Capítulo único
Aquele era meu último dia. A sensação que essa frase trazia para meus neurônios era fantástica, visto que, há um mês, a simples ideia dela era absurda para mim. Minha decisão fora tomada assim que perdi a mulher que amo, e sempre amarei, para a rotina de empresária e filha de um monstro que me transformou em um. Luana era tudo o que pode se querer na pessoa amada. Forte sem ser bruta; frágil sem ser piegas; divertida sem ser palhaça e, verdadeiramente, amante sem ser vulgar. Muita gente vai tentar me impedir de desistir dessa vida. Vai me dizer que ainda há esperança.
-- Fez o que pedi?
Não olhei para Virgínia, minha secretária, pois sabia bem o que ela pensava sobre minha atitude.
-- Jéssica, por favor, desiste disso...
Com um suspiro meio exasperado, levantei-me e me pus em frente a ela segurando-lhe as mãos.
-- Ninguém melhor que você para tomar conta de tudo aqui. -- Fiz com que ela me encarasse. -- Vai dar tudo certo e eu... Não vou mais precisar de nada disso. Faz um favor pra mim? Cuida bem de seu amor, de sua família. Não deixa isso aqui te tirar tudo como fez comigo. Agora me chama o Carlos.
Virgínia não se moveu, ao invés disso, me abraçou aos soluços. Ela sabia. Eu retribuí por um tempo até que ela se acalmou e foi fazer o que solicitei.
Assinei uns últimos papéis de transição e respirei como há muito não fazia. Eu estava pronta... Se é que alguém poderia estar pronto para o que eu faria a seguir. Peguei a passagem de ida... Sem volta. Ouvi batidas na porta e liberei o acesso. Meu motorista... Ex-motorista, corrijo, entrou meio cabreiro.
-- Mandou chamar, dona Jéssica?
O homem era alto e magro, o que o fazia quase encurvar a coluna. Nunca tinha reparado nele, no entanto, até aquele momento. Entreguei-lhe um envelope que ele, com mãos trêmulas, segurou nas mãos, desconfiado.
-- Abra. -- Observei-o na ação e quase sorri sem graça com seu espanto.
-- Dona Jéssica... -- Ele levou a mão agora ainda mais trêmula aos lábios e deixou uma lágrima triste escorrer pelo rosto. -- Isso é... Isso é...
-- Um recibo de compra e venda do meu carro em seu nome e o documento dele. -- Disse sem emoção alguma.
-- Mas... Mas... -- Ele continuava gaguejando, abismado.
-- Boa sorte, Carlos. Continue com Virgínia, por favor. Ela vai precisar muito de você depois que eu... Bem preciso ir, meu voo sai daqui à uma hora.
Peguei minha bolsa de cima da mesa e, num relance, vi o porta-retratos de nós duas naquela praia... Aquela bendita ou maldita praia onde nos conhecemos. Apertei o objeto entre os dedos até senti-los doer e, abruptamente o joguei dentro da bolsa em um último ato.
-- A senhora não quer que eu a leve? Por favor?
Eu não deveria aceitar, mas estava atrasada. Nós fomos passando pelas pessoas. Pessoas que nunca mais eu veria. Não vi mais Virgínia e nem procurei por ela. Já havíamos nos despedido e isso bastava. Do lado de fora, Carlos me perguntou por minha bagagem.
-- Para onde vou não precisarei de bagagens. Levo a bolsa porque sem documentos e dinheiro não posso chegar ao meu destino. -- Ele abriu a porta para mim e seguimos.
Durante o trajeto o silêncio me fez voltar a pensar naquela frase de quando me desvencilhava de tudo que me amarrava naquela vida. O último dia. O que eu encontraria depois pouco importava. Os dias de preocupação desmedida acabaram. Nada me prenderia. Eu estava livre e ao mesmo tempo presa na ideia de deixar de existir naquelas condições. Eu só queria o nada cheio de um tudo essencial. Eu não ia desistir. Esse pensamento me trouxe a lembrança de uns olhos azuis magoados. Eu tinha desistido dela. Incomodada com o passado tentei ajeitar-me ao assento de couro sem sucesso.
Na despedida, em frente do aeroporto, Carlos, num ímpeto que uns dias atrás lhe custaria o emprego, me abraçou apertado, quase quebrando minhas costelas. Que quebrasse, eu pouco estava ligando. Deixei que ele terminasse o gesto e, sem nenhuma palavra, me afastei para o embarque.
Quase um dia depois, ali estava eu. Naquela mesma praia. Com o sol se apresentando com sua força habitual. Ali, naquele trecho de areia que foi minha alegria e minha tristeza. Que foi minha descoberta e minha perdição. Ali o amor me visitou e ali ele me abandonou sem aviso prévio.
