Capítulo 9
A VINHA E A PRAGA!
- Eu posso tocar nela?
- Não apenas pode como deve! É quando a tocamos que sabemos que ela passou do estado de catalepsia para a catatonia apenas. Além disso, tocá-la com cuidado e carinho só faz bem e ajuda na recuperação, ela precisa sentir que é querida!
Iara estava sentada de frente para Constance, olhava pra ela e sentia um nó na base do pescoço que fazia sua voz sair fraca. Tinha vontade de chorar! Nunca imaginou que alguém pudesse somatizar no corpo dessa forma uma dor, uma perda...era tão triste!
Perguntava à Emma tudo o que sua curiosidade permitia, não queria correr o risco de fazer alguma bobagem e incomodar Constance. Estava disposta a fazer o que fosse possível pra trazê-la de volta à vida e rezava para que ela a perdoasse da estupidez cometida pela manhã.
Emma tinha acabado de retirar o tubo do alimento intravenoso e pegou toalhas umidificadas para fazer uma rápida higiene em Constance, quando Iara a interrompeu...
- Deixe que faço isso Emma, por favor...preciso fazer!
Emma deu um sorriso aquiescendo e entregou-lhe um frasco dizendo...
- Depois pingue algumas gotas dessa lágrima artificial em cada olho, vou lá em baixo arrumar a mesa para jantarmos, qualquer coisa é só gritar!
Iara começou a passar as toalhas delicadamente pelo rosto de Constance. Via o olhar parado dela e sentia vontade de mergulhar neles para que pudesse saber o que se passava na mente daquela mulher tão sofrida. Fez o contorno das sobrancelhas dela, desceu pela face e percorreu o caminho do pescoço e colo. Constance tinha uma pele tão delicada que parecia uma pétala de rosa branca, sentia medo de macular aquela suavidade, e estremeceu diante de calafrios inexplicáveis! A limpeza no colo dela já havia se transformado em carícia e sem se dar conta Iara começou a falar baixo...
- Me perdoe, Constance, fui uma cretina! Não tinha idéia de como você ainda sofre com suas perdas. Eu juro que faria qualquer coisa para que você não tivesse ficado assim! Sinto tanto!
As toalhas passaram a limpar a não menos delicada pele dos ombros e braços enquanto Iara continuava com sua quase prece...
- Eu senti medo, ainda sinto! Medo de você, do seu jeito tão meigo, tão melhor do que eu em tudo, cheia de sentimentos nobres! Mas sinto medo de mim também! Muito medo do que você me faz sentir!
Iara não pensava direito no que dizia, apenas verbalizava o que vinha direto de suas entranhas! Precisava dizer a ela e tomara que ela esquecesse depois!
- São sentimentos novos, que desconheço, que não sei definir! Acho que meu maior medo é não conseguir controlar minha vida e minhas vontades depois de passar por você, Constance!
Chegou até as mãos e pegou mais uma toalha umidificada e deslizou por todas as linhas, palma, dedos, reentrâncias...aquelas pequenas e perfumadas mãos! Decidiu não brigar mais com a vontade que sentia e levou as mãos de Constance até seu rosto e as beijou com suavidade! Encostou uma delas em sua face e permitiu que as lágrimas viessem, murmurou...
- Desculpe, me ajuda a não sentir tanto medo de você...de mim!
Nesse instante sentiu um forte tremor involuntário nos músculos abdominais de Constance. Lembrou-se que o Doutor Giane havia dito que isso poderia acontecer enquanto ela estivesse cataléptica. Imediatamente levantou-se e pegando o frasco de colírio abriu delicadamente um dos olhos de Constance e pingou várias gotas, em seguida fez o mesmo com o outro olho. Afastou-se um pouco e olhou pra ela, a mulher manteve a cabeça erguida da mesma forma que Iara havia deixado. Então ela moveu o rosto de Constance o posicionando reto para frete, os olhos brilhavam com as lágrimas artificiais e ela parecia chorar! Iara nunca havia visto rosto tão triste, mas agora também o achava o rosto mais lindamente triste que se lembrava de ter visto!
