EPISÓDIO 5 – Barbarella Vitória
Copacabana, Rio de Janeiro.
-- Tem certeza que sua fonte é confiável Dulce? O cara trabalha aqui? Nessa boate? – Fernanda perguntou.
-- Tenho. Anthonellas, só tem essa boate com esse nome em Copa.
-- Dulce é uma boate de striper!
-- Qual o problema? Eu não disse que o suspeito dança no pole, ele é figurinista!
-- Vamos lá então.
Desceram do carro e caminharam até a portaria onde foram barradas.
-- Desculpem gatas, hoje só entra homens.
Um dos seguranças avisou.
-- Qual é cara... Vai mesmo barrar a entrada de duas gatas? Só estamos aqui para curtir...
-- Sinto muito baixinha, mas voltem na terça que vem, que a noite é de vocês.
-- Baixinha? Nanda ele me chamou de que?
Dulce bradou indignada.
-- Fica fria tampinha. Ow meu chapa a gente tem que entrar hoje...
Fernanda disse exibindo o distintivo dentro do casaco.
-- A autoridade vai me desculpar, mas isso daí não garante passaporte para entrar aqui.
-- Posso te enquadrar por obstrução da justiça sabia? – Fernanda disse marrenta.
-- Ah é? Cadê o mandato judicial? Conheço as regras colega...
Fernanda logo percebeu que o segurança era ou já foi policial. As duas amigas saíram frustradas.
-- Tinha que dizer logo que era policial ow cabeção?! – Dulce bufou.
-- Qual era a alternativa ow nanica? Falar grosso e fingir que sou homem?
-- Com esse tamanho todo não seria difícil... – Dulce deixou escapar.
-- Com esse tamanho eu podia te amassar sabia?! – Fernanda retrucou irritada.
-- Ui! Adoro!
Fernanda franziu a testa enquanto Dulce disfarçava mexendo no celular.
-- E agora? Esperamos até terça que vem? – Dulce perguntou.
-- É muito tempo para descartarmos um suspeito... E hoje, com esse segurança aí, não conseguiremos entrar.
-- Espera aí... Amanhã é quinta não é? Amanhã é dia de show de transformistas, eles abrem espaço para uma espécie de show de calouros para revelações. Já fiz uma reportagem aqui.
-- Sério? Era esse tipo de matéria que você fazia?! – Fernanda perguntou com expressão cômica.
-- Ah Nanda qual é! Você acha que eu tinha escolha?!
Fernanda deixou escapar um riso.
-- Amanhã tem show de transformistas, ok, qual é seu plano infalível?
Dulce mexeu as sobrancelhas demonstrando que seus planos eram ousados.
-- Ah não! Não, esqueça! De jeito nenhum! Nem fu...
-- Não vai precisa isso... Basta uns adereços... Uma boa maquiagem...
-- Nem pense nisso!
-- Nanda qual a outra chance de entrarmos lá amanhã e seguramente ter contato com o cara?
-- Você está louca se acha que vou virar um traveco pra entrar nesse muquifo amanhã!
-- Você é que sabe... Posso vir assistir ao show, mas chegar até o camarim... Vai ser difícil, você sabe como só me meto em confusão...
Fernanda bufou.
-- Não acredito que estou considerando essa ideia absurda...
-- Vamos lá, temos um dia para te transformar em Barbarella Vitória!
-- Que? Que diabos de nome é esse?
-- Seu nome artístico mona!
***********
No flat de Gisele, Dulce chegou com uma figura no mínimo bizarra, assustando Fernanda que estava à espera da jornalista lá conforme combinaram.
-- Meninas, esse, quer dizer, essa é a Priscila. Ela vai te transformar num travesti lindo!
-- Vamos lá, operar um milagre!
Priscila falou afetada batendo palmas. Dulce deixou um riso escapar com a cara de pavor de Fernanda que foi empurrada e obrigada a sentar-se por Dulce.
-- Queridinha, seu cabelo está um trapo! Mas sua pele... Já quero! Vamos ver o que podemos aproveitar para realçar... Uma sombra com gliter aqui... Dar uma caprichada nessa sobrancelha, pelo menos os peitos estão em cima...
Priscila apalpou os seios de Fernanda ganhando uma tapa vigorosa de imediato.
-- Ow! Cuidado com essa mão aí!
