentos do passado. Mas nem sempre ela foi a grande engenheira de renome internacional, conhecida por revolucionar o conceito de exteriores e tendo seus projetos expostos nos maiores templos do designer, famosa por ter alcançado tal status tão jovem, com vinte e sete anos de idade. Ela, outrora, fora apenas uma adolescente sonhadora que morava à beira da praia no sul da ilha-capital de Santa Catarina. Uma menina que magoou muita gente e que foi igualmente magoada.
Mas aquilo tudo acontecera quando era criança, uma adolescente, agora, mulher feita, as velhas dores ainda valiam? Os antigos rancores permaneciam azedando sua vida? Sim. Decididamente, sim.
Eu poderia voltar? Pensou, indecisa. Rever Mariana. Mariana, sua melhor amiga, a irmã que nunca teve. Mariana que ela amara mais que todos... e que magoara mais que todos também.
10 anos de silêncio, restara algo a ser dito? Mas retornar por Mariana significaria encontrar os outros também. Será que eles todos haviam se mantido juntos depois da partida dela? Será que apenas ela desgarrou, que fugiu para longe deles e de todos que um dia amou?
Sentiu a cabeça latejar e se deixou cair da cama, ainda enrolada na toalha molhada, fechando os olhos com força. Seu dia tinha começado bem e agora virara um caos psicológico, aquilo não deveria mais atingi-la, ela achava que tinha superado tudo, mas levando em conta o estado em que se encontrava, sua certeza estava claramente equivocada. A ferida que suspeitava estar curada se abriu novamente. O passado ominoso estava ali batendo à porta. Rafaela acabou caindo num sono pesado, sem sonhos, porém, nem um pouco revitalizador.
Quando acordou já estava escuro, o quarto banhado pela luminosidade mortiça da luz de LED da TV; o som da campainha sendo espancada reverberava pelo apartamento e Rafaela saiu rapidamente tentando rearrumar a toalha que já secara no corpo. No meio do caminho, percebeu que existia uma única pessoa no mundo que seria capaz de passar pela portaria do prédio e subir direto ao seu apartamento.
- Valquíria - disse ela encarando a mulher parada na porta e que trazia no rosto uma expressão de urgência.
- Pelos céus, Rafaela. O que deu em você? - respondeu a mulher sem esperar o convite e já entrando no apartamento a passos pesados.
Valquíria era uma mulher espalhafatosa, cujos anéis e pulseiras podiam facilmente pesar quase um quilo inteiro do mais puro ouro. Era baixa, atarracada, magra ao ponto da inanição. Beirando os sessenta, tinha os lábios em vermelho vivo, cabelos tingidos de rosa e os olhos, de um verde-água, rodeados por lápis preto. Valquíria Helena Drummond era a configuração do escandaloso, mas também uma das arquitetas mais famosas do país, patrona e protetora de Rafaela. Era como uma segunda mãe. E dona da Drummond Construção e Engenharia, o lugar em que Rafaela foi acolhida e que, mais tarde, se tornaria sócia.
- Você saiu sem avisar ninguém e não deu mais notícias - acusou Valquíria em sua voz altissonante.
- Me perdoe, Val, eu precisava voltar para casa - disse Rafaela.
Minutos mais tarde, acomodada na poltrona do quarto enquanto Rafaela se matinha estatelada na cama, olhando para o vazio, Valquíria inspecionava o convite de casamento. Depois de um tempo, pousou o papel sobre o colo e dirigiu a atenção para sua discípula.
- Você não fala com esta moça desde que deixou Florianópolis? - quis saber Valquíria.
- Ela tentou entrar em contato comigo por dois ou três anos, mas depois que eu não respondi, ela desistiu. Não entendo o motivo deste convite - comentou Rafaela sem se mover.
- Bem, passaram-se dez anos, talvez agora, mais velhos, vocês estejam maduros o suficiente para repensar o passado. Quem sabe Mariana queira por um ponto final no assunto.
- Aquilo foi uma coisa de adolescentes - Rafaela se sentou na cama - Que importância teria corrigir uma coisa destas agora?
Valquíria deu de ombros.