- Pronto, já terminei o jantar e a mesa já está posta! Vamos descer para comer?
Emma chegou esbaforida, olhou Constance limpa, com os cabelos e a roupa arrumados, cheirando à lavanda das toalhinhas umedecidas, deu um sorriso para Iara e falou...
- Ela ficará bem até comermos. Venha, você também precisa se fortalecer, esqueceu das orientações médicas?
- Não esqueci! Você e Jordi me lembram o tempo todo! Será que ela ficará mesmo bem?
- Claro que sim! Depois do jantar você fica mais um pouco com ela, vamos!
O jantar foi rápido, Iara queria subir logo e ficar mais com Constance, sentia uma vontade imensa de estar ao lado dela o máximo de tempo que pudesse. Quando se levantou, Jordi comentou...
- Nossa Iara, você engoliu a comida!
- Mas comi bem e o suficiente. Fique tranqüilo, vou subir pra ficar com ela mais um pouco.
Jordi levantou-se e acompanhou a amiga, enquanto subiam as escadas e alcançavam o quarto de Constance, ele comentou...
- Não fique nessa ansiedade toda, senão pode fazer mal pra você e pra bebê também!
- Não estou ansiosa, Jordi, apenas me sinto em dívida com ela e quero muito poder ficar junto dela o máximo que eu puder. Sei que ela gostava da minha companhia e cuidou de mim quando precisei, agora quem quer ficar ao lado dela sou eu, me deixe fazer isso em paz, por favor!
- Tá bom...ok...não tá mais aqui quem falou! Faça como sentir melhor! Eu sei que ultimamente não era só ela que gostava da sua companhia, você também parecia estar gostando muito do tempo que passavam juntas. Só não quero que você exagere e se esqueça da sua própria saúde!
- Fique tranqüilo, vou cuidar de nós três direitinho!
Iara disse sorrindo e já pegando a mão de Constance junto à sua, aproximou a cadeira em que ela estava da long chaise em que se sentara, tirou alguns fios de cabelo que teimavam em cair pela lateral do rosto da mulher a sua frente e o gesto carinhoso não escapou ao olhar atento do amigo.
- Pode ser um baita clichê, mas tem males que realmente vem para o bem!
- Não concordo com você! Ela não precisava estar assim, eu acabaria cedendo...
- Sério?!
- Sim, já estava pensando em aceitar a proposta dela e ficar! É que às vezes me batia aquele medo estúpido que me fazia sentir vontade de sumir daqui! Mas agora meu maior medo não é perder minha liberdade...
- E qual é?
- É perder o carinho e o respeito que Constance tinha por mim!
Jordi ficou boquiaberto! Não conseguia acreditar na Iara que via na sua frente! Era outra mulher! Jamais imaginara ouvir isso dela, ter medo de perder o respeito e o carinho de alguém! Iara nunca deu muita importância aos sentimentos alheios e parece que no espaço de poucos dias uma nova mulher surgia de dentro da velha Iara e seus valores pouco louváveis! Ficou mudo! Era melhor deixá-la com seus novos sentimentos, confrontá-la poderia fazer com que ela sentisse mais medo ou vergonha das novas emoções.
- Ela é tão bonita né, Jordi? Olha que cor diferente tem os olhos dela! Quase verde-musgo! E a pele, parece uma pétala de flor!
Jordi olhava a amiga quase sem acreditar! Iara demonstrava uma delicadeza no toque e em seu olhar para Constance que era difícil crer que era a mesma pessoa que chegara àquela Vinícola pouco mais de uma semana atrás! Nunca a vira agir daquela forma com ninguém, aquele olhar da amiga ele não conhecia! Sentia-se feliz com o que acontecia com Iara, porém receava que ela recuasse diante do medo do novo que a assaltava!
- Sim...ela tem olhos lindos! E apesar do rosto sofrido, ela é uma bela mulher! Simples, sem sofisticação alguma, mas com uma aristocracia nata!
- A nobreza dela é congênita! Nada arranca isso dela! Nem mesmo a dor!
