Capítulo 1
CLARA
O barulho da chuva no telhado foi o que me acordou, de acordo com o relógio teria que levantar em dez minutos, e logo estaria na rua tomando toda aquela chuva. Pensei por uns segundos se poderia me dar ao luxo de faltar a aula aquele dia. Não podia, tinha duas provas e mais um trabalho a entregar , com raiva ainda maior me impulsionei para fora dela e fui tomar meu banho. As 06:20 já estava tomando meu café, e deixando do papai pronto para quando ele chegasse da fábrica.
Conferi se meu uniforme do trabalho também está na bolsa, a horrível camiseta laranja da loja de calçados que eu trabalhava três vezes por semana, economizava tudo o que podia para o caso de não conseguir uma bolsa integral na faculdade, para poder pagar pelos menos os primeiros meses de estudo. E se conseguisse a bolsa , meu dinheiro então serviria para me manter longe dessa cidade idiota. Onde era rotulada sem nunca ter feito nada de errado, mas os habitantes de Cêu Azul que fossem todos para o maldito inferno, porque sei que uma vida melhor me aguarda fora daqui.
Meu guarda- chuva ou "meu guarda cabeça" como papai costuma falar não foi de grande ajuda, teria que caminhar os vinte minutos da minha casa até a escola pública debaixo daquele aguaceiro, e o dia só piorou quando o maior playboy da cidade passou correndo em seu carro esportivo, que ele não tinha permissão de dirigir , e molhou toda a minha calça e tênis, não demorei um segundo para mostrar o dedo do meio para ele, que riu claro da minha cara e acelerou ainda mais. Cretinos , ele e seus séquito de adolescente riquinhos dessa merd* de cidade! O mais dignamente possível chacoalhei a lama da calça, olhei o relógio e sem chance de conseguir pegar a primeira aula se voltasse para trocar de roupa, decidir então mandar tudo a merd* e ir daquele jeito mesmo, como se eles fossem me desprezar mais ou menos por conta da minha roupa.
Cheguei na escola e o primeiro sinal já tocava, enquanto corri para a sala, dei um olá para minha única amiga que também corria para a sala dela, nós éramos duas excluídas sociais que nos juntamos, e mesmo se não fosse assim , ainda escolheria mil vezes a Ana para ser minha melhor amiga. Na sala todo mundo já sentados em suas carteiras, corri para minha solitária na primeira fileira, o idiota do Rogério e seus amigos riram e apontaram para minhas roupas, e mais uma vez fiz cara de paisagem, nada do que sentia passava pelas minhas expressões , era mais que treinada para disfarçar minhas emoções, se não colocasse minha máscara todos os dias, provavelmente tudo seria muito pior.
Foi quando ela entrou, e imediatamente a reconheci, e foi com muito custo consegui continuar com a mesma expressão indiferente, mesmo que meu coração pulasse na minha cavidade peitoral e minhas mãos suassem, Pietra continuava linda como sempre, diria até mais. Seus cabelos amarelos trigos soltos e enormes jogados ao acaso como se ela tivesse acabado de acordar , a roupa simples mas estava na cara que cada peça custava mais que meu salário de seis meses na loja. A mochila que parecia cheia, e um livro na mão, e isso me fez lembrar que ela nunca deixava de levar um livro , onde quer que fosse, desde que éramos crianças . Seus grandes olhos azuis varreram a sala e encontraram os meus , e por um ínfimo momento sei que ela me reconheceu, e quase sorriu, mas então o Rogério ,o idiota gritou seu nome e abraçou forte, depois algumas meninas também foram cumprimenta-la e Pietra foi arrastada para o fundão da classe, para os seus iguais, para seu grupo de riquinhos e eu voltei para o meu lugar. A pária da cidade.
PIETRA
Condenada, e assim que me sinto. Estou de volta a Cêu Azul a cidade mais infeliz do mundo, e digo com propriedade, já que mesmo com apenas 17 anos , sou uma pessoa que já viajou muito. Estive em cada canto desse planeta azul, já comi as comidas mais exóticas, já conversei com as pessoas mais interessantes, em várias línguas, já experimentei várias culturas, isso tudo com a minha mãe, que é fotojornalista. Sempre que estava de férias viajava muito com ela, menos quando era área de guerra, mas tirando isso minha mãe me levava para tudo o que era lugar, os outros lugares que conheci foi através da minha paixão, os livros, acho que o único motivo de orgulho para meu pai. A única coisa da qual ele não me privou.