-- Nervosinha a mona né? – Priscila fez careta.
-- Nanda pega leve, a Priscila está quebrando um galhão da gente...
Dulce reprimiu a amiga. Fernanda não desfez sua cara de poucos amigos, enquanto Priscila analisava sua maleta de maquiagem.
-- Dulce se essa pista não for quente, eu juro que vou te fazer pagar caro por isso! Esse figurinista comercializa as drogas que nosso assassino usa? Por que diazepan é super comum nos hospitais e clínicas que são centenas só aqui na capital.
-- Mas esse cara tem outra atividade suspeita nesse caso especificamente. Ele comercializa também ketamina, pelas minhas pesquisas dona policial chata, aqui no Brasil esse anestésico é basicamente utilizado por veterinários, e o nosso auxiliar de farmácia diurno e figurinista noturno não trabalha com animaizinhos, suspeito não acha?
-- Não acho suspeita tão consistente pra justificar essa loucura que você está me empurrando a fazer!
-- Jura? Se houvesse outra forma de abordar esse cara sem causar alarde e prejudicar a investigação, tenho certeza que você já teria me dado um safanão só por ter te levado à porta da boate Nanda!
Nanda cruzou os braços emburrada, enquanto Dulce mostrava a língua zombando do mau humor da policial.
****************
Duas horas depois de uma cirurgia plástica a base de pincéis e gliter, a policial marrenta estava transformada em uma drag queen perfeita, pelo menos enquanto ela não esboçava nenhum movimento.
-- Pri, você é uma artista! Ficou um espetáculo, nem sei onde você escondeu a minha amiga! – Dulce sacudiu Priscila empolgada, ignorando o olhar de fúria de Nanda.
-- Suei, mas, valeu a pena né? – Priscila se gabou.
Gisele conferia o visual da amiga dos pés a cabeça completamente embasbacada, sem conseguir conter um sorriso incrédulo.
-- Pow Gi, qual é, não faz essa cara pra mim! – Nanda desfez a pose com seus trejeitos típicos.
-- Desculpa Nanda, mas, é impressionante a transformação!
-- Modéstia a parte, arrasei! – Priscila disse fechando sua maleta de maquiagem.
-- E bem a tempo também Pri, vamos? Está quase na hora da boate abrir as inscrições pros novos talentos. – Dulce apressou.
Nanda permaneceu no mesmo lugar de braços cruzados.
-- Nanda? Vamos? – Dulce insistiu acenando com a cabeça para a porta.
-- Isso tá me cheirando a encrenca, não estou convencida desse seu plano não...
-- Fernanda Garcia! Você está amarelando?! – Dulce praticamente berrou.
-- E eu lá sou mulher de amarelar ow! – Nanda retrucou.
-- Mulher não... Mas traveco não sei... – Gisele murmurou segurando o riso.
-- Gisele! – Nanda resmungou.
-- Vamos parar com a enrolação ow agente Garcia? Vamos pro Antonellas agora. – Dulce determinou recolhendo sua bolsa.
**********
As três amigas chegaram à boate apesar de todo discurso técnico policial que Fernanda proferiu durante o trajeto sobre o fracasso inevitável daquele plano mirabolante de Dulce.
-- Ok, já está tudo certo. Podemos acompanhar você nos bastidores, não é o máximo? – Dulce informou empolgada.
-- Uhull! Isso muda tudo! – Fernanda foi irônica na comemoração.
-- Vamos deixar esse mau humor de lado agente Garcia! Nunca vi conquistar ninguém com antipatia... – Gisele disse segurando os ombros da policial. – E você precisa conquistar a confiança do figurinista traficante!
Fernanda suspirou irritada. Ao contrário da noite anterior, não foi barrada pelos seguranças, mas orientada a entrar pela porta dos fundos a qual era designada para os artistas da noite.
-- Ai, essa porcaria de meia coça pá... – Fernanda resmungou arranhando as unhas entre as coxas quando foi surpreendida por um transformista de quase dois metros de altura.
-- Está te machucando o truque né bicha? Leva um tempo mesmo pra se acostumar, relaxa!
-- Han? Truque? – Fernanda retrucou esquecendo-se de disfarçar a voz, despertando uma pisada proposital no seu pé por Dulce. -- Ai! – Fernanda não conseguiu evitar o gemido.