Iara fazia seus elogios num tom baixo, confidencial! Jordi a observava, cada vez mais surpreso!
Resolveu mudar de assunto...
- Vou precisar voltar ao Brasil, minha passagem está marcada para depois de amanhã! Como disse, tenho que ajeitar tudo por lá antes de vir ficar aqui com vocês. Sabe-se lá quanto tempo ficaremos aqui?! Alguns meses...um ano...dois anos...anos...
Disse isso olhando fixamente para a amiga a fim de ver sua reação e mais uma vez se surpreendeu...
- É...não tenho idéia de quanto tempo ficaremos...quem sabe?!
Definitivamente algo estava acontecendo!
Xxxxxxxxxxxx
No mesmo dia em que Jordi partiu, o médico examinou Constance e constatou que ela já não estava mais cataléptica! Naquela manhã ela já havia aberto os olhos sozinha e quando a levantaram para ir ao banheiro, ela o fez obedecendo a orientação de Emma e do Doutor Giane. Agora ela poderia fazer várias tarefas do dia a dia sem auxilio, responderia como um autômato aos estímulos de quem a tocasse ou induzisse a alguma ação, porém não interagiria com ninguém, até que voltasse ao mundo!
Seguiu-se então uma rotina que se estabeleceu automaticamente naquela casa. Iara levantava e antes mesmo de tomar seu desjejum, ia até o quarto de Constance ver como ela estava. Esperava que Emma a levasse ao banheiro para higiene e a ajudava a vesti-la, então desciam para o café da manhã e pacientemente fazia com que Constance comesse. Colocava em suas mãos o que tinha que comer e beber e somente após Iara levar o alimento primeiro aos lábios de Constance que ela repetia o gesto e levava o restante à boca. Da mesma forma era feito nas demais refeições. Iara aprendera a se auto aplicar as injeções de suplemento fólico e juntamente com Emma cuidava dos horários em que Constance devia ser medicada, limpa e alimentada. Só ia para a cama quando era hora de deitá-la também.
Passava a maior parte do dia junto dela. Muitas vezes falava com Constance como se ela pudesse responder e tinha a esperança que um dia de fato respondesse! Contava de sua vida no orfanato, da vida pós orfanato, inclusive o detalhe de que se prostituía com os “Paizinhos” para manter o padrão que queria. Contou do encontro e do casamento por interesse com Lorenzo, da sua ambição desenfreada, dos seus medos: medo de ser mãe, medo de mostrar fragilidade, medo de ser magoada, de se apegar e ser abandonada como sempre fora...medo dela!
Ficavam por horas nos jardins em volta da casa ou caminhando pelas vinhas! Adorava pegar uvas frescas para comerem e apreciar os girassóis que preenchiam os campos e as alamedas em volta da propriedade. Nesses momentos, Iara sentia como se Constance também estivesse aproveitando o dia, a companhia e a paisagem assim como ela.
Numa manhã enquanto caminhavam por entre as videiras, um dos funcionários comentou a praga que começava a afetar algumas parreiras. Mostrou como os frutos ficavam atrofiados e as folhas caiam antes do tempo. Mas afirmou que já estavam providenciando pesticidas orgânicos para debelar o parasita e que em breve as parreiras estariam fortes e viçosas novamente!
Iara não pôde deixar de comparar Constance com aquelas videiras empesteadas! Até mesmo a cor de suas folhas lembravam os olhos dela! Era como a vinha capaz de produzir um fruto doce e saboroso que gerava uma bebida de notas almiscaradas e de “bouquet” único! Mas as suas perdas, assim como aquela praga, haviam atrofiado suas folhas e seus frutos, tirado o brilho de seus olhos, não permitindo que ela usufruísse da vida como quando se saboreia um bom vinho entorpecedor! Ela de alguma forma tinha desistido de tentar ser feliz! Parecia estar decidida a apenas sobreviver naquelas instâncias! Mas aí surge a esperança de dias melhores quando viu que sua linhagem poderia sobreviver a ela. A barriga que Iara carregava trouxe alento e uma nesga de energia que já pensava esgotada por suas dores. Devolveu, mesmo que por um breve tempo, a luz àqueles olhos de mar turbulento! Devolveu a vontade de levantar da cama e ver o dia, de sair com seu alazão pelas vinhas e campos de girassóis, de acompanhar a produção de seus vinhos, de respirar!
