Capítulo 5: Tempestade Anunciada
Se um raio for capaz de tocar uma estrela, o faria de maneira silenciosa, mas para ela, seria eterna e doce melodia.
Por alguns indescritíveis e incontáveis segundos, Cosima se esqueceu do que estava fazendo ali. Se esqueceu da dor que sentia. Se esqueceu de absolutamente tudo e principalmente de como respirar, no exato instante que fora salva de sua queda iminente. Sua surpresa não era somente devido ao fato de não ter esborrachado a cara no chão, graças a ela. Algo ainda mais impressionante a surpreendeu. A intensa sensação de confiança, firmeza, segurança e adrenalina que ela experimentava ali, nos braços de Delphine, era algo totalmente novo, nunca antes provado por ela.
Apesar de suas peles não se tocarem efetivamente, já que ambas estavam de luvas e sobretudos, a eletricidade da menção ao toque foi completamente inevitável e um tanto irresistível. Ela ansiava por aquilo? ‘’Era só o que faltava!’’, Cos pensou, já se repreendendo. Delphine a segurou num timing perfeito, colocando uma das mãos na base de sua coluna e a outra mais em cima, no topo de suas costas.
‘’Puta merd*!’’ A atmosfera que envolvia as duas fez um calor se espalhar pelo corpo de Cos e ela podia jurar que sentia uma energia poderosa e pulsante irradiando daquela mulher inacreditável. O contato mais incisivo e abruptamente mais íntimo provocou em Cosima uma reação visceral ao toque dela, deixando-a sem fôlego. Até a pressão daqueles dedos firmes era precisa e reconfortante, só não podia ser comparada ao cheiro dela... ‘’Meu Deus do céu’’. O perfume que exalava de Delphine era inebriante e singular, único. Não era colônia, mas sim uma fragrância natural, pura e límpida, como a ar depois de uma tempestade, invadindo os sentidos de Cosima. ‘’Delicioso’’... ‘’O que? Não seja ridícula Niehaus!!’’
A realidade surreal que envolvia sua orientadora ficava cada vez mais torturante e Cos lutava contra a vontade de inspirar profundamente aquele aroma. Aquele breve e inesperado momento evidenciou a percepção de que algo totalmente incomum estava acontecendo ali – ou poderia acontecer - e, Cos não sabia explicar exatamente o porquê, mas sentia que essa exótica sensação era compartilhada entre elas. Uma espécie de anúncio, talvez ‘’?’’.
A lógica e a razão de Cosima gritavam e insistiam em dizer que aquele turbilhão de sensações nada mais era do que o reflexo da profunda e extrema admiração que passara a nutrir ainda mais por Delphine Cormier. Pra resumir muito a lista de fatores excepcionais naquela mulher, sua beleza inverossímil, inteligência ímpar, personalidade altiva e magnética e até mesmo esse maldito ‘’ar’’ sobrenatural e misterioso, eram a combinação perfeita para fazer qualquer mero mortal perder o juízo e literalmente babar por ela.
Sua razão também esbravejava para que ela mantivesse o controle e a compostura, claro, por um milhão de móvitos! ‘’Sua professora! Você tem namorada! Que loucura é essa?? Cacete!’’' Todas aquelas sensações e desejos eram de um absurdo total e impossíveis de serem extravasados, contudo, Cosima tinha como forte traço de personalidade deixar suas emoções virem a tona e dar vazão à elas de vez em quando. Até a paixão que imprimia em tudo que almejava era sua marca registrada. Nos braços da sua orientadora, naquele momento, estabeleceu-se um poderoso conflito interno dentro dela. Restava saber qual lado venceria! Razão ou emoção?
Cos processava tudo aquilo no que imaginou ser uma eternidade de 15 segundos, encarando a boca de sua professora que com certeza era a definição da perdição eterna. Tentou perceber na tensão de Delphine algum traço de que ela também sentia aquela confusão insana.
Relutante e receosa, embora repleta de ansiedade, Cosima ergueu sutilmente os olhos, passeando pelo rosto luxurioso e sensual de Delphine, dos lábios afrodisíacos ao nariz perfeitamente esculpido... finalmente encontrando-os. Sua respiração vacilou. Aquele par de olhos intrigantes e enigmáticos que, ainda mais próximos a ela, revelavam a exuberância daquela íris. Ela partia do centro num dourado vívido, porém quase inexistente naquele momento, evoluindo para as bordas num verde extremamente escuro, quase negro, como uma densa floresta sob uma noite escura e sem lua. Como é que faz pra respirar?
