CapÃtulo 16 - Destino, o tesouro da vida.
Sônia
O hospital está parecendo um pré-velório. Todos estão consternados com a morte do Dr. Olavo Alcântara. Alguns mais do que outros, principalmente nós que éramos mais próximos dele. Conheci o doutor ainda na minha infância quando minha mãe foi auxiliar de limpeza do hospital. Poderíamos passar despercebidas por ali, mas acabei criando uma amizade de infância com a futura dona não só deste hospital, mas de toda rede no Brasil. Montserrat, a única filha do doutor, sempre estava por lá. Não que ela gostasse, era apenas uma junção da solidão e o sonho do pai de que ela se tornasse uma doutora. Então, ela vivia trancada nas salas que não estavam sendo utilizadas para fazer seus desenhos.
Minha mãe não tinha condições de bancar uma escola de tempo integral ou pagar para alguém cuidar de mim. Ou ela me mandava para os cuidados da minha avó em Natal, ou se arriscava em me levar para o hospital após o período de aula pela manhã. Por isso que quando dei de cara com a filha do Dr. Olavo, fiquei desesperada pois eu não deveria estar lá. Mas ela ficou tão feliz de saber que havia outra criança para brincar que concordou rapidamente em manter o segredo. Foi quase um ano de brincadeiras pelas salas e uma amizade incrível. Era um tal de Soninha para cá, Soninha para lá, brincadeiras e cumplicidade sem igual. Aquela época eu já via que a Montserrat não queria aquele universo para a vida dela. A loira não pertencia ao ambiente hospitalar e sofria por isso. Enquanto isso, eu olhava encantada para cada estetoscópio que chegava perto e Montserrat gostava de tirar as minhas medidas, pensava até em vestidos para mim.
Como minha já era previsto, um dia as coisas mudaram. Foi chorando que minha mãe disse que havia sido demitida. Na época, ela não me falou que houve uma denúncia de que ela levava a filha para o hospital por outra funcionária. Apenas quando eu comentei que tinha me candidatado a vaga para trabalhar no Hospital Alcântara que minha mãe fez a revelação. Depois de tantos anos, não me importei. Nunca fui de guardar rancor de ninguém. É claro que senti raiva porque o Dr. Olavo poderia muito bem manter o emprego da minha mãe e só pedir para que ela não me levasse mais. Mas o passado já estava feito e nunca podemos mudá-lo.
" - Então você é a Soninha de quem a Montserrat perguntou tanto por meses? Ela apreciava muito a sua amizade.
- Eu também gostava muito da sua filha, Dr. Olavo.
- O que você procura? Vingança por ter demitido a sua mãe?
- Se eu quisesse isso, jamais teria contado ao senhor quem sou como acabei de fazê-lo. Entrei aqui há quase quatro anos e creio que tenho feito um bom trabalho.
- Tanto que te chamei aqui para te promover - pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto sério. - Queria ver a cara da minha ex-mulher hoje com você de jaleco e se dedicando tanto a este hospital. Quando ela descobriu a amizade entre você e a minha menina, enlouqueceu. Como o mundo dá voltas, não é Dr. Sônia Ferreira?!"
E foi assim que ganhei a confiança do Dr. Olavo. Anos e anos trabalhando no hospital e crescendo no cargo. Convivendo mais com ele, percebi que na verdade sempre foi alheio a tudo que passava a sua volta. Sua vida era aquele hospital e suas pesquisas. Quem demitiu minha mãe foi a senhora Gertrude Schubert, com a assinatura do doutor que nem soube direito do que se tratava. O pai da minha amiga de infância só sabia assinar papéis que lhe entregavam, atender pacientes e estudar os casos mais complexos.
- Dr. Sônia? Ainda por aqui? - Dr. Galvão interrompeu meus pensamentos.
- Estava procurando o senhor para saber se está precisando de alguma coisa e acabei me perdendo nas lembranças.
- É, essa sala do Olavo realmente nos faz recordar muito ele. Está tudo bem, consegui resolver tudo, o velório começa daqui a pouco. Montserrat acabou de desembarcar, parece que está indo para a casa do pai.
- E como ela está?
- Não sei, o motorista que pedi para pegá-la no aeroporto relatou que ela não trocou mais do que um boa noite com ele.
- Montserrat deve estar bem cansada e ainda perdeu o pai, é muita coisa para a cabeça dela.
- Não sei por que insiste em defender essa menina. Quando ela esteve aqui para assinar a compra de uma parte do hospital, passou por você e nem sequer olhou direito na sua cara.