Iara e a filha que esperava eram o pesticida orgânico que poderia fazer reviver aquela vinha especial!
Segurando Constance pela mão, caminhou de volta para a casa grande, comentando com ela a comparação que acabara de fazer em pensamento. Quando se aproximaram da entrada da casa, sem que esperasse, Constance largou a mão de Iara e pegou um dos girassóis da alameda em torno da varanda. Voltou a pegar na mão de Iara e entrou na casa carregando a flor consigo. Assim que passou pela cadeira que Iara costumava sentar, depositou com cuidado a bela flor amarela e em seguida sentou-se em seu canto preferido do sofá e voltou a fixar o nada!
Iara estava emocionada! Tinha acompanhado toda a cena sem emitir som algum, apenas emoções turbulentas atacando seu íntimo e a confirmação de que de alguma forma Constance gostava de estar com ela ali por perto! Aquele Girassol que ela lhe presenteava representava todas as palavras que Constance não conseguia expressar e para Iara aquela era a melhor demonstração de carinho que poderia receber!
Emma chegou na sala e viu Iara com os olhos marejados, perguntou preocupada...
- Aconteceu alguma coisa?
Iara apontou a flor sobre a cadeira e disse com a voz embargada...
- Ela me deu aquele Girassol, Emma! Não diretamente na minha mão, mas a colocou na cadeira que sabe ser meu lugar preferido! Ela gosta de estar comigo!
Emocionada, Emma falou...
- Claro que gosta, minha querida! E como poderia não gostar?! Você tem se dedicado totalmente à Constance e posso te garantir que há muito tempo ela não é tão mimada! Das outras vezes eu era obrigada a deixá-la sozinha por muitas horas por conta dos meus afazeres nesta casa. Em uma das vezes até mesmo contratamos uma enfermeira, mas Constance não se adaptou e uma tarde teve uma convulsão durante uma troca de roupas. Suspeitamos que a enfermeira a tenha maltratado, por isso decidimos nós mesmos, eu e Gigio, cuidarmos de nossa menina! Mas agora temos você, esse anjo que veio trazer a vida de volta pra essa casa!
Iara não tirava os olhos da flor e falou como em pensamento...
- Mas se ela ficou assim foi por minha culpa também...
Emma a abraçou e falou com toda certeza que seu coração dava...
- Não pense assim! Constance já teve diversas outras crises como essa, e nós nem sabíamos da sua existência. Isso tudo poderia ter acontecido mesmo que você decidisse ficar, era só questão de tempo! O problema dela não é apenas emocional, mas físico também! Nossa esperança é que com o nascimento da irmã ela saia dessa melancolia sem fim em que vive e decida lutar pela vida, queira se tratar da forma devida e supere seus traumas emocionais.
Emma pegou o Girassol e o entregou a Iara dizendo...
- Essa foi a forma que ela encontrou de te agradecer e dizer que está feliz com você aqui! Vamos colocar essa linda flor na água?
Iara respondeu baixo...
- Eu a quero no meu quarto!
O Girassol durou por quase duas semanas num jarro d’água dentro do quarto de Iara. Ela o colocou em um canto de frente para sua cama e aonde o sol da manhã vinha beijar suas pétalas de cores vibrantes! Todos os dias quando acordava a primeira visão que tinha era da bela flor a lhe dar bom dia. Sentia-se bem, era como se a própria Constance a cumprimentasse todas as manhãs!
Mas como tudo que é vivo, um dia a beleza murchou e a linda flor feneceu!
Iara descia as escadas com dificuldades pelo peso da barriga enorme já no oitavo mês de gestação completos, e a flor morta para ser jogada fora, quando ouve vozes conhecidas na sala. Reconheceu no meio do burburinho o tom altivo de Francesca! Não conseguiu deixar de pensar...