Cosima não conseguia decifrar o significado da intensidade daquele olhar. Seria frieza e indiferença que vislumbrava ali? O olhar estampava uma beleza surreal, mas que estava protegida, encapsulada. A expressão de Delphine era impossível de ser lida. Suas as sobrancelhas retas sem nem sequer uma ruga denotando qualquer surpresa, a boca perfeita também não se movia. Deslumbrante e impassível.
Sim, era muita tolice achar que uma mulher como Delphine Cormier se deixaria abalar por alguém tão insignificante quanto ela. “Epa Epa! Que droga de baixa estima é essa, Srta. Niehaus?” Era só o que tava faltando mesmo, deixar a PhDeusa estremecer sua estima, nananinanão. “Essa não é você!” Gritou em pensamento.
Decidida a abandonar os braços de sua intrigante salvadora, suspirou com um tom de frustração que saiu mais alto do que deveria. – ‘’Argh, que ótimo!’’ Antes mesmo de pensar em se mover, o inesperado aconteceu. Naquela noite escura e impassível que eram os olhos de Delphine, Cos percebeu uma faísca de luz, como se uma estrela cadente riscasse aquele negro e misterioso céu. “Será que devo fazer um pedido? O que esperar dessa estrela?” Cos indagou em pensamento, dando força aos seus devaneios.
A confirmação de que, de alguma forma aquela situação toda não passava despercebida por Delphine, veio com um leve movimento em seu pescoço esguio e elegante. Delphine engoliu em seco, forçando a muralha que cercava seus olhos e tudo o que morava dentro deles se reerguer, como se tentasse impedir que alguma emoção surgisse ou algo que pudesse denuncia-la. Mas, por quê?
“Huum... a armadura reluzente não é tão impenetrável assim” Cos se atreveu a pensar, mas sua ousadia não durou nada! Delphine já se recompunha de qualquer resquício de confusão ou inquietação, piscando os olhos e enrijecendo sua postura. A conexão havia se desfeito.
- A Srta. está bem? – Delphine indagou num tom de voz demasiadamente cauteloso, já erguendo Cosima e desfazendo o principal contato entre elas, exceto por uma mão que segurava um dos braços de sua orientada.
- Na verdade não. ‘’Não mesmo’’. Chutei a porcaria do meu sofá hoje cedo, o que causou um estrago maravilhoso em meu dedo – Fez uma careta engraçada, não percebendo que sua espontaneidade fascinou e novamente ameaçou arranhar a armadura de frieza de sua Professora.
- Você precisa ir a um hospital. – O tom de Delphine era autoritário e convicto, causando um certo incomodo em Cos. – Pode ser que tenha fraturado algo – ‘’Ooooô inferno de voz maravilhosa!’’ Mesmo com aquele ar de mandona, a Dra. Cormier parecia sinceramente preocupada, aumentando ainda mais a sensação de estranheza e incomodo de Cosima.
- Éer... pretendo fazer isso mesmo, já que arrancar o pé fora não é uma opção. – Uma nova careta surgiu e junto com ela, um arzinho de divertimento. Delphine soltou um leve e discreto sorriso de canto de boca enquanto Cos suspirava resignada e quase impaciente, encarando o pesadelo da vez. – Mas primeiro, preciso descobrir como farei para descer esses degraus – Quase grunhiu, já esfregando a palma de uma das mãos na testa. Delphine a olhava com curiosidade e algo mais nos olhos.
- Isso não é problema, Srta. Niehaus. Temos um elevador de acessibilidade logo após às escadas, lateralmente à elas. – Delphine pareceu ponderar por rápidos 5 segundos e completou: - Vamos... apoie-se em mim que a levarei até lá. – De novo o tom autoritário, deixando claro que não havia opção de recusa.
Mesmo a contragosto devido a entonação impositiva de sua Professora, Cos entendeu bem o recado, até mesmo porque ela não iria sair dali com a força da mente, né? A dor idiota não lhe concedia muitas outras alternativas. Sentiu um leve tremor ao erguer o braço direito e passá-lo por sobre os ombros de Delphine que imediatamente a enlaçou pela cintura. Outra vez o aquele aroma saboroso e impressionante. Merda!