Tudo tinha começado a alguns meses atrás, no internato em que estudava desde meus 14 anos, quando finalmente deixei Cêu Azul para trás, e por que não dizer que naquela época meu coração também. Meu pai exigia a perfeição que nunca era alcançada . Minha mãe tentava argumentar com ele, mas Seu Flavio é intransigente, e esses foi um dos motivos que levaram a minha mãe nunca ter aceitado se casar com ele. Segundo ela, conseguiu viver com ele exato três meses, depois que estava grávida, e depois disso ela apenas pegou as coisas e se foi. Por um tempo ainda vivi com ela, mas devido a sua profissão nunca teria uma vida estável , ela decidiu dar minha guarda para meu pai, e me ver o máximo de tempo possível. E bem ruim ficar longe dela, mas certamente quando estamos juntas passamos um tempo de qualidade, pelo menos e isso que sempre tento me dizer.
Com meu pai e outra história, a palavra que poderia definir nossa relação e ausência, ele apenas aparece para me criticar, julgar e exigir, isso é extremamente cansativo, ainda assim devo ter algum complexo de filhinha de papai, pois ainda luto essa batalha impossível de ter a sua aprovação , por isso quando meu pai pede para pular, eu pulo.
Por isso estou de volta, e por conta da Carolina, meu segredo, e mesmo meu pai não tendo a certeza , ouviu os rumores, as fofocas, as verdades nas entrelinhas, então ele demandou que voltasse.
Entro na sala com melancolia e as expectativas baixas, pelo menos falta bem pouco para o fim do ensino médio, e mesmo sabendo que vou para a faculdade que ele escolheu, cursar o que ele já determinou, ainda terei a liberdade que tanto almejo.
Mas não ainda.
O que tenho nesse momento e um coração saltando pela minha boca ao pousar os olhos nela, aquela que amei tanto , que me fez descobrir coisas sobre mim que nem sabia, na minha inocência de criança não a julguei, mesmo sem entender porque outros fazia, e foi por causa dela que fui embora também. Ela está muito diferente da menina de cabelos castanhos de tranças e sorriso fácil daquela época. Seus cabelos estão negros como asas de corvos, esconde metade do seu rosto, como se tivesse se protegendo de olhos alheios, sua maquiagem é pesada, nos olhos rímel preto e sombra da mesma cor, lhe dando um ar de roqueira drogada, na boca um roxo destacando os lábios fartos, seu olhar cheio de raiva e ressalva, mas ao cruzar com os meus pareceram suavizarem por um instante, mas antes que eu possa esboçar qualquer reação pessoas que menos gosto me cumprimentam com alegria e me arrastam para o fundo da sala, pessoas que meu pai aprovaria em um segundo, por isso dessa vez sei que preciso ser mais uma nessa cidade que a ignora, mesmo querendo não fazê-lo.
CLARA
Na hora do intervalo Ana está me esperando na nossa mesa dos rechaçados, e a mais longe do pátio, perto das lixeiras. Ninguém senta conosco, seu sorriso e afável e meu lanche já está na mesa quando chego. Ela logo percebe meu mal humor e pergunta:
- que houve?
Arranco o sanduíche com força demais do papel , respondo entredentes:
- o de sempre.
Aponto para minha calça suja de lama, ela apenas balança a cabeça resignada, e começa a tagarelar sobre alguma coisa, ao qual não presto atenção. Eu amo a Ana , acho que sem ela enlouqueceria, mas hoje minha mente está longe, ou melhor bem ali na frente, na figura esbelta de Pietra, que sentada com seus amiguinhos. Em nenhum momento seu olhar cai sobre mim, o que me deixava livre para me torturar com sua imagem.
Ana não sabe o que senti por Pietra, apesar de saber da minha orientação sexual, me aceitou , mais um motivo para ama-la.
Sim, é exatamente o que estão pensando, além de ser odiada por essa cidade por conta do meu passado, ainda sou lésbica, como se eles precisam de mais motivos para me julgarem. E sim, Pietra foi a primeiro amor.
Mas antes de contar essa história, tem mais um fato que precisam saber, deve estar se perguntando porque esse povo rico estuda nessa escola pública, ainda mais no Brasil. Ai vai a explicação, a Escola Irmã Maria Rebalato e de longe o melhor colégio da região, tem até cursos de línguas e alguns poucos profissionalizantes, e alta aprovação nos vestibulares de muitas faculdades federais e estaduais. E sendo uma cidade pequena e mais cômodos para os pais deixarem seus rebentos privilegiados continuar na boa escola pública.
