CapÃtulo 32 – Eu não consigo mais tocar
Eu não consigo mais tocar
Estou trancada em meu quarto há dias. Sei o quanto é injusto com vovó. Mas é algo que não consigo evitar. Apenas não consigo sair de meu mundinho tristonho, não ainda. Eu estou tão destruída. Tão perdidamente despedaçada. Eu olho através da janela. Apenas enxergo uma multidão de prédios. Concreto e metal sem sentimentos. Dou um suspiro profundo. Isso doe em minha alma retalhada. As minhas lágrimas morreram há algumas horas. Estou silenciosamente perdida em meus pensamentos.
Se eu soubesse que o amor machucava tanto. Jamais teria me apaixonado. Jamais teria confiado. Jamais teria permitido. Mas ali estava eu, com um coração magoado. Ferido. Sangrando. Mas talvez amar não machuque tanto. Mas eu não diria o mesmo das pessoas que amamos. Elas podem ser cruéis ao ponto de te reduzir a cinzas. Elas podem ser cruéis ao ponto de te soprar pra longe.
Estou aqui há tanto tempo. Estou sentada em meu recamier. Abraçada aos meus joelhos. Como se assim eu pudesse ser protegida. Mas a tempestade já caiu sobre o meu mundo. Ela já devastou o que encontrou pela frente. Que pena, fui eu quem saiu ferida. Meu queixo está sobre os meus braços doloridos. Aquela posição não era tão confortável para ficar por tanto tempo seguido. Mas eu não me importava. Eu já não me importava.
Meus olhos se voltam para a porta trancada de meu quarto. Vovó ficou desesperada querendo entrar. Mas eu lhe pedi que me deixasse em paz. Eu precisava ficar sozinha. Com meu completo caos. Me odiei por faze-la chorar. Mas...
Sinto um pequeno incomodo em minha mão. Isso se tornou tão normal quanto respirar. É uma dor mínima que vai se prolongando, depois ela se expande e ganha proporções devastadoras. Hoje eu não quis me drogar. Odeio remédios. E só de imaginar ter que passar a minha vida dependentes deles, me arrasa. Sinto-me como uma piada mal contada que se transformou em um caos. Olho com cautela para a minha mão esquerda. Ela continua enfaixada. Fico olhando-a por tanto tempo. Dou um suspiro, e em um ato revoltado retiro as faixas com um cuidado que me assusta. Tão delicadamente. Talvez eu tenha medo de transforma-la em algo mais inútil do que já nos tornamos.
Essa ação demora uma eternidade. Todas as vezes que me deparo com as marcas que ficaram em minha pele. É como repetir milhares de vezes a mesma cena. A cena em que Júpiter acidentalmente destrói os meus sonhos com apenas um ato. Não que eu o culpe. Jamais seria capaz de tal coisa. Mas as cicatrizes continuam ali. Continuam me fazendo lembrar.
Finalmente acabo de retira-las. Tento mexer os meus dedos. Mas é algo tão mínimo comparado com a perfeição que antes executavam. Tão mínimo comparado com os traços extasiados com tal maestria. Eles eram capazes de me transportarem para além de minha simplicidade. Durante aquele curto momento em que eles deslizavam, eu já não era um ser comum. Eu já não era uma parte. Mas sim um inteiro de mim mesma.
Meus olhos curiosos encaram com repulsa aquela mão que desconheço. Essa já não sou eu. Já não sou esse pequeno pedaço de carne retalhada. Não sou esses ossos despedaçados. Essas veias rompidas ou essas artérias. Já não sou esse sangue que me atravessa e me percorre. Não, eu já não sou essas linhas e esses traços. Sou apenas essa multidão de cicatrizes, essas milhares de lembranças que me consome e me reduz a nada. Sou tudo aquilo que me conduziram com pequenas palavras cortantes. Sou o que me obrigaram a ser por um amor que já não sirvo.