Então aquilo é que era uma descarga elétrica??? Definitivamente uma corrente de energia envolveu as duas. A loira exuberante conseguiu disfarçar seu desconforto, se é que aquilo que sentia podia ser chamado assim, enquanto a linda morena falhava com louvor, sentindo um frio na barriga que nada tinha a ver com o inverno na linda Paris! Cos estremeceu e sentiu sua respiração vacilar, ’’Que ótimo!’’ Pensou, revirando os olhos! Ela só esperava que a sua orientadora, que estava muito mais para desorientadora, não percebesse aquela reação adolescente ou, se percebesse, que associasse aquilo tudo a dor que sentia no pé. Por favorzinho!
Cosima estava praticamente sendo carregada por Delphine, tamanha era a sua destreza e agilidade. Com uma das mãos carregava sua orientada, sustentando-a pela cintura de maneira vigorosa e estável. Com a outra, levava sua bolsa e a dela. Tá, oficialmente essa mulher era ‘demais’ pro gosto de Cos! Ela tinha que ter alguma droga de defeito, certo? Certo! Novamente, aquela sensação de que Delphine exalava segurança, força e firmeza invadiu Cosima de uma maneira desconcertante. O que era a convicção daquelas mãos? Um pensamento muito inapropriado percorreu não somente a mente de Cosima, mas seu corpo também, fazendo-a arrepiar.
Com certa rapidez – para o estado de quase invalidez de Cosima causada pela quina desgramenta daquele sofá – finalmente alcançaram o elevador. Ambas hesitaram enquanto aguardavam o veículo alcançar o andar em que estavam. Delphine não estava entendendo merd* nenhuma. A inquietação que sua orientada lhe causava a incomoda profundamente. As portas se abriram e Cos não sabia ao certo se sua Professora a acompanharia. Sua dúvida se dissipou quando sentiu a leve e agradável pressão dos dedos de Delphine em sua cintura. As portas se fecharam e o espaço pequeno do elevador ficou ainda menor, revelando a proximidade das duas.
O elevador levou poucos segundos para chegar ao nível da portaria do bloco, porém pareceu uma eternidade! Percorreram o trajeto em silêncio, evitando até mesmo o contato visual. A presença de Delphine deixava o minúsculo espaço ainda mais sufocante. Cosima não precisa olhar para ela para sentir toda a intensidade que sua presença emanava. ‘’Uma verdadeira tempestade’’. A porta se abriu e um enorme carro preto estava estacionado em frente a portaria que, graças as Deusas ficava a um metro de distância da saída do elevador.
Com pesar, Cos tentou se desvencilhar de sua Professora, afinal, precisava alcançar seu celular e ligar para Amir ir pegá-la. Nem sonhando daria para ir a pé até o loft. Sem nada dizer, Delphine a puxou ainda para mais perto, - dava pra ficar mais perto que aquilo? - fazendo-a estremecer e levando-a em direção ao carro ali estacionado. O que ela estava fazendo? Já do lado de fora, o ar gelado e o cheiro da chuva que ameaçava cair invadiu o sentido de ambas.
- Sra. Cormier, eu preciso chamar um taxi para me levar para casa... hospital, quero dizer.
- Quando a Srta. chegou? – Delphine indagava com ar investigativo.
- Hoje mais cedo.
- Presumo que tenha vindo sozinha – Aquilo era mais uma afirmação do que uma especulação. Cosima concordou timidamente com um aceno de cabeça. ‘’Que raio de pergunta era aquela?’’ Delphine respirou mais fundo que o normal. – Pois bem, meu secretário irá levá-la até o hospital e aguardará até que seja atendida. Ele ficará à sua disposição para qualquer tipo de assistência. – Antes mesmo que Cos tivesse tempo de insinuar um protesto, o rapaz já a segurava pelo braço, guiando-a até a porta de trás do carro. Todo o corpo de Cosima pareceu lamentar a perda do contato com ela, fazendo com que um suspiro involuntário escapasse por seus lábios.
“POR FAVOR, que ela não tenha percebido!” Porém, Delphine captou o estado de espírito da Srta. Niehaus e... o que foi esse frio percorrendo sua espinha? Piscou, espantando a sensação.
- Srta. Niehaus, este é o Felix – Falou com um gesto de mão. - E ele estará à sua disposição. – Delphine passou o comando ao rapaz com apenas um olhar. Como ela fazia aquilo?