Mas voltando ao primeiro amor, estava no jardim de infância e não sabia porque as crianças simplesmente não queriam brincar comigo, eram os pais que as influenciavam a nunca chegar perto da filha da assassina. Pietra por não ter pais presentes, isso não foi problema para ela, então desde que ela dividiu comigo um bolinho de creme, ficamos inseparáveis.
Acho que as professoras não gostavam muito, mas nunca fizeram pressão para nos separar. E assim crescemos, ela compartia comigo a saudade da mãe, a ausência do pai, o amor pelos livros e as viagens incríveis, por minha parte compartia com ela meu pai amoroso, minha tristeza por ser estigmatizada por algo que não fiz, a dor do passado horrível da minha mãe.
Quando estávamos com 14 anos, Pietra me convidou para ir a sua casa, até aquele momento nunca havia pisado na mansão ,ela algumas vezes ia na minha, e aproveitávamos para brincar no riacho que tinha atrás da minha casa, mas um dia ela chegou e disse que o pai não estaria, que poderia aproveitarmos a piscina e fazermos as lições de casa.
Há um tempo já me via pensando em Pietra de outro jeito, começava a admirar seus lábios finos e bem desenhados, sua bunda empinada a barriga chapada. E isso começava causar certa sensações no meu corpo cheio de hormônios, mas nunca arriscaria a minha única amizade. Quando chegou o dia, vomitei duas vezes e fui, a casa dela ficava do outro lado da cidade, mas esta é tão absurdamente pequena que em vinte minutos a pé cheguei, ela me esperava no portão. Me fez entrar, os empregados olharam estranhos, mas nada disseram. Nos trocamos e fomos para a piscina, não tenho palavras para descrever o que é Pietra em um biquíni, brincamos a tarde inteira, depois lanchamos e fomos fazer os deveres.
Quando me preparava para ir embora, Pietra foi até a porta e a trancou com chave, achei estranho a atitude, mas ainda brinquei:
- vai me faze prisioneira?
Pietra estava séria, a testa franzida do mesmo jeito quando tentava resolver um problema de matemática, matéria tão fácil para mim mais ridiculamente difícil para ela, se aproximou de mim. Ficamos a poucos centímetros, meu coração disparou, meu corpo reagiu com excitação quando ela colocou as mãos em meu ombros:
- o...que.. que e isso Pe? - gaguejei
Ela não disse nada, apenas levantou o rosto e me beijou, meus olhos estalaram abertos e meus lábios se abriram de susto, ela me puxou mais perto , e minhas mãos pousaram na sua cintura. Ela era um pouco mais baixa, se afastou, e me deu um olhar de tanta ternura e amor que meu peito doeu, disse em um sussurro:
- eu gosto de você.
- eu também.
- para beijar.
- eu também.
Então ela sorriu, e me beijou de novo, não um beijo de volúpia, cheio de desejo, foi um beijo de boca fechada de criança, de meninas que estão aprendendo. Foi meu primeiro beijo e o dela também. E foi perfeito.
Quando fui para casa, não sabia que o mundo poderia ser tão colorido, tão lindo, em nenhum momento questionei o certo ou errado por sermos duas meninas. E só sabia que amava e era correspondida. Meu mundo finalmente estava inteiro.
Até o dia seguinte.
Quando cheguei na escola a notícia de espalhara de tal forma, que chegou até mesmo a mim. Pietra havia saído da cidade, para estudar em uma escola chique, eu não sei como aguentei até o término das aulas sem chorar. Assim que o sinal tocou corri até sua casa, tinha que ser mentira, ela não poderia ter ido embora sem me dizer nada.
Seu Antônio, que era meu vizinho e jardineiro dela viu meu desespero que gritava ensandecida o nome dela, chegou perto e tentou me acalmar, percebi que a contragosto, ele era um dos que virava a cara para minha família:
- vai para casa.
- porque ela foi embora?
- o pai decidiu assim menina, agora anda chispa daqui, antes que chame seu Flavio.
Fui, o que mais poderia fazer.
A partir daquele ano meu mundo mudou, a revolta de tantos anos de desprezo me invadiram, de menina comportada, virei uma rebelde, pintei os cabelos, usava maquiagem pesada, mas era apenas uma máscara para eles, finalmente minha imagem se transformara no que eles pensavam de mim, mas não agia como uma louca inconsequente. Meu pai não precisava disso, e nem eu merecia. Um ano depois a Ana chegou na cidade, e para minha sorte ou azar dela, as pessoas daquele lugar detestava forasteiros, e por mais que Ana também fosse um deles, os riquinhos, já que seu pai era diretor da fábrica, ela não fora aceita. E mesmo que não fosse por conta dela ser de fora, tinha a aparência errada, Ana é obesa, tímida e uma pessoa com o coração que não cabe no peito. Onde aqueles hipócritas viram defeitos, vi qualidades. Mas antes de que nos tornássemos amigas, contei quem eu era, ela não se importou. E estamos juntas até hoje.
