Capítulo 1 Coincidência ou Destino.
“Não me cante canções do dia, pois o sol é inimigo dos amantes. Cante as sombras e a escuridão, cante as lembranças da meia-noite.”
Safo.
O inverno se anunciava com ventos mais intensos, especialmente naquela noite. A medida que caminhava em seu jardim, descontraída, sorvia cada brisa mais fria que lhe beijava. Esguia e harmoniosa, usava apenas uma blusa fina de seda e calças sociais, uma vestimenta tão simples quanto o propósito de sua caminhada. Tinha os pés descalços, trazendo nas mãos seus sapatos, pois adorava sentir a grama impecavelmente aparada sob seus pés... uma maneira de sentir-se livre. Para muitos, aquela temperatura poderia ser desconfortável, mas não para ela. Adorava a sensação da brisa gélida arrepiando seus pelos e aguçando seus sentidos.
Em determinado momento, parou com a cabeça levemente erguida, cerrando os olhos e relaxando os braços, apenas experimentando o que a noite lhe oferecia. ‘’Eu mereço esse momento, não mereço?’’ Indagou em pensamento. Em sua mente uma lembrança surgia, parecia tão antiga quanto às pedras que resguardavam seu jardim, mas Delphine a matinha ali, intacta. Ela sabia que havia procrastinado suas obrigações para aquele dia, mas se tinha algo que havia aprendido ao longo dos anos, era apreciar os pequenos prazeres, principalmente os que lhe traziam paz.
Um vento mais ousado bagunçou seus cabelos, dissipando seus devaneios. Contemplou a lua cheia que a encarava, destacando ainda mais a tez branca. Ela apreciava o luar como poucos, deixando que a luz lhe tocasse. Conferiu as horas e decidiu com pesar que precisava retornar aos seus afazeres. ‘’Melhor acabar logo com isso’’. Suspirou resignada e dirigiu-se até o imenso portão de ferro que abria caminho por uma trilha de tijolos, terminando na deslumbrante escadaria de sua casa. No topo, virou-se contemplando seu jardim e toda tranquilidade que ele inspirava. Observou a neblina que beijava a copa das árvores mais distantes, uma visão inquietante e misteriosa. ‘’Vamos lá.’’ Despediu-se de seu passeio noturno e se obrigou a entrar em casa.
Na imponência de seu interior, ativou o sofisticado sistema de segurança que lhe garantia proteção, uma vez que sua propriedade ostentava todo o prestígio e poder aquisitivo que possuía. Tratava-se de uma magnífica mansão que fora construída sobre as ruínas de um antigo castelo remanescente dos tempos medievais franceses, trazendo em sua arquitetura toda a grandiosidade de sua história. Contudo, ela não abria mão dos confortos modernos e aquela construção representava a perfeita harmonia entre o antigo e o inovador, refletindo assim um pouco do que compunha sua personalidade.
Assim que atravessou sua antessala, foi abordada por uma mulher trajando um terno preto e bastante alinhando. Era um pouco mais baixa do que ela e tinha um porte físico que inspirava segurança. Seus cabelos pretos estavam perfeitamente arrumados numa trança e acompanhavam a firmeza do seu olhar. Suas feições eram perfeitas e faziam dela uma mulher atraente. Mas não para ela.
- Como você espera que eu vá proteger você, saindo sozinha no meio da noite? – indagou impaciente.
Em resposta, um pequeno sorriso se formou em seus lábios, mas não alcançou seus olhos. Apenas lhe tocou o braço, silenciosamente agradecendo a preocupação sincera daquela mulher. Embora ela fosse sua empregada, os vários anos em que trabalharam juntas havia estabelecido uma relação íntima entre elas, uma relação de confiança e amizade. Ela conhecia Delphine como ninguém.
Helena Katz era uma ex militar israelense e que trabalhou por anos para o Mossad¹. Tinha treinamento de Elite e era expert em segurança pessoal. Era uma das poucas pessoas que conseguiam se aproximar e conhecer intimamente a dona daquela propriedade imponente.
- Falo sério, Delphine! Meu trabalho é garantir que nada lhe aconteça novamente e agindo assim, você dificulta a minha vida e a sua! – Seu sorriso se ampliou. Helena era dura na queda.
- Eu sei, minha amiga! Não se preocupe tanto. Você sabe o quanto prezo por minhas caminhadas e eu precisava espairecer um pouco. - Disse, tentando tranquilizar sua guarda-costas. - Estou de volta, sã e salva, não estou? Posso me dedicar às minhas obrigações enquanto você pode ir descansar. Aliás, por quê está acordada a essa hora? - Perguntou de forma divertida. Helena apenas franziu a testa resmungando algo em hebraico. Delphine tinha certeza ser um xingamento.