- Boa noite, Srta Niehaus. – A voz era firme e cativante.
- Boa noite, Felix. Pode me chamar de Cosima... Prazer.
- O rapaz encarou a mão estendida de Cosima, olhando em seguida para sua chefe como se pedisse permissão para tocá-la. Ela não disse nada. Felix a cumprimentou com um aperto de mão.
- Professora... eu posso muito bem chamar um táxi, tenho até o contato de um...
- Sem “mas”, Srta Niehaus... – Sua entonação não abria margens para que Cos contestasse. Delphine prosseguiu. - E, não pense que com isso irei tolerar atrasos em nossos prazos. – Cosima a encarou com um leve choque em sua expressão. Não teve capacidade para discernir se tratava-se de uma brincadeira ou de um alerta real, mas Delphine não parecia do que tipo que brincava. Estremeceu.
- Esse é o seu carro? – Delphine a encarou por um momento e, assumindo aquele ar seguro, soberano e elegante - e lindo e sexy e tentador - concordou com um sutil aceno de cabeça.
– E como você vai para casa? – Por um milésimo de segundo, Cosima se pegou ansiando para que fossem juntas naquele carro. Iludida!
- Não se preocupe comigo. Quero apenas que vá agora antes que volte a chover forte. – Correu os olhos pelo corpo de sua orientada e Cosima trincou o queixo. Não conseguia decifrar aquele olhar. Delphine continuou. - Além do mais, a Srta. está tremendo de frio. – Indicou com a ponto do queixo, as mãos nos bolsos do luxuoso sobretudo preto. Puta que pariu.
A questão é que a última coisa que Cosima estava pensando era na temperatura ou na meteorologia. O único ‘’clima” que a interessava no momento era o que envolvia aquela estranha e inusitada situação. Ela jamais imaginaria que as suas primeiras horas em Paris seriam repletas de tantos imprevistos, novidades, sensações,exageros... essas coisas. Estremeceu com mais um forte trovão juntamente com o jovem assistente de Delphine. Essa, por sua vez, permanecia inabalável, impassível com sua postura de realeza, como se não temesse nada, imponente, exatamente como aquele trovão.
- Tem certeza que não será incômodo? – Cosima se arrependeu da pergunta assim que havia proferido as palavras, percebendo o semblante impaciente de sua orientadora. Resignou-se e decidiu não mais protestar. Aquela era certamente uma batalha perdida, de tantas outras que serão travadas entre elas.
Ajudada pelo solícito rapaz, Cosima entrou e sentou-se no confortável banco da sensacional e chiquérrima limusine de sua professora. Não pôde deixar de observar o luxuoso interior daquele veículo. Ainda conseguiu ver Delphine falar alguma coisa com seu motorista que já estava no banco da frente. Antes que Felix arrancasse o carro, Cos pediu que ele esperasse, baixando o vidro de sua janela.
- Muitíssimo obrigada... Professora. – Sua fala foi seguida de um sincero meio sorriso. Delphine piscou rápido e respirou fundo, fazendo um leve movimento de cabeça. Que inferno! Cos subiu o vidro e o carro partiu.
Observando seu carro se afastar, uma atônita Delphine continuada parada, estática com a imagem do sorriso de sua nova orientada cravada no pensamento. E que droga tinha sido aquela enxurrada de sensações vivenciadas a alguns minutos atrás?? Pior! Porque essas sensações tiveram início no exato momento em que seus olhos se encontraram? Delphine não conseguia ou não queria assimilar aquela insanidade. ‘’Não seja ridícula, Cormier...’’
Estava tão absorta em seus pensamentos que nem percebeu o recomeço da chuva que aumentava gradativamente, nem mesmo notou quando uma figura se aproximava dela, sorrateiramente, parando a poucos centímetros e lhe estendendo um guarda-chuva já aberto, a fim de protegê-la da chuva que já caía com maior intensidade.
- Onde Felix está indo? – Disse á mulher que se aproximara sem ser percebida, causando um sobressalto em Delphine, que se virou para encará-la.
- Você é realmente impressionante, Helena. – Seu tom era baixo, cadenciado. Delphine já se recompunha do breve susto.
- Na verdade, você estava tão desconectada do mundo que qualquer pessoa poderia lhe surpreender aqui. – Afirmou – Sabe que isso pode ser extremamente perigoso, não é? – Alertou Helena, sua chefe de segurança e grande amiga. Delphine ponderou por uns instantes e depois deu de ombros, como se a prenuncia daquele perigo ou de qualquer outro pouco lhe importasse.