Ana é uma irmã, nunca considerei mais que isso, e sim já beijei outras meninas, quando íamos a festa na cidade vizinha , mas nunca me apaixonei de novo, meu coração parecia morto, até hoje.
PIETRA
Ela não tirava os olhos de mim, e isso me deixava inquieta, porque precisava deixar tudo isso para trás. Não poderia dar mais nenhuma bola fora, precisava manter a cabeça baixa e me formar. Mas ainda assim seu olhar me queimava, e me fazia lembrar de antes, de como éramos inocentes, de como Clara havia me encantado, com seus lábios cheios, seu jeito de enfrentar a vida difícil que levava sem ter culpa, mas principalmente a sua coragem.
Fui eu que a beijei, já havia reparado nos olhares dela, tímidos mas com um certo desejo infantil, afinal éramos sim meninas que começávamos a descobrir os nossos corpos. Mas ao invés de incomodar, me agradou, porque também a olhava daquela forma, e me preocupou, meu pai jamais aceitaria tamanha aberração, meus amigos, as pessoas daquela cidade.
A oportunidade surgira na viagem de papai, mas não contava com os linguarudos que trabalhavam para nós, até então conseguira mantes minha amizade com ela as escondidas, de papai pelo menos. Eu sabia que ele odiaria se soubesse que minha melhor amiga era a pária da cidade, a filha da mulher que acabara com uma boa família de Cêu Azul, mas eu não entendia nada daquilo naquela época.
Só queria Clara na minha vida, então o dia que ela foi na minha casa foi perfeito, até hoje o considero um dos melhores. E quando finalmente acabava, reuni a coragem que tanto me faltava e era tão abundante nela. Ela nem sonhara que fosse fazer aquilo, quando meus lábios encostaram nos dela e sua boca abrira, quase coloquei a língua dentro, como havia lido em um livro, mas achei que era demais, não queria matar minha amiga do coração, teríamos tempo, ou era o que achava.
Me declarei, e mesmo achando que seria correspondida meu coração só se acalmou quando ela confirmou que também me queria. A beijei de novo, senti cheiro do sol na sua pele, e foi com aquele odor delicioso que fui dormir, planejando nossos próximos passos, sonhado com meu primeiro amor, achando que estava no céu e acordei no inferno.
Papai entrou meu quarto em ímpeto tão grande que acabei acordando assustada , e piorou quando ele abriu meu guarda roupa e jogou todas minhas roupas pelo chão, na cama , em cima de mim. Parecia possesso , por um momento o pavor me tomou, achando que ele sabia do beijo, que me mataria ou faria algum mal a Clara, choraminguei :
- papai o que está fazendo?
- levante-se agora - ele urrou - arrume sua mala, você vai para a suíça, para o internato.
- porque?
- porque já é hora, porque cansei de você andar com essa gentinha miserável dessa cidade. vai ser uma pessoa acima deles Pietra, ordeno isso.
Eu sabia que não era todos eles, soube que os empregados haviam aberto a boca, e que finalmente a desconfiança do meu pai se tornara a verdade, que Clara era minha amiga.
Em um átimo estava em um avião, nem tive tempo de me despedir, meu choro me acompanhou toda a viagem. E durou muito tempo , até conhecer Carolina, e então eu soube que era diferente mesmo, não havia como negar mais. Gostava de meninas. Imagino se fui a única garota da qual Clara gostou ou se também ela era diferente.
Meus pensamentos voltam, e vejo Clara e a menina que está com ela se afastar, elas riem alegre, a menina pega no braço dela e lhe dá um cutucão no quadril. Não posso impedir o ciúmes me invadir, apesar de tanto tempo, apesar de Carol, sabia que Clara ainda estava em mim.
Desviei o olhar, abrir meu sorriso que não chegava em meu coração, e continuei a fingir, eu era boa nisso.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 05/07/2022
Algo me diz que,se a mãe da Clara matou alguém,foi legítima defesa.
E o preconceito sempre tentando destruir vidas.
A Pietra claramente tem medo do pai.
Boa noite Sam.
Resposta do autor:
Boa noite Lea
Ah que prazer encontrá-la em mais uma história minha *\0/*
Ah , tem muita coisa que as protagonista vão enfrentar e infelizmente com tão pouca idade.
A clara carrega o pecado da mãe...
Mas vc vai descobrir.
Ótima leitura ^_^
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