-- O truque, Barbarela Vitória! – Dulce arregalou os olhos para a amiga.
Fernanda continuou com cara de interrogação na face, enquanto o transformista imperioso concluiu com um gesto nada sutil: colocou sua mão perto da virilha da policial e foi categórico:
-- Bicha pode até está incomodando, mas valeu a pena, tá bem presinho!
A primeira reação, quase instintiva de Fernanda seria ignorar o tamanho do travesti e lança-lo ao chão em único golpe. Mas, de tão embasbacada que ficou com a ousadia intempestiva do artista, ficou atônita enquanto ele se afastava com seu requebrado caricato.
-- Por acaso eu tô com cara de mágico agora?! Que mané truque?! E que história é essa de Barbarela Vitória, Dulce?!
-- Truque minha querida, é o que os transformistas fazem pra esconder o...o pacote digamos assim... E você precisa de um nome artístico né! Ou prefere que apresente você como agente Garcia?
-- Escondem o pacote, eles...colocam o treco onde?! – Gisele indagou curiosa.
Dulce fez gestos bizarros para ilustrar para as amigas o que não dava para explicar no meio de toda aquela população de drags, mas, conseguiu ser bastante didática na explanação, fato confirmado no coro de Gisele e Fernanda:
--Aahh...
-- Isso deve doer né? – Gisele disse fazendo careta de dor.
-- Tem que ser mesmo muito macho pra aguentar um sacrifício desses... – Fernanda comentou.
-- Siga o exemplo deles e seja macho! Vamos trabalhar agente Garcia!
Dulce fez piada arrastando Fernanda que se equilibrava no sapato plataforma de altura vertiginosa. Gisele foi barrada na entrada dos camarins, ficando a cargo de Dulce ser a parceira de Nanda na abordagem ao figurinista suspeito.
-- Olha lá Nanda, nosso cara. - Dulce apontou com os olhos para uma das bancadas.
-- Tem certeza? Traficante com cara de vendedor de pamonha...
-- Sério agente Garcia? Uma investigadora tão habilidosa está julgando a aparência do cara?!
-- Ah, eu conheço essa laia, não parece mesmo... Se você e suas fontes estiverem errados, ah Dulce! Eu juro que faço picadinho de você!
Dulce deu de ombros, ignorando a ameaça da policial e a arrastou em direção a Ernesto dos Anjos, mais conhecido como Angel.
-- Oooi, você é o Angel? - Dulce perguntou simpática.
-- Eu mesmo! E você bonita, quem é?
O figurinista perguntou demonstrando pouco interesse.
-- Ah, sou o anjo da guarda desse meu amigo aqui, na verdade, eu tenho um dom, farejo talentos, e meu amigo aqui... É o próximo sucesso do circuito drag!
Dulce disse expondo Fernanda como uma peça a ser leiloada. Angel mediu a morena dos pés a cabeça. A policial por sua vez, media as forças com a calcinha minúscula que a obrigaram a usar, retirando-a de dentro das nádegas, pouco se importando com a avaliação do figurinista suspeito.
-- Isso daí? Queridinha seu faro deve está com sinusite! – Angel deu uma rabissaca.
-- Ah qual é! Presta bem atenção! Eu preciso só do seu feeling artístico pra fazer da estreia dela um sucesso! Super me recomendaram você... – Dulce insistiu massageando o ego de Angel.
-- Ah foi? Quem me recomendou? – Angel disse mascando chiclete disfarçando seu ego inflado.
-- Ah... Geral falou super bem de você, do seu talento, do seu olhar clínico para arte, e só de olhar pra você dá pra sentir essa energia sabe?
-- Gostei de você bonita! Vamos ver direitinho o que esse seu faro trouxe...
Antes que Angel inspecionasse com atenção Fernanda, notou que um dos seguranças acenou para ele, rapidamente inventou uma desculpa:
-- Bonita, preciso resolver um assuntinho, boa sorte na estreia da sua pupila! Adorei você!
Angel se afastou apressado, frustrando os planos das duas amigas.
-- A gente precisa ir atrás dele... Bonita – Fernanda cochichou fazendo graça.