Helena detestava aquela postura derrotada de sua amiga. Ela não sabia exatamente o que e nem qual a real dimensão de tudo, mas sabia da existência de uma carga absurda presa aos ombros de Delphine. Chegava a pensar que ela mesma não conseguiria nem sequer sonhar e imaginar o que era ser Delphine Cormier e detestava concluir isso.
Tinha certeza que se de fato sua amiga quisesse, ela desistiria. Não havia nada que Helena pudesse fazer para impedir que Delphine abrisse mão de tudo àquilo que ela era, se assim desejasse. Se ela simplesmente decidisse deixar de existir, deixaria também de sofrer uma dor inimaginável e, mesmo que a razão dessa dor terrível fosse desconhecida por Helena, ela podia senti-la.
E dai? Ela não precisava saber o motivo de tanto tormento. Bastava sua chefe ser quem ela era, uma mulher de caráter ímpar e impecável, determinada e disposta a sacrificar-se por um objetivo muito maior do que ela mesma. Isso já era suficiente para impelir Helena a não deixa-la esmorecer. Se Delphine desistisse daquela batalha, a guerra estaria perdida e a balança penderia para um lado extremamente perigoso. ''Isso não pode acontecer, nunca!'' O Olhar de Delphine vagava ao longe. Respirou pesadamente.
- Foi uma semana difícil...- Suspirou – De um mês difícil, de um ano difícil... de uma existência difícil... – E lá estava aquele pesar novamente. Sua voz era quase um sussurro e Delphine mantinha suas pálpebras pálidas fechadas, o rosto voltado para o céu, como se a chuva pudesse lavar a amargura de sua alma. Helena a observou.
- E se você continuar nessa chuva, vai ficar ainda mais difícil, Del. Podemos ir para casa? Venha, eu te dou uma carona. – Forçou um meio sorriso, porém Delphine não sorriu de volta, suspirando de forma exausta, sem qualquer expectativa, cansada. Era uma exaustão tão profunda, tão entranhada, que por mais que tentasse, Helena jamais seria capaz de amenizar. Aquele era um fardo só dela.
Já dentro do carro e protegidas da tempestade que avançava, Helena contemplou o semblante distante de Delphine, quase enigmático. Ela tinha a cabeça recostada no banco e os olhos fechados. As linhas perfeitas e impecáveis de seu rosto estavam exauridas, derrotadas. Ela iria chorar? Helena teve muito medo disso. Nos 10 anos transcorridos ao seu lado, trabalhando para ela, jamais a vira derramar uma lágrima se quer. Pelo menos não diante dela.
- Para onde Felix a levou? – Helena questionou, trazendo-a de volta a realidade. Delphine abriu lentamente os olhos, mas não encarou a amiga.
- Para o hospital. Aparentemente ela machucou o pé. – A ênfase da palavra expressava a desconfiança que se fazia presente. Delphine não sabia ao certo o que pensar daquela mulher, que de uma hora para outra, literalmente caiu em sua vida e de uma forma tão intensa e inesperada. O que pretendia a Srta. Niehaus? O que era todas aquelas sensações que Delphine experimentou? A muito ela não sentia-se daquela forma, confusa e estranhamente fascinada.
- Hum... isso me leva à sua encomenda. – Helena se inclinou, abrindo o porta-luvas e sacando de lá um envelope pardo que parecia estar cheio, entregando-o a Delphine que já checava seu conteúdo.
– Do jeitinho que você pediu, um dossiê completo sobre a tal Srta. Cosima Niehaus. - Finalmente Delphine a encarou com certo ar de ansiedade nos olhos. Helena estranhou aquela reação.
A verdade é que desde que havia lido o projeto que supostamente era de Cosima, não conseguia tirar da cabeça que aquilo era uma armação, - tinha que ser - uma nova armadilha lançada naquele jogo torpe que ela enfrentava há mais tempo do que gostaria. A mais tempo do que pensou que aguentaria. Sua garganta secou ao lembrar de seu choque ao constatar a citação daquele livro. Com o título cravado em sua mente, Delphine perdera o seu eixo. Como aquilo era possível? O ultimo dos únicos dois exemplares a pertencia e a muitos anos não saía de sua sala secreta, sem contar que pouquíssimas pessoas sabiam de sua existência.