“Ai não, era só o que faltava! Não tenho energia pra aturar desaforo dessa aí!”
Aproximou-se do grupo formado por Emma, Pietro e Francesca. A senhora pegou a flor murcha de suas mãos e disse num tom animado...
- Vejam só como a barriga dela está enorme! Essa menina vai ser comprida como a mãe!
Francesca aproximou-se com ar desconfiado e cumprimentou a mulher que chegava...
- Como vai Iara?
Um tanto esquiva ela respondeu...
- Um pouco cansada agora no final da gestação, mas estou bem!
Pietro a cumprimentou com simpatia e perguntou...
- E ela como está?
Iara respondeu com pesar...
- Na medida do possível está bem! Eu e sua mãe fazemos o possível para que ela se sinta melhor. Às vezes até tenho a impressão que ela responde a estímulos, mas no momento seguinte a catatonia está lá outra vez, é o dia inteiro olhando para o vazio!
- Estamos muito preocupados com Constance, essas crises deixam ela muito debilitada tanto física quanto emocionalmente! Ela precisa seguir a risca o tratamento, mas acaba sendo tão negligente!
Francesca falava com real preocupação.
- Não sei exatamente a que tipo de tratamento vocês se referem, mas eu passo a maior parte dos meus dias ao lado dela, converso com ela, tento dar o máximo de atenção que posso. Não sei mais o que fazer!
Francesca percebeu o tom sinceramente desolado de Iara e desarmou-se...
- Constance precisa tomar medicamentos fortes, fazer psicoterapia, fisioterapia para a perna, mas se encerra nesta casa e parece não ter estímulo para se cuidar e seguir! Ela não pode se entregar dessa forma!
Iara percebeu que Francesca era sincera na sua preocupação com a amiga e parecia gostar dela como uma irmã...
- Bem, enquanto ela estiver neste estado não podemos fazer nada a não ser estar ao lado dela, mas quando ela voltar ao mundo, eu me comprometo a tentar fazê-la seguir à risca o tratamento. Eu também acho um absurdo ela se enterrar viva junto com as pessoas que ela perdeu!
Francesca ponderou...
- Sim, mas um conselho, não seja muito radical com ela, Constance é um amor de pessoa, mas não admite ser pressionada! É como uma bela Rosa: perfumada, suave, delicada, mas seu caule contém espinhos que podem ferir! Ela só se deixa conduzir quando ama e confia, senão ela irá escapulir que nem peixe ensaboado por entre seus dedos!
Iara estava surpresa...
- Não consigo enxergar uma Constance desse jeito! Ela parece nunca se exaltar!
Francesca deu um leve sorriso...
- Não sei se posso chamar de se exaltar, mas te garanto que ela sabe ser firme e opiniosa quando necessário! Não digo que ela vá destratar ninguém, mas com certeza irá fazer do jeito dela se não forem convincentes! No final ela acaba fazendo somente o que quer! A única que conseguia arrancar de Constance qualquer coisa, mesmo aquilo que ela não estava disposta a fazer, era Camille!
Iara sentiu um desconforto com aquele comentário, que não passou despercebido pela mulher a sua frente. Perguntou querendo saciar aquela incômoda curiosidade sobre a mulher de Constance...
- Como assim?! Ela mandava em Constance?!
Francesca sorriu e balançou a cabeça em negativa...
- Não, de jeito nenhum! Camille era como uma gêmea de Constance! Ela tinha o mesmo jeito doce, amigo, generoso, era não só linda por fora mas também admirável como ser humano! Eram perfeitas uma pra outra! Por isso disse que somente Camille conseguia convencer Constance a fazer qualquer coisa, porque ela sabia como persuadi-la com seu jeito meigo e carinhoso! Quantas vezes via Constance fazendo muxoxo pra não ir a algum lugar que não queria, mas acabava cedendo diante do olhar e do sorriso encantadores de sua mulher! Camille era adorável e não havia quem não a admirasse e quisesse agradar, exatamente como Constance! Almas gêmeas, entende?! Amor como o delas só acontece uma vez na vida! Era invejável...único!