Respiro fundo. E em um ato de coragem me levanto. Em passos lentos e indecisos saio silenciosamente de meu quarto. Então os meus passos seguem tímidos até o andar de baixo. E em cada degrau da escada meu coração se partia. Vou até a última sala a direita do corredor. Paro diante de uma porta branca de madeira. Nunca estive tão insegura em toda a minha vida. Seguro a maçaneta com duvida, algo que está cada vez mais presente em meus dias. Respiro fundo. E só então abro a porta com o máximo de cuidado possível.
Ali estava ele. A luz que entrava das grandes janelas que cobriam quase toda a parede lhe dava um ar celestial. Meus pés nus tocavam ao chão, e por um momento minha vontade foi a de sair correndo o mais rápido que eu conseguia. Lentamente me aproximo. E quando estou perto o bastante, deslizo com delicadeza os meus dedos sobre a tampa que cobria as suas teclas que a tanto tempo não eram utilizadas. Com receio eu a ergo. E um sorriso involuntário foge de minha boca.
Fico longos minutos ali. Apenas contemplando aquela relíquia de família. O piano era belíssimo, era um Steinway & Sons branco. Mamãe aprendeu a tocar nele. E isso pra mim era como tê-la perto. Como se ao tocar, ela estivesse comigo. Mas me arrancaram isso com tanto crueldade. Me arrancaram o que me havia de mais precioso. A única coisa capaz de me conectar com a mulher que mais amo no mundo. Mas que eu jamais terei o prazer de conhecê-la. Agora nem mesmo posso senti-la. Não com os meus toques agora despedaçados. Eu já não posso...
Sento-me diante daquele objeto amedrontador. Coloco os meus pés diante dos pedais. Dou um suspiro. E com toda a emoção que existe em mim, minhas mãos deslizam sobre as suas teclas. Elas deslizam, mas não há nada. Não há aquela profundidade tão conhecida, não há aquele transbordar. Não com minha mão agora inútil. Lágrimas começam a sair de meus olhos. Eu não consigo mata-las. Elas caem sobre as minhas mãos que erram cada nota suspirada. Acabo de matar a música preferida de mamãe, Silence de Ludwig Van Beethoven. Acabo de perder o meu elo mais precioso.
Um desespero se apossa de minha alma. Isso é tão assustador. Levanto-me revoltada fazendo o banco cair. Causando um barulho estrondoso. Passo com brutalidade o meu braço sobre o meu rosto, limpado a minha fraqueza. Olho para o piano com rancor. Mordo com força os meus lábios até sentir o gosto de sangue. Passo as minhas mãos entre os meus cabelos em um ato desesperado.
-Por quê? - Pergunto baixinho. Mas como sempre não encontro respostas.
Eu estou sufocada, a sala em que estou se torna pequena demais para o meu sofrimento. Começo a andar de um lado ao outro. E o piano continua ali, continua zombando de minha incapacidade. Em um ato desesperado eu começo a bater fortemente em suas teclas. Logo depois começo a chutar os seus pés. Socos e xingamentos. Ando em volta como um bicho acuado. Pego o que vejo pela frente e arremesso sobre ele. Vasos, castiçais, e tudo aquilo que minhas mãos alcançarem.
Isso dura uma eternidade. Meu corpo inteiro estar dolorido. Tudo em mim é dor. Mas a dor física nem se compara com a dor que está em minha alma. Volto a esmurrar as teclas do piano, minhas vistas estão embasadas pelas lágrimas constantes. Quando olho para as teclas, elas estão avermelhadas. Me assusto. Abro as minhas mãos. Elas estão cobertas de sangue. Dou alguns passos para trás, até meu corpo encontrar a parede. Caio ao chão aos prantos. Mas sem jamais desviar os olhos de minhas mãos. Respirar ficou tão assustador.
-Oh, meu Deus! - Uma voz apavorada me desperta horas depois. –Oh, Liz... - Sua voz sai chorosa.