- Nós éramos duas crianças quando estivemos juntas pela última vez, como iria exigir que se recordasse de mim? - tentei disfarçar, mas aquilo me atingiu. Eu jamais me esqueci dela.
- Sônia - deixou a formalidade de lado - eu conheço a mulher que Montserrat se tornou. Ela foi uma criança doce sim, mas os adultos são outros. Você vai se decepcionar se continuar criando expectativa para que ela administre esse hospital. Eu aposto que vai vender em um grande leilão para qualquer um, acho melhor você procurar outro lugar para trabalhar.
Eu quero muito que o que escutei não seja verdade. Mas, infelizmente, não posso rebater o Dr. Galvão. Não por agora, ainda mais com a ausência da Montserrat nos últimos dias do pai.
- Vamos esperar para só depois tomar alguma atitude, Fernando - sorri sem graça. - Mas me responde uma coisa, por que o Dr. Olavo chamou a Sara para conversar? Estranho que ele tenha falecido praticamente nos braços dela.
- Eu também não entendi muito bem. Só sei que ontem a primeira coisa que ele fez quando me viu foi pedir para chamá-la. Olavo gostava muito da Sara, via um grande potencial na menina. Quando perguntei para ele o que queria com ela, disse que queria pedir perdão pelas atitudes que teve quando veio trabalhar aqui. Será que eles estavam tendo um caso? - ele deu uma risada debochada.
- Fernando! Não fale assim da Sara! Dr. Olavo também me pediu perdão na semana passada. Disse até que queria que minha mãe estivesse viva para pedir perdão também. Deve que ele sentiu que estava morrendo e chamou as pessoas que ofendeu de alguma forma. Sara faltava chorar quando chegava em casa porque ele pegava no pé dela.
- É, minha amiga, Olavo quis ver todo mundo, mas jamais chamou a própria filha.
Mais uma vez o Dr. Galvão trouxe a Montserrat para a conversa. De novo querendo me colocar contra ela.
- Desse jeito você vai isentá-la da culpa, meu amigo. Vai ver por isso ela não veio.
Meio a contragosto, respirou fundo e tirou o jaleco.
- Bem, estou indo para o velório, me acompanha?
- Não, estou vindo de um plantão e prefiro descansar. Amanhã eu apareço para o enterro e dizer o último adeus. Boa noite, Dr. Galvão.
- Boa noite, Dra. Sônia.
Sara
Acordei com uma sensação estranha. Não sei explicar se estou angustiada ou apenas triste pela morte do Dr. Olavo. Não foi a primeira e infelizmente sei que não será a última pessoa que vou ver morrer na minha frente. Mas talvez por conviver com ele, eu tenha ficado quase que chocada. Conversando com a Sônia ontem, antes de ela ir para o enterro, entendi que ele pediu perdão pela forma como me tratou no começo. Foi uma atitude surpreendente. Porém, ainda mais surpreendente foi saber que ele gostava muito de mim. Fui dormir pensando na outra parte da conversa que ocultei da Sônia, quando o doutor me pediu para cuidar da menina dele. Só espero que ele não tenha pedido para cuidar da filha. Pelo jeito que as pessoas falam, a mulher - não menina como ele se referia - é carne de pescoço. Ele deveria ter pedido isso para a Sônia que a conhece e parece ser a única que ainda a defende. Vai ver até queria pedir isso, mas não teve tempo.
Levantei-me tirando o carregador do meu celular e procurando notícias dos meus pacientes com a plantonista. Deixei uma menina de 5 anos com pneumonia aos cuidados da outra doutora e espero não ver nenhuma notícia ruim. Deixei de ir ao enterro do Dr. Olavo justamente pela garotinha, mandando apenas algumas flores para enfeitar seu túmulo e como agradecimento por tudo que me ensinou.
Tomei um banho rápido para em seguida colocar a tradicional roupa branca de hospital. Fiquei feliz por ter minhas duas amigas para o café da manhã quando entrei na cozinha.
- Bom dia Sô e Nanda - dei um beijo na bochecha de cada uma.
- Bom dia, Sara. Dormiu bem? - Sônia perguntou.
- Sim, eu praticamente desmaiei. Demorei a dormir por causa dos últimos acontecimentos, mas quando o sono veio, foi longo - olhei para a Fernanda que estava concentrada no celular. - E você Nanda, tudo bem? Que cara é essa?
- Está sim, querida. É só um cara do Tinder que eu saí ontem e que está querendo me encontrar de novo. Não quero vê-lo nunca mais.
- Por quê? - dei risada.