Aquelas palavras atingiram Iara de uma forma que não sabia definir! Sentia um mal estar súbito, um enjôo inoportuno que a fez sentar com o semblante carregado! Sem perceber encolheu os ombros e os olhos ficaram presos nas mãos crispadas! Saber que Constance nunca mais amaria alguém como amou Camille abria um vácuo em seu peito como um buraco negro sugando suas energias!
Emma e Pietro já haviam subido para ficar com Constance e Francesca estava sozinha com Iara na sala. Como mulher experiente que era, percebeu que havia de alguma forma abalado as emoções de sua interlocutora, decidiu instigar ainda mais para ver se conseguia saber o que de fato aquela mulher poderia estar sentindo...
- O que houve? Está bem? Falei algo que a incomodou? Você ficou pálida de repente, a cor fugiu dos seus lábios!
Desconcertada e notando que deixara transparecer emoções que não queria revelar, Iara balançou negativamente a cabeça dizendo firme...
- Não é nada, estou bem! Deve ter sido uma queda de pressão, comum no meu estado!
- Te incomoda saber sobre Camille?
Francesca perguntou direta e ferina. A resposta de Iara foi dada de forma categórica, olhando fixamente a mulher...
- Claro que não! Porque incomodaria? Sequer a conhecia! Sinto somente por Constance não seguir com sua vida e ter decidido morrer junto com ela! Claro que nos choca a todos uma vida jovem e tão boa ter se perdido estupidamente, mas não acho que quem sobrevive tenha que se punir eternamente pelo simples fato de estar vivo! Essa culpa que Constance carrega é que não a deixa prosseguir, estanca a vida dela nessa casa e, pior, estanca a vida dela em seu próprio corpo e mente!
Francesca estava surpresa! Não apenas pela inteligência que Iara demonstrava com sua observação, mas também porque não esperava isso de uma mulher que imaginava ser interesseira e aproveitadora! Ela parecia estar sinceramente preocupada com o bem estar de Constance e conseguiu colocar em palavras o que todos os amigos pensavam sobre a apatia dela e suas reações após o acidente. Decidiu saber mais...
- Olha, vou ser honesta com você, quando a vi pela primeira vez eu tinha certeza que você era uma oportunista que se casou com Lorenzo por dinheiro e havia atraído a atenção e os cuidados de Constance apenas para tirar mais proveito ainda dessa história toda...
Respirou profundamente para prosseguir...
- Mas antes de você descer, tive uma longa conversa com Emma e ela me contou sobre como tem dedicado seus dias exclusivamente para cuidar de Constance, e agora eu ouço de você a confirmação de que de fato se preocupa com ela! Confesso que não confio plenamente em você, mas com certeza alguma coisa mudou desde que chegou neste lugar! O que foi? O que na verdade pretende dessa convivência com minha amiga?
Iara estava confusa, incomodada, sentia coisas que também não sabia distinguir no meio de tantas emoções diferentes! Quando falou a voz era pausada e titubeante, escolhia as palavras...
- Difícil essa sua pergunta! Eu realmente casei com Lorenzo pelo dinheiro e não tenho problema algum em dizer isso! Quando cheguei nesta casa e encontrei Constance minha surpresa foi enorme! Eu esperava uma mulher desequilibrada, agressiva, completamente insana e o que encontro?! Uma Flor! Sim, ela é uma flor delicada, suave, quase pura! Constance é a melhor pessoa que já conheci em toda minha vida! Tem que ver como ela trata essa gente que trabalha pra ela, como é generosa! Ela se preocupa com cada um deles, com seus problemas, com suas vidas! Ela ajuda até mesmo quem nunca viu! Eu tive a oportunidade de presenciar momentos como esses antes dela ficar catatônica! Passamos uma semana juntas por essas terras e eu acompanhava Constance, vendo o modo como ela lidava com os empregados, os colonos, o povo da Vila...