Ouço passos se aproximarem de onde estou. Sei quem é, mas não consigo me ergue para olha-la. Vovó receia, mas finalmente sinto seus braços protetores me abraçando. Ela se acomoda ao meu lado no chão frio.
-O que houve minha querida? - Vovó me pergunta baixinho, como se falasse com uma criança pequena. Sinto sua voz tremer. –O que houve? - Ela insiste.
Mas o que posso dizer?! Tudo em mim é como um composto de dor. Porque me arrancaram o que eu mais gostava? Não bastava apenas me ferir com palavras e ações? Não bastava diminuir o meu amor?
-Liz. - Vovó me chama novamente. Mas... –Por favor, meu amor. - Sinto-a implorar para que eu volte.
Por que só o que estava ao seu lado era um corpo vazio. Um corpo sem sonhos e expectativas. Por que me roubaram tudo isso. Me roubaram a minha melhor parte. E o que restou nem sempre é o suficiente.
-Eu não consigo vovó. - Digo chorosa.
-O que você não consegue meu amor? - Sinto receio em sua voz. Olho para a senhora ao meu lado. Seus olhos passeiam pela sala destruída. Fico envergonhada pelo estrago cometido pelas minhas mãos. -Oh, Liz. - Vovó sussurra apavorada, logo depois segura as minhas mãos. –O que você fez?!
-Desculpe vovó, eu... eu não consigo tocar.
-Calma meu amor. - Sua voz sai entristecida.
-Eu tentei vovó, eu... eu juro que tentei. Mas as minhas mãos são inúteis. Elas... elas não sabem mais tocar.
Fim do capítulo
Bom dia meninas!
Esse capítulo me tocou bastante. Adoro drama. Rsrsr... Vamos dizer que a dor humaniza o ser humano ou simplesmente o destrói de uma vez. Mas sempre há uma transformação através desse sentimento.
Então não me odeiem, mas a Liz vai continuar a passar por sua fase de degradação até chegar o momento... Sabe, aquele momento em que finalmente acordamos?! Ela precisa passar por essa fase de sofrimento, de luto e aceitação. Ela precisa se conhecer.
Bjus...
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Manuella Gomes
Em: 15/08/2020
É tão forte a sua escrita.
Estou adorando a história.
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Kiss Potter
Em: 18/05/2018
Foi um capítulo bem profundo. Você conseguiu descrever com maestria as sensações ruins. Concordo com você. De toda desgraça sai um ensinamento e é daí que ressurgimos mais fortes.
Ansiosa pelo próximo!!!
Resposta do autor:
Bem, voltando a nossa realidade atual.
É exatamente isso. Não há como cair mais fundo quando já estamos no fundo do poço. Então somos impulsionados a subir. Precisamos de um baque para acordamos de nosso comodismo e enfrentar. Enfrentar o sofrimento, perdas, e a nós mesmos. Mas antes precisamos ter o nosso tempo de luto. Até estarmos prontos.
Bjus...
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Caranguejeira
Em: 18/05/2018
Qm é maria do bairro comparado a Liz??
Eita mina sofrida..me tocou o coracao...
Força Liz!!
Resposta do autor:
Rsrsrs...
Boa!
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deni
Em: 18/05/2018
"Que tristeza mais tristonha"
Vc disse que seria so mais um pouquinho de dor e sofrimento.
Resposta do autor:
Oh, minha linda. Será!
Haverá um momento de crescimento para Lizandra agora. Mas haverá mais algumas perdas e aprendizado ao longo da estória. Isso é inevitável. E eu adoro um bom drama. E não existe drama sem sofrimento.
Bjus...
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erikarenata
Em: 18/05/2018
Capítulo maravilhoso!
Nessa hora deu pra sentir a dor de Liz mesmo só lendo...
Deu pra sentir a emoção em cada palavra!
Parabéns
Resposta do autor:
Obrigado!
Tentei ao máximo demonstrar o que Liz está sentindo através desse capítulo.
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