- Transa mal... - Fernanda fez uma careta engraçada.
Sônia que se levantou para colocar a xícara de café na pia deu risada mostrando bem seus dentes brancos e grandes e eu não fiquei atrás. Fernanda, uma mulher tão bonita, com os cabelos castanhos, pele bronzeada pelo sol e com sardas que a deixavam com um charme único, realmente não dava certo com ninguém.
- Eita, eita, eita... Gente, informação de última hora: A filha do Dr. Olavo comunicou a administração do hospital que fará uma visita hoje. Às 14hrs para ser mais precisa - Fernanda mostrou rapidamente o celular para mim e depois para a Sônia.
- Que bom. É sinal de que está interessada no hospital. Se ela quisesse vendê-lo, faria sem ir - Sônia sorriu.
- Olha, tomara que você esteja certa, Sônia. Porém, a mulher enterrou o pai ontem e hoje já vai tratar de negócios, talvez queria se livrar logo e essa visita é para avaliação.
- Credo, Fernanda. Até você que é sempre na sua está com implicância - Sônia balançou a cabeça negativamente.
- Bem, não sou de julgar, mas eu falei com ela por telefone e a achei bem arrogante. Impressionante ela ser casada, coitado do homem que atura.
- Mulher - Sônia corrigiu.
- Como? - Fernanda perguntou.
- Uma mulher a atura... quero dizer, ela é casada com uma mulher.
Eu deixei cair a colher da mesa ao esbarrar para pegar a minha xícara e arregalei os meus olhos com a informação.
- Que cara é essa Sara? - Fernanda questionou.
- Nada... é só que eu não esperava ouvir essa informação.
- Algum problema com a sexu*l*idade da filha do Dr. Olavo, Sara? - Sônia foi mais direta.
Eu engoli seco e ponderei sobre o que responderia. A verdade é que há muito tempo deixei de fazer questionamentos sobre a sexu*l*idade das pessoas. Descobri que não importa quem os outros amam, o importante é eles sejam felizes.
- Não, claro que não. Não tenho preconceito.
Mas já tive. Lembrei-me imediatamente da minha passagem por Slovenj Gradec. Não tem um dia que a Montserrat não invada a minha mente. Mon parece se materializar na minha frente em quase todas as mulheres loiras que eu vejo. O que será que a Sônia e a Fernanda diriam sobre o que eu fiz no passado? É claro que nunca contei essa parte da minha história para ninguém. Às vezes eu queria encontrar a Montserrat para apenas pedir desculpa pelas coisas que disse a ela. Mas a verdade é que jamais bateria na porta da casa dela, então eu nunca a verei. Tento esquecer essa parte da minha vida, assim como eu a oculto tão facilmente, mas a verdade é que ainda sinto saudade dos olhos verdes mais lindos que já vi.
- Por falar em mulher que namora mulher, acho que vou abrir o meu Tinder para mulheres também. Fiquei com uma mulher na época da faculdade e foi muito bom, quem sabe - Fernanda parecia falar sério.
- Você não vai encontrar ninguém por aplicativos, minha querida. Saia um pouco, vá dar uma volta pela praia, paquere como antigamente - Sônia aconselhou a Fernanda enquanto eu só assistia o diálogo com meus pensamentos na Montserrat.
- Sô, isso é coisa do passado. Eu só não encontrei a pessoa certa porque saio com quem está disponível na hora. Meus horários são malucos por causa do hospital. Eu tenho é que tirar férias para procurar um amor.
- O amor aparece quando a gente menos espera.
Foi com essa frase dita pela ortopedista que encerramos o assunto. Sônia e eu saímos juntas para o hospital e a Fernanda ficou em casa porque só irá para o hospital depois do almoço.
...
É claro que passei a manhã inteira imaginando como seria a filha do Dr. Olavo. Em um dado momento, caiu a ficha de que eu não sei nem ao menos o nome dela. Passei pelo escritório do meu ex-chefe no meio da manhã para ver se tinha algum porta-retratos da família e não encontrei. O jeito é esperar um dia que a mulher queira conhecer os funcionários. Se a Sônia estiver certa, hoje mesmo o fará. Se a Fernanda estiver certa, talvez eu nunca saberei se ela é parecida com o Dr. Olavo ou não.
Entrei no quarto da paciente de 5 anos que se recupera de uma pneumonia e fiquei muito feliz pela recuperação dela durante a madrugada.
- Tia Sara, eu quero pirulito - pediu manhosa.
- Oh meu amor, você acabou de tirar os aparelhos, ainda é muito cedo para comer doces. Mas eu prometo que se você continuar tomando todos os medicamentos direitinho, eu trago um bem grandão para você.
