questão em debate
Capítulo 19: VEXATA QUAESTIO
Aula de IED finalmente. Os alunos do primeiro período de Direito, pareciam ansiosos para testemunhar um debate político em véspera de eleição. Tanta expectativa acentuava o nervosismo de Natalia, que ainda se perguntava como conseguira se envolver no embate pessoal entre a professora e a aluna repetente e petulante.
O nervosismo de Natalia só não era maior do que a ansiedade por rever Diana, remexia-se na cadeira olhando para o relógio, relia suas anotações, tentando ignorar os comentários dos colegas que formulavam hipóteses sobre o comportamento das protagonistas no debate. Seu coração por pouco não lhe saltou à boca, quando viu a loirinha adentrar com seu estilo único. Naquele dia, Diana usava um suspensório para compor seu visual despojado, nunca fora referência de moda, mas entre as alunas, a opinião era uma só: o que ela veste sempre cai bem.
Trocaram olhares cúmplices, tentando esconder o brilho de felicidade que eles tinham ao se encontrarem.
-- E aí? Preparada? – Natalia perguntou quando Diana se sentou na fila paralela.
-- Aprenda uma coisa caipira: você nunca está preparada para enfrentar Madimbú.
Natalia franziu a testa diante do jeito frio que Diana respondeu, especialmente por que fora chamada pelo apelido irritante mais uma vez.
-- E você, trate de pelo menos não me atrapalhar, enquanto apresento o trabalho.
Diana concluiu sem encarar Natália que estava estarrecida com o tratamento dirigido a ela, sem cor na face ainda teve que ouvir o comentário de Ruth que cochichou:
-- Não se preocupe, é só uma grossa, recalcada por que a colocamos no devido lugar, não nos intimidamos com o assédio dela.
Natalia engoliu os desaforos que Ruth merecia ouvir, ruminando o tom ríspido de Diana, quando ouviu a campainha de mensagem do texto do seu celular:
-- “Controlando minha vontade de te beijar, difícil fingir que não estou caída por você. Saudades, obrigada por ficar do meu lado”.
Ao ler, Natalia olhou para o lado discretamente, deixando escapar um sorriso extremamente discreto quando Diana lhe deu uma piscadela, acenando que sua antipatia era puro teatro.
Contra as expectativas, naquele dia, a doutora Dorothea demorou a chegar, aumentando a tensão de Natalia e Diana. Com mais de meia hora de atraso, a professora chegou tranquila, seu comportamento sereno parecia ensaiado para despertar o pavor das alunas que não se prepararam para uma simples apresentação de um trabalho, e sim um duelo desigual.
-- Diana fez a tarefa que lhe incumbi?
-- Claro Meritíssima.
-- Pois bem, estou esperando a explanação.
Doutora Dorothea não deixou que nenhuma emoção transcendesse sua expressão. Sentou-se na cadeira atrás da mesa da sala, com a mesma postura de magistrada no Tribunal do Júri, deixando subentendido para a aluna que ali ela era a ré a receber sua sentença.
Diana pôs-se de pé altiva, fazendo sinal para que Natália fizesse o mesmo.
-- Elegemos um caso que já fora arquivado, julgado na 18ª Vara Cível da Comarca de São Paulo – SP, já transitado em julgado, encontrando-se atualmente arquivado.
Natalia leu o relatório do processo eleito: “Tratam-se os autos de uma Ação de Obrigação de Fazer c/c Indenização por Danos Morais manejada por ANTÔNIO SOUTO em face do CONDOMÍNIO COLISEU, alegando em suma que o tratamento direcionado a sua pessoa, pelos demais condôminos e funcionários, a saber, “Você”, vem lhe causando danos de ordem moral, uma vez que não condiz com o tratamento digno com o cargo que ocupa razão pela qual requer que os moradores do supracitado condomínio sejam obrigados a tratá-lo formalmente de “Senhor” ou “Doutor”, bem como os seus convidados, sob pena de multa diária na importância a ser fixada judicialmente. Por fim, requereu a condenação dos réus ao pagamento a título de Indenização por Dano Morais no valor de 100 salários mínimos.”.
Como esperado, os demais alunos se manifestaram abismados com tamanho despautério cometido por um magistrado, os cochichos e risos tomaram de conta da classe, irritando Dorothea, que percebera o intuito de Diana ao escolher tal processo. A professora, traída pelo costume de ditar palavras de ordem em um tribunal deixou escapar:
-- Ordem! Ordem no recinto!
Espalmou a mesa com violência, como se sua mão fosse seu martelo.