Dulce fez uma careta para a amiga e acenou em acordo. Tentando se passarem despercebidas em meio às dezenas de pessoas que transitavam nos bastidores daquele show de calouros transformistas, Fernanda e Dulce seguiram na direção de Angel, avistando-o com o dois desconhecidos do lado oposto do palco.
-- Lá está nosso alvo. – Fernanda comentou.
Antes que Fernanda seguisse para seu alvo, a fim de interceptar a conversa suspeita, um assistente da produção se aproximou indagando apressado:
-- Você é Barbarella Vitória?
--Quem?! – Fernanda indagou impetuosamente.
-- Ela mesma! – Dulce interviu.
-- Sua vez, o palco é seu!
O assistente de produção praticamente empurrou Fernanda para o palco, enquanto o apresentador anunciava a “caloura” por assim dizer, Barbarella Vitória.
Imóvel no palco, aturdida pelo forte de jogo de luzes, não havia outra palavra que descrevesse o olhar de Fernanda para Dulce: desespero. A jornalista sabia, entretanto, que tão logo a policial saísse daquela saia justa de paetê, o desespero seria dela mesma com a punição que Fernanda lhe aplicaria.
O silêncio que parecia gritante para Fernanda destoava da atmosfera do local cheio de luzes, por hora, apagadas à espera do sinal de Barbarella Vitória começar seu número de estreia. Dulce se deu conta da imensa brecha do seu plano, sequer selecionou mesmo que não fosse de concretizar, a música que a policial drag interpretaria. O desastre que se daria em instantes, já se ouvia algumas vaias da plateia pelo tempo ocioso entre as apresentações, até Gisele chegar de repente, avisando a um assistente de produção:
-- A música é Lua de Cristal!
-- Sério? Xuxa? – O assistente indagou espalhafatosamente.
A surpresa de Dulce só não foi maior que sua gratidão pela amiga. Lembrou-se imediatamente da coreografia que executavam no Nossa Senhora das Graças. As luzes se acenderam no momento que a voz quase infantil da apresentadora loirinha ecoou “Tudo pode ser, se quiser será...”
Fernanda ainda em estado de choque reconheceu a música e institivamente olhou para o lado, identificando nos bastidores Gisele com uma expressão motivadora, sentiu-se como a própria Xuxa no filme do mesmo nome da música. Não lhe restava escolha, seu disfarce e todo empenho colocado nele estava em risco, como se incorporasse um personagem, meio que timidamente começou a coreografia e quando se deu conta já estava empolgada com a ovação do público que se rendeu ao hit da “rainha dos baixinhos”.
No final do número, ainda na personagem, Fernanda demorou a cair em si e na sua missão, no mesmo momento que Dulce acenava freneticamente para policial, apontando para o suspeito no lado oposto dela na coxia. Rapidamente caminhou na direção apontada pela jornalista, pouco aproveitando o reconhecimento da plateia.
Mover-se com rapidez em cima do salto plataforma de quatro andares que ela usava era mesmo uma tarefa difícil, isso diminuiu a sua capacidade de chegar sorrateiramente para escutar aquela conversa suspeita entre Ernesto e outro homem. Ainda assim, com dificuldades para se equilibrar, agachou-se para escutar o diálogo.
As suspeitas se confirmaram, tratava-se de uma negociação de ketamina.
-- Não me procure na clínica! Já disse, eu trago para cá, mas antes, 50% do pagamento aqui na minha mão, se não, nem perca seu tempo...
-- Eu preciso pra hoje!
-- Nosso acordo era que você me adiantaria a metade, só assim eu traria, meus negócios funcionam assim xuxu.
Ernesto fez um gesto afeminado irritando o homem sisudo que em um movimento brusco pegou um pequeno maço de notas de 50 reais e empurrou contra o peito de Ernesto.
-- Amanhã, e se me chamar de xuxu de novo, morre seu baitola!
“Angel” deu de ombros, pouco se importou com a ofensa, como se aquele xingamento fosse algo corriqueiro em sua vida, nem tampouco, se sentiu ameaçado.
--Ui que bravo que ele é!
Ernesto dobrou o maço de dinheiro e o enfiou no decote.
Fernanda agora teria a prova do tráfico que Ernesto dos Anjos praticava, era a vez de planejar o flagrante e obter informações sobre os compradores de ketamina, na esperança de algum deles ser o assassino até agora intitulado Capitão Gancho.
Fim do capítulo
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