- Então eu vou ser uma menina bem boazinha e tomar tudo que você pedir - sorriu ainda fraca e quase dormindo por conta dos remédios que ministrei.
- Eu acredito em você, meu anjo. Agora descansa para acordar bem melhor mais tarde.
Fiquei mais um tempo para sentir como a respiração da paciente se comportaria para depois sair satisfeita ao vê-la dormir tão tranquila.
No corredor, fui bipada com urgência. Uma chamada na UTI pediátrica me fez correr.
Quando se é chamado para salvar uma vida, chegar o mais rápido possível ao local é o único desejo. Poderia tê-lo feito, mas senti que trombei com algum outro corpo quando no caminho. A trombada foi tão forte que me desequilibrei e só não fui ao chão pois consegui me segurar na parede. Mas eu acabei derrubando a outra pessoa que caiu de joelhos.
Rapidamente me recompus e vi a mulher no chão aceitando a mão do Dr. Fernando Galvão como ajuda para levantar-se. Ainda de costas, vi uma tatuagem na nuca exposta. A mesma tatuagem de anos atrás. A tatuagem inesquecível.
- Montserrat, está tudo bem? - Dr. Galvão perguntou.
Ela ficou em pé. A postura altiva continua a mesma, logo pude ver. Girou o calcanhar com maestria em cima do salto e olhou para mim. Os olhos verdes cravaram nos meus, perdi o ar.
Fim do capítulo
Vou fazer o que a Shopie pediu e postar três capítulos em três dias seguidos (não acostumem-se).
Por hoje é isso.
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dannivaladares
Em: 25/02/2018
A gente sente que Sara ainda não aprendeu nada com a vida, nada com o que passou.
Mas as peças vão se encaixando com perfeição.
Gostei do capítulo.
Att,
Daniela.
Resposta do autor:
É, algumas pessoas demoram mesmo. Acredito que ela tenha seus conflitos e reflexões internas, mas acaba sempre agindo por impulso.
Obrigada.
Abs.
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Michely
Em: 24/02/2018
Ohhh meu Deus..assim o coração não aguenta...Sara , e agora? Montserrat sabe que iria reencontrar Sara ou Dr Olavo que fez isso , pq de longe cuidava do coração da filha?
Bju ..obgda pelos capítulos extras
Resposta do autor:
Dr. Olavo não sabe da relação das duas.
Beijos, eu que agradeço seu comentário.
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NovaAqui
Em: 24/02/2018
Então sara está arrependida? Que bom! Talvez facilite um poipoa missão que doutor Olavo deu para ela: cuidar de Mon
Agora é ver como será o pos esbarrão.
Abraços fraternos procês aí!
Resposta do autor:
Arrependida de não ter conversado com a Mon? Sim.
Também sim, pode facilitar. Vamos ver se a Mon quer ser cuidada.
Abraços para você também.
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Andys
Em: 24/02/2018
Olá autora!
Viva mais capitulos!
A Mon teve recaida e voltou com a ex..isso raramente dá certo mas vamos lá. Nossa mas a Mon ficou mais casca dura do que antes louca para ver como vai reagir com a Sara...ela sempre ensaiava e não conseguia ser dura. Mas depois de tanta patada da Sara ela merece uma revanche. Vai ser um embate de titãs apesar de achar que a Sara merece uns bons "coices" tomara que não se deixe abater por isso afinal é uma guerreira-sobrevivente e convenhamos a Mon é muito arrogante no tratamento com as pessoas.Sara não abaixa a cabeça não menina!Ah esperando faiscas desse reencontro!
Resposta do autor:
Olá!
Hahahahaha. Eu não sei porque vocês comemoram tanto. Pensa: fds teriam dois mesmo e mais um quarta. Só adiantarei um amanhã, que seria o de quarta.
Ah, quem sabe dá certo com as duas, já se conhecem e tal. Era só a Sara ser um pouco mais doce que quebrava a Mon, realmente. Faíscas? Pode ser que ainda não.
Abs.
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preguicella
Em: 24/02/2018
Eitaaaa, um encontrão!
Eitaaaaa, três capítulos seguidos! Adoroooooo!
Ai gzuis, como vai ser esse reencontro?!
Vou começar a usar esses artifícios, pedir capitulos! hahaha
Bjão e até amanhã! ;)
Resposta do autor:
Bota encontrão nisso hahahaha.
Saberemos em alguns minutos.
Nem tenta, não vou mais abrir exceções :D.
Beijos.
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