Tinha chegado a hora. Devagar, mas com firmeza, livrei-me de todas as roupas, deixando meu corpo a mercê da brisa que apesar de fria aquecia-o com a sensação de liberdade. Era o meu destino. A liberdade. Os passos me conduziam para dentro da água onde tantas vezes nos amamos. Por fim, gritei seu nome com toda a força que pude. A tepidez alcançou meu corpo quando ele sentiu o líquido morno tomar-lhe conta.
Um forte estímulo me fez afundar no breu que se oferecia como purificador de meu espírito. Aquele ritual era necessário. Em breve eu partiria e, finalmente, estaria plena de mim.
Pude sentir os braços de Luana em minha volta. Sim, agora eu podia ser feliz de novo. Emergimos juntas.
-- Por que demorou tanto, minha vida? -- Ela beijava todo o meu rosto e boca.
-- Tive que morrer para aquele mundo que me sufocava primeiro, meu bem, e isso demorou um pouco.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 28/05/2018
Nossa, realmente amei! Foi o melhor conto seu!! E considero um dos melhores que li...n que tenha lido muitos...
Eu imaginei que ela não fosse se suicidar, não com o significado que damos...algo como recomeçar, deixar o que ela "era" devido as escolhas e se reencontrar para poder se doar nesse sentimento...n sou de me surpreender muito, sempre penso em muitas possibilidades...nunca dou por sentado as coisas. Desculpe, não quero parecer pretenciosa, apenas não sou boa com as palavras e escrevo dessa forma...risos.
Adoro textos escritos assim...com esse final com tantos significados,tem um pouco de poesia aí.
Eu disse que não me surpreendo facil, porém seus textos nesse desafio foram uma bela surpresa, muito bons! Se foi algo improvisado, parabéns! Os melhores textos saem assim.. as vezes pensar muito tira o brilho! A espontaneidade é sempre a meIhor escoIha.
Beijos
B
Resposta do autor:
Também penso assim sobre escrever, Lai, e fico verdadeiramente satisfeita que tenha alcançado um dos objetivos por escrever. São estas expressões de gratidão e carinho que alimentam o bichinho escritor que ainda me habita, pois tenho sido bem cruel com ele! rsrsrs! Obrigada e boa sorte!
sonhadora
Em: 29/05/2018
Realmente surpreendida por esse final lindo! Adoro seu jeitinho de escrever. Gosto de finais diferentes que possam nos deixar aquele gostinho de dever cumprido! Uns dos melhores contos que li aqui!
Beijos de Luz
Resposta do autor:
Eita, dona Sonhadora! Digo o mesmo da senhora e aproveito para dar uma cobradinha: cadê Insônia? Obrigada pelo comentário e boa sorte!
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Sem cadastro
Em: 28/05/2018
Nossa, realmente amei! Foi o melhor conto seu!! E considero um dos melhores que li...n que tenha lido muitos...
Eu imaginei que ela não fosse se suicidar, não com o significado que damos...algo como recomeçar, deixar o que ela "era" devido as escolhas e se reencontrar para poder se doar nesse sentimento...n sou de me surpreender muito, sempre penso em muitas possibilidades...nunca dou por sentado as coisas. Desculpe, não quero parecer pretenciosa, apenas não sou boa com as palavras e escrevo dessa forma...risos.
Adoro textos escritos assim...com esse final com tantos significados,tem um pouco de poesia aí.
Eu disse que não me surpreendo facil, porém seus textos nesse desafio foram uma bela surpresa, muito bons! Se foi algo improvisado, parabéns! Os melhores textos saem assim.. as vezes pensar muito tira o brilho! A espontaneidade é sempre a meIhor escoIha.
Beijos
B
Resposta do autor:
Também penso assim sobre escrever, Lai, e fico verdadeiramente satisfeita que tenha alcançado um dos objetivos por escrever. São estas expressões de gratidão e carinho que alimentam o bichinho escritor que ainda me habita, pois tenho sido bem cruel com ele! rsrsrs! Obrigada e boa sorte!
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Cristiane Schwinden
Em: 28/05/2018
Li o conto todo torcendo para que vc me surpreendesse positivamente no final, e... surpreendeu! Sua escrita é divinamente fluida, parabéns!
Resposta do autor:
Mais uma vez agradeço, dona chefa, não só pelo comentário, mas pela criação desse desafio que me fez tirar as teias de aranha de meu teclado! Rsrsrs! Até o próximo!
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RosanePatell
Em: 27/05/2018
Aííííííí Caramba! Garota, porque me deixaste nesta angustia!?!?
Resposta do autor:
Hahahaha! É um vício antigo. Mas deixei claro que as duas recomeçariam a partir dali. A intenção foi de tentar fazer pensar que ela se suicidaria e ela o fez, só que matou uma mulher que ela não era para viver plenamente o amor. Muito obrigada pelo coment, um abraço e boa sorte!
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