O silêncio enfim se fez na sala, enquanto as bochechas de Dorothea se coravam ainda mais evidenciando que sua aparente passividade caíra por terra, Diana deixava escapar um sorriso no canto dos lábios, comemorando interiormente o sucesso do seu primeiro ataque: desfizera a simulada indiferença de Dorothea.
-- Conforme se vislumbra no relatório, o meio a que somos pretensos ingressos é permeado por um jogo de vaidades. Alguns dos que exercem a Ciência do Direito são movidos por soberba, o ideal de Justiça, insculpido em nossa Constituição Federal, onde todos são iguais perante a lei sem qualquer distinção, é suplantado por um ego buscando ser ovacionado. O Princípio da Isonomia foi deturpado, o Senhor Antônio Souto, contrariando a Carta Magna, se julga diferente, se considera melhor, tal qual os semi deuses da mitologia grega, investido no poder que o cargo lhe proporciona, merecendo, portanto, tratamento diferenciado em seu, frise-se, ambiente social.
Notando a perplexidade da professora com sua explanação, Diana prosseguiu:
-- Como todos podem atestar, a soberba de alguns que exercem o Direito, em nada faz valer a justiça e o bem comum, normas éticas dão lugar a um jogo de vaidades por vezes esdrúxulo como esse relato. O princípio equânime de que a justiça trata os iguais de maneira igual e os diferentes de modo diferentes, aqui foi deturpado, uma vez que o Meritíssimo Antônio Souto se julgou não só diferente pelo cargo que exercia, mas, principalmente, se acha superior, pelo poder que o Direito lhe outorgou, assim merecia tratamento diferenciado. Afinal quem esses cidadãos comuns? Reles mortais ignorantes que pensam que podem se reportar a mim como um igual? Acaso não reconhecem meu merecimento? Que país injusto! Qual será o próximo disparate? Um grupo de crianças ousando interromper meu sono com jogos na área de lazer do condomínio? Tenho a impressão que o Meritíssimo Antônio Souto se viu obrigado a dar uma lição a todos com sua iniciativa.
Diana usou da eloquência e desenvoltura que Dorothea não esperava de alguém que ela classificava como incapaz de até mesmo cursar sua disciplina. Entretanto, o que claramente desconcertou a professora, foi o tom de ironia, e em muitos trechos, o caráter sarcástico do discurso da aluna que arrancou não só risos dos colegas, mas, sobretudo a concordância destes acerca do absurdo embutido naquele processo.
Natalia lutava para conter o orgulho que sentia de Diana, deteve-se no seu papel de coadjuvante naquele duelo.
-- Então foi esse grande exemplo que você me trouxe? Isso é o máximo que você consegue expor sobre o quanto o Direito manipula o sistema para o benefício de uma minoria? O devaneio de um deslumbrado?
Diana precisou de frieza para rebater o golpe de Dorothea que desmereceu o fruto da pesquisa da estudante.
-- O que a Meritíssima considera como devaneio de um deslumbrado, eu vejo como um desrespeito aos Princípios Gerais do Direito, que são as ideias de justiça, liberdade, dignidade, democracia, etc. Enunciados normativos, muitas vezes de valor universal, que orientam a compreensão do ordenamento jurídico, que servem de alicerce para a construção do Direito. Se a Senhora não observa a gravidade do desrespeito a tais princípios, considerados a alma das leis, qualquer outro conduta que vá de encontro a tais ideias são justificáveis.
Se Dorothea fosse de fato Madimbú, ela avançaria em Natália naquele momento para golpeá-la com sua barriga avantajada enviando-a para um planeta anos luz distante da Terra. A intercessão da novata como elemento surpresa naquele entrave foi o golpe de misericórdia que definiu aquele round. Até Diana se surpreendeu com a segurança e a propriedade que Natalia demonstrou, anulando qualquer reação da professora.
-- Vejo que se aprofundou no conteúdo da disciplina. Como é mesmo seu nome?
-- Natalia, professora.
-- Obrigada pela contribuição com a aula às duas. Podem se sentar. Aproveitando o gancho que Natalia nos apresentou, vamos discutir hoje os fins sociais das normas e a Teoria Tridimensional de Miguel Reale: fato, norma e valor.
Se restava alguma dúvida, agora era oficial: Natalia estava na lista negra da doutora Dorothea. Isso não parecia intimidar a moça do interior, que no momento estava mais empolgada em comemorar com Diana, aquela pequena vitória sobre a soberba e a intransigência da professora.
Trocaram mensagens de texto combinando de se encontrarem na rua atrás da universidade. Saíram apressadas, ansiosas para se renderem à saudade, e celebrar o sucesso da parceria das duas contra o que Diana acreditava ser uma má representação do Direito no país.