Passou a mão em seus cabelos num gesto lindo, mesmo sem ter consciência disso. Mas Helena tinha.
- Ele está ficando cada vez mais sádico. – Del praticamente sussurrou, após um meio sorriso debochado. Helena fez uma careta de preocupação.
- Percebe que isso pode ser uma armadilha para você, não é? As circunstâncias são muito esquisitas. – A segurança afirmou, dando a partida em seu carro. Delphine pousou os dedos em suas têmporas, ponderando por um segundo antes de concordar.
- Sim. A probabilidade é que seja exatamente isso... Aquele psicopata está usando essa moça para chegar até mim, me atingir. ''O que ainda não explica esse fascínio e inquietação em relação à ela, sua idiota!'' Delphine certificou-se de que essas palavras haviam ficado em sua mente. Helena não precisava de mais aquela preocupação. - Ela é uma espécie de isca, tem que ser... ''Perfeita, inclusive.''– Lamentou-se. O quanto mais ela suportaria?
- E diga-se de passagem... - Helena começou, um certo divertimento em sua voz. - Uma isca sen-sa-ci-o-nal,não!? Isso sim é que é isca, o resto é minhoca morta, minha amiga! – Brincou, carregando a palavra com um interesse genuíno e dando um leve empurrão no braço de sua chefe. Delphine a encarou, lançando lhe um olhar que causaria pavor mortal a qualquer desavisado, mas não nela, que gargalhou com a forma assassina com que Del a fitava! Helena conhecia sua chefe bem o bastante para se permitir a aquele momento de intimidade e descontração. Delphine Marie Cormier era única. Disso, sua chefe de segurança tinha certeza.
Apesar da birrinha e de nada dizer para repreender a amiga, Delphine ponderava aquela constatação. A ridícula da Helena tinha total razão! Não tinha como negar que a sua mais nova aluna era uma mulher interessantíssima, de uma beleza singular e impressionante. ''Realmente linda... sem contar a personalidade autêntica e sexy... Pare com isso!'' Cosima possuia características que poderiam destoar em outras pessoas, não chamando tanta atenção. Nela, entretanto, dialogavam numa harmonia quase mística, encantadora e de uma sensualidade que Delphine não se lembra de ter visto em toda a sua existência, a não ser uma única vez.
Possuía um rosto com traços e feições insuportavelmente fascinantes, de uma ingenuidade graciosa e que evidenciavam ainda mais a personalidade alegre e espontânea que pulsava dela. Os cabelos estavam presos num alternativo e super estiloso coque com dreads que a tornavam única. Os braceletes lindos e também alternativos que adornavam seus pulsos pareciam terem sido feitos pra ela. Mesmo com o pesado sobretudo, Delphine notou as harmoniosas curvas que compunham o corpo dela. O vestido vinho e a meia calça preta colada realçavam a beleza de sua postura e movimentos, formando em sua mente uma visão mais atraente e perturbadora do que Delphine poderia e deveria permitir. ''Maldição!''
A Srta. Niehaus era um convite atordoante ao proibido, mas o que capturou a atenção de Delphine de um jeito que ela não sabia explicar, foram aqueles olhos. O cintilante e luminoso olhar... sustentado pelo sorriso mais espontâneo e mágico que ela já havia visto. O calor e a exuberância que emanavam dela pareciam contrastar com toda a sua rigidez e indiferença. Quando se tocaram e se olharam daquela maneira inesperada, mesmo que com brevidade, Delphine sentiu-se intimamente incomodada, – tocada - como se... como se uma luz singular e sem igual a iluminasse no íntimo, num lugar onde a escuridão já havia se instalado.
Esgotada, Delphine pegou-se pensando em seu passado, lembrando da terrível realidade em que ela lutava a cada respiração para esquecer. Apertou os olhos com força, soltando o ar de maneira pesada.
Sim, essa mulher fora escolhida a dedo para lhe atormentar a paz e destruir seu juízo. Contudo, Delphine considerava-se tanto quanto ou mais inteligente que seu inimigo. Não era atoa que era tão respeita e temida por muitos. Iria por Cosima a prova, com toda certeza. Desmascararia aquela trama a qualquer custo.
- Eles que me aguardem... não perdem por esperar. – Cuspiu entre os dentes.
Fim do capítulo
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