- Estarei na biblioteca. Tenho uma série de projetos para ler preciso dar um parecer à Comissão. Provavelmente não conseguirei dormir tão cedo, então vá descansar.
Despediu-se com um novo sorriso, indo em direção à cozinha, mas sem parar por lá. Mais adiante, alcançou uma espessa porta de madeira antiga que dava acesso à sua extensa adega. Seu metódico senso de organização havia separado os vinhos de acordo com as ocasiões, então dirigiu-se a sessão dos Tintos secos. Sacando de lá uma garrada de um magnifico Terre Barollo e uma taça, soube que aquele seria seu companheiro naquela noite. Tinha certeza de que seria mais uma maçante sessão de leitura e análise de projetos pouco inspiradores e repetitivos. Pensou num banho, seu corpo implorava para relaxar, mas descartou a ideia de imediato, sabendo que a tentação de cair na cama logo em seguida seria irresistível demais. Suspirou. ‘’Porcaria de orientação. ’’
Chegou à sua biblioteca, uma enorme e luxuosa sala que continha um acervo a ser invejado por qualquer grande Universidade europeia. Para seu deleite, a lareira já estava acesa e o ambiente aquecido, fazendo com que agradecesse a Helena em pensamento. Muito tempo havia se passado e ainda sim, seus olhos ainda encaravam as chamas de maneira triste, resignada. Aproximou-se do fogo para trocar a sensação das brisas gélidas pelo aconchego do calor. Encarou a mesa próxima às janelas da sala e contemplou a pilha de papeis que aguardavam por ela. Respirou fundo, ciente de que não havia escapatória. Com uma maestria impressionante, abriu o vinho servindo-se de uma boa quantidade já que não pouparia esforços para tornar à noite menos insuportável. Decidiu que seria mais interessante sentar-se próxima ao fogo, aconchegando-se em uma grande e confortável poltrona. Sem mais evitar e respirando profundamente, pegou o primeiro projeto da pilha, que tinha como título: “O papel das mulheres na Sociedade Capitalista”.
- Quanta novidade! – Proferiu, revirando os olhos. Um após o outro, lia, grifava, rasurava, descartava. – Deus...! Mais clichê, impossível! - Murmurou exasperada. Quando se deu conta, a madrugada avançava e seu companheiro já estava no fim. Ao fechar o último dos projetos que tinha, praguejou alto - Perte de temps!²
Retornou à mesa para tão somente depositar os projetos que havia lido. De todos, só havia dois com algum possível futuro, mas nada que de fato tenha lhe empolgado.
Aqueles projetos foram submetidos à sua habilidosa e valiosa leitura para que somente um fosse selecionado, preenchendo a única vaga de pesquisa sob sua orientação direta. Claro, aquela vaga era extremamente almejada por pesquisadores das áreas de Antropologia e História que estudavam o universo feminino, uma vez que Delphine Marie Cormier, Ph.D e referência mundial nessa área, quase nunca disponibilizava vagas em sua equipe, muito menos sob sua supervisão direta. A vaga somente foi aberta após inúmeros apelos e insistência da reitora da Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III, onde Delphine era professora titular, altamente respeitada por sua posição e muito cortejada por sua beleza extraordinária. Contudo, não estava empolgada e nem esperançosa para a ocasião, já que a muito não encontrava um único projeto ou pesquisa sequer que lhe intrigasse ou surpreendesse. Não que fosse tarefa fácil atrair a sua atenção, mas alguém precisava conseguir, não precisava?
- Merde! – Gritou consigo mesma, decida a não pensar nisso agora. Tomando mais um gole do vinho, notou um projeto no canto da mesa, que quase passou despercebido. Encarando a pequena pilha de papel, cogitou nem sequer tocá-la, mas foi atraída por uma única palavra no título, concentrando toda a sua atenção. Aproximou-se mais da pilha e constatando o que via, seus olhos se arregalaram! – Mais o que...? – Delphine sentiu suas pernas fraquejarem a medida em que compreendia o absurdo daquilo que lia. A perplexidade da situação foi tamanha, que ela não sentiu sua taça escorregar de seus dedos normalmente firmes. Precisou apoiar-se com força em sua mesa para que não cedesse ao peso de seu corpo. Incrédula, releu o título do projeto pela terceira vez, já que pensava estar louca ou ter bebido demais. “Poder e Sororidade³ na Ordem do Labrys”
– O que significa isso? – Murmurou. Seu coração batia num ritmo louco e