- Traumas de infância nunca vão embora até serem tratados. Vai ver a moça não se sente bem com tudo o que aconteceu, da forma como aconteceu, e queria seguir em frente agora que está entrando em uma nova fase da vida. Sabe, quando ficamos velhos tendemos a nos arrepender de certas coisas. Você não se arrepende do que aconteceu?
- Eu... não sei - Rafaela chacoalhou a cabeça com vigor - Pensei em ir ao casamento, para poder revê-los, mostrar que me tornei mais do que eles que nasceram em berço de ouro, mostrar quem sou e aonde cheguei. Mostrar que me tornei maior do que eles. Especialmente para Raquel. Raquel provavelmente estará lá, afinal, é prima de Mariana.
Rafaela ergueu os olhos e percebeu um olhar avaliador de Valquíria.
- Então você pensa em voltar apenas para esfregar na cara deles que você os superou? - a mulher suspirou com pesar - Se for isso, minha querida, você só prova que não superou nada. Se for, vá para encerrar esse assunto, se não for... bem, esse assunto ainda vai assombrá-la por muito, muito tempo. Acredite em mim que sou uma velha, assuntos inacabados impedem que sigamos em frente, na maior parte das vezes se tornam um peso quase insustentável, ou uma mágoa incurável.
Rafaela deixou a cama e foi até a janela, observou por um tempo a cidade faiscante abaixo de si até finalmente descansar a cabeça contra o vidro e fechar os olhos, pensativa.
- Além disso, depois de tudo o que aconteceu, eu não sei, queria voltar lá... bem, você sabe.
- Não, não sei - disse Valquíria.
- Eu queria poder voltar lá com alguém. Ao meu lado. Para eles saberem que apesar das profecias egoístas deles e de seu preconceito eu consegui alguém para ficar comigo e me amar.
- Ainda há tempo para você arrumar uma namorada, Rafa.
- Em quatro semanas? - Rafaela riu com amargor.
- Bem, você é rica o suficiente para comprar uma namorada - disse Valquíria num tom irônico e repreendedor. A mulher se ergueu e pousou uma mão no ombro da moça - Pense sobre o que você realmente quer, menina, para o que seu retorno serviria. Mas não fique ruminando coisas impossíveis. É contraproducente e nós duas sabemos que você não é uma mulher de dúvidas.
Valquíria a deixou sem mais palavras e Rafaela permaneceu ali, ofuscada pela grandeza da cidade e pelo mar de luzes que se estendia até o horizonte, imaginando que o destino era inelutável e que certos pecados, apesar de distantes, inevitavelmente retornavam para cobrar seu preço. Ela decidiu deixar para pensar no assunto no outro dia, talvez uma noite de sono trouxesse alguma razão à sua indecisão.
De fato, o dia seguinte seria decisivo e mudaria sua vida para sempre... e Rafaela nem desconfiava disso.
Fim do capítulo
Próximo Capítulo: A Soluçao para o Primeiro Problema.
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Veka
Em: 27/06/2018
Eu já tinha me interessado pela história na sinopse, mas estava esperando mais capítulos. Não aguentei mais esperar! Kkkkkkk... Já fui conquistada! Estarei por aqui acompanhando.
Bj
Resposta do autor:
Oie.
Que legal, bem vinda... haha.
Pretendo postar um cap por semana.
Se a inspiração permitir...
beijocas.
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jupirema
Em: 23/06/2018
Parabéns pelo bom começo, o texto tá excelente, uma mistura de ideias que com certeza vai nos prender na leitura.
Acompanhando....
Resposta do autor:
Oie.
Muito obrigada. É minha primeira história.
Espero de coração que vc continue acompanhando.
beijocas
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Thaci
Em: 23/06/2018
Boa noite,autora!!
Parabéns pelo conto. E também pela escrita,ela está concisa e simples ao mesmo tempo,que nos prende querendo saber o que se passou com a Rafaela. Aguardando cenas impactante do próximo capítulo. Nota mil. Seja bem-vinda ao Lettera.
Resposta do autor:
Oie.
Agradeço por ter lido e comentado. Os comentários ajudam a me nortear.
Espero continuar mantendo a qualidade do testo.
Beijocas.
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