Desviou o olhar de Francesca e mirou o chão para continuar sua explanação...
- Eu sempre fui muito ligada às coisas materiais! Fui criada num orfanato e a única coisa que sentia me pertencer de fato eram os objetos! Nunca tive amor e afeto de verdade e quando sai de lá meu maior trunfo era a atração sexual que eu exercia nos homens! Então meu objetivo passou a ser usar das armas que eu possuía para conseguir aquilo que eu acreditava ser a essência da felicidade...o dinheiro!
Deu um sorriso irônico pra si mesma...
- Então o velho destino me traz para uma Vinícola nos confins da Toscana para deparar com a pessoa mais especial que já conheci até hoje, e que vira todas as minhas convicções de pernas para o ar! Alguém que faz tudo o que eu acreditava ser fundamental para a felicidade humana parecer ridículo, infantil!
E levantando-se com um suspiro profundo, finaliza...
- Então respondendo a sua pergunta, EU NÃO SEI! Não sei o que pretendo dessa convivência com Constance! Ela desconstruiu dentro de mim tudo o que eu julgava importante e, aos poucos, mesmo nessa catatonia desesperadora, faz nascer sentimentos novos, mais puros, que me confundem, que me afligem, mas que me fazem muito bem! Ela tem esse poder, de mesmo sem dizer uma palavra sequer, trazer paz ao meu coração! Então eu acho que no fundo eu apenas quero continuar me sentindo bem! Em paz!
Francesca estava com o semblante sério! Ouvia atentamente cada uma daquelas palavras que a faziam pensar que significado estava implícito nelas! Sem se dar conta, aquela mulher praticamente confessava estar ligada emocionalmente a Constance de uma maneira muito intensa! Só não conseguia definir em que sentido: amor fraternal ou amor paixão?!
Decidiu que não havia ali espaço para dúvidas, decidiu ser direta...
- Você se apaixonou por Constance?
Iara ficou estática, como se tivesse sido pega em flagrante delito! Não podia confessar algo que ainda não entendia, que não sabia o que era! Que nome dar para o que Constance a fazia sentir?! Aquela imensa ternura, a vontade de estar ao lado dela permanentemente, o afeto que ela havia lhe dado e que ainda dava mesmo sem conseguir falar, uma emoção que enchia seu peito e parecia derramar aos borbotões pelos olhos, pelos gestos, pelo sorriso, pelo tom carinhoso de sua voz!
Sentiu uma estranha vergonha ao ser confrontada tão contundentemente com emoções que desconhecia!
Então foi arrancada de seus pensamentos pela insistente constatação de Francesca...
- Você se apaixonou por ela! Só espero que saiba o que fazer com esse sentimento e não traga mais dor para minha amiga!
Iara irritou-se com o tom arrogante de Francesca e deu por encerrada aquela conversa, dizendo de arranque...
- Não vou ficar discutindo meus sentimentos com você que mal conheço! Pode ser amiga de Constance, mas não é minha! Portanto, nossa conversa acaba aqui! Acho melhor subirmos!
Iara estava tão nervosa com a conversa que tivera com Francesca que decidiu ir para o seu quarto e não acompanhar a visita dos amigos à Constance. As emoções estavam à flor da pele e ninguém podia imaginar o quanto era difícil para ela distinguir e admitir a existência de um sentimento diferente por Constance!
Sentia falta de Jordi! Ele ainda levaria algumas semanas até voltar à Toscana, mas Iara sentiu que precisava dele perto mais que nunca!
Nos dias que se seguiram, Doutor Giane decidiu aumentar a dose dos medicamentos de Constance para ver se ela responderia mais rápido ao tratamento! Tinha esperanças que ela saísse da catatonia mais rápido que das outras vezes, pois a cada crise o período de ausência diminuía.
Uma tarde Iara sentia-se indisposta, o peso da barriga e as atividades da manhã a deixaram sem ânimo para sair do quarto. Pediu que Emma desse o lanche da tarde para Constance enquanto ela descansava.
De repente batem na porta de seu quarto.
- Pode entrar!