Ao encontrar Diana à sua espera, montada em sua moto, Natalia teve o impulso de envolvê-la em seus braços e mergulhar na sua boca, mas, teve que conter o impulso, se escondeu atrás da banca de jornal a qual Diana estava estacionada, quando viu Lucas se aproximar da amiga.
-- Di! O que faz aqui?
Atordoada e tensa, temendo que o rapaz encontrasse Natalia, Diana desconversou.
-- Vim comprar uma revista que meu professor de fotografia indicou, mas aqui não tem.
-- Que pena... Estava mesmo precisando falar com você.
-- Aconteceu alguma coisa?
-- Não sei, gostaria que você me ajudasse a descobrir o que aconteceu.
Com uma expressão enigmática, o rapaz encarou Diana. E como quem deve, teme, a loirinha chegou a suar frio diante da abordagem do amigo.
-- Como assim Luc?
-- Como a gente sabe quando está apaixonado?
A expressão do rapaz mudou, desfazendo o olhar antes misterioso, dando lugar a timidez nada coerente com sua personalidade.
-- Estou enlouquecendo Diana. Natalia não me sai da cabeça, depois do aniversário do Ricardo então... Nossa! Procurei-a feito louco, ela simplesmente sumiu, mal dormi ansioso para no outro dia procurá-la com a desculpa mais esfarrapada, ajudá-la na faxina do apartamento dela, você tem noção do “caô" que usei só pra chegar à menina?
Diana fingia surpresa, encarando o amigo com os olhos esbugalhados.
-- Não me olhe assim, por que você ainda não sabe o pior!
-- Ah não me diga que isso ainda vai piorar...
-- Estou sofrendo desde que fui até o apartamento dela em plena manhã de domingo, pra fazer faxina, e ela me disse que estava acompanhada do ex-namorado jeca, e que os dois voltaram a namorar.
A loirinha ria por dentro calculando a piada da situação, ela sendo intitulada de jeca pelo amigo.
-- Sei que você quer rir, mas nem me importo, pode rir! Eu estou caidasso pela caipira como você a chama... O que faço?
Diana respirou fundo, e disse:
-- Esqueça! Desista! Essa menina só vai trazer problema, não serve pra você, além do mais, o Pedro também está afim dela, isso seria um desastre completo!
-- Não entendo o que você tem contra ela sabia? Isso tudo é ciúme de nós?
-- Não viaja Lucas! Que ciúme o que! Desde o começo vi que essa menina não era pra você, nem pro Pedro!
-- Você antipatizou com a menina desde o trote! Encarnou na menina sem pena, até aprontou com ela que eu sei!
-- Surtou Lucas?
Diana agora saltou da tensão para o desespero.
-- Ah Diana! Eu te conheço muito bem. Pensa que não vi você de combinação com a Morgana? Logo depois ela subiu com Natalia e você coincidentemente autorizou o blecaute, e disparou “está pegando fogo!” e aí a coitada apareceu naqueles trajes.
-- Lucas para de falar besteira não tive nada com isso! Toda festa que toco uma hora a gente faz o blecaute pra galera se pegar na pista, e por isso grito que está pegando fogo, a pegação!
A loirinha descompensada, explicava-se mais para Natalia que certamente estava ouvindo a conversa escondida atrás da banca, do que para o amigo.
-- Diana... Quem não te conhece, que te compre! Fazer esse tipo de coisa com bicho é sua cara, mas você pegou pesado com o lance das fotos...
-- Fotos?! Não fui eu que fiz as fotos, nem muito menos divulguei você sabe o quanto levo a sério o lance de fotografia!
-- A mim você não engana... Encrencou com a menina, por isso, não quer nem que eu, nem que o Pedro fique com ela! Mui amiga você...
-- Lucas você é um idiota!
Diana estava possessa. Apesar de não ser completamente inocente na história, não era assim que pretendia revelar sua participação na brincadeira de mau gosto que Natalia fora vítima no trote.
-- Você é que está se comportando como uma! Egoísta, ainda por cima, ciumenta e infantil!
-- Ah quer saber Lucas? Vá pro inferno!
Diana acelerou a moto, deixando o rapaz falando sozinho na calçada. Precisava encontrar Natalia, que não estava mais atrás da banca de jornal. Deu voltas no quarteirão, passou pelos pontos de ônibus mais próximos, voltou à universidade, ligou repetidas vezes para o celular dela, mas foi inútil, a menina não lhe atendia, e parecia ter evaporado das vistas de Diana.
Fim do capítulo
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