Emma surgia desolada com Constance pela mão e na outra uma bandeja com o lanche dela...
- Ela não quer comer! Travou os dentes e não abre a boca de jeito nenhum! Não sei mais o que fazer!
Era a primeira vez desde que estava catatônica que Constance não era alimentada por Iara. Como sempre os olhos estavam parados olhando para o vazio, mas Iara notou que os dedos das mãos estavam fechados, os punhos rígidos e a boca cerrada. Era como se ela estivesse fazendo birra!
Levantou da cama, pegou o suco que estava na bandeja e falou carinhosamente o estendendo pra ela...
- Conca, porque não quer lanchar? Está sem fome?
Na mesma hora Constance ergueu a mão e pegou o suco que Iara lhe estendia, bebeu quase todo o conteúdo e ficou esperando, olhando para o nada. Iara então pegou a fatia de bolo que estava na bandeja e ergueu para ela. Constance pegou o bolo e acabou de fazer seu lanche!
Emma olhou a cena e sorrindo comentou...
- Ela é uma malandra! Estava querendo que você desse o lanche para ela como faz todos os dias! Conca, você anda muito mal acostumada viu?!
Em seguida pegou Constance pela mão e já se preparava para sair com ela do quarto quando a sente travar!
- O que foi?! Não quer descer comigo?!
Constance parecia uma estátua de pedra! Não arredava o pé de onde estava e nem mesmo uma retro escavadeira a tiraria dali. Então, para surpresa de Iara e de Emma, ela se moveu até a cama e deitou-se de barriga para cima olhando estaticamente para o teto.
- Olha só, ela quer é ficar aqui com você!
Iara concordou surpresa com Emma! Aquela demonstração de afeto por parte de Constance fazia seu coração dar saltos de uma inexplicável felicidade dentro do peito!
Falou para Emma tentando disfarçar a alegria que sentia...
- Deixe ela ficar aqui comigo! Vamos descansar juntas!
Quando a Senhora deixou o quarto, Iara deu a volta pela cama e deitou do outro lado, virou-ser para onde Constance estava e uma vontade insana de tocá-la começou a dominar sua razão! Estendeu a mão devagar, como se tivesse medo de assustá-la e tocou seus cabelos com ternura. Não tirava os olhos de Constance e queria ver se ela esboçava alguma reação, qualquer que fosse! Desceu os dedos pela face cálida, acompanhou as linhas do rosto e parou no queixo onde havia uma leve divisão, acariciou aquela pequena divisória e prosseguiu seu caminho pelo outro lado da face. Pegou uma mecha dos cabelos cor de avelã e não resistindo mais, aproximou seu rosto e aspirou o perfume que vinha daqueles fios sedosos! Fechou os olhos e novamente deixou que aquele cheiro entorpecedor a embriagasse! Era delicioso! Sem notar começou a dizer com a voz baixa, quente, enquanto seus dedos continuavam a percorrer os traços daquela mulher...
- Você é tão linda, Constance! Adoro seus cabelos, seus olhos verdes em eterno luto, sua boca que mais parece uma cereja suculenta, sua pele tão clara e macia, seu cheiro...ah, esse seu cheiro delicioso!
Constance continuava estática, o olhar parado. Iara aproximou o rosto e com a boca quase colada ao ouvido dela, sussurrou...
- Adoro você!
Iara sentia uma emoção difícil de ser posta em palavras! O calor que emanava de Constance fazia arrepiar cada pêlo de seu corpo, sentia uma vontade louca de abraçar-se a ela e nunca mais sair dali! E foi só quando sentiu umedecer entre as pernas que percebeu que aquelas emoções não eram advindas de um amor meramente fraternal!
Respirou fundo, recuperou sua razão e encostando seu braço ao de Constance, pegou em sua mão e também ficou com a enorme barriga para cima. Decidiu aproveitar aquele momento único sem permitir que o desejo inoportuno que sentia maculasse a delicadeza de simplesmente estar tão próxima a ela...tão junto!
Adormeceu e teve o melhor sono dos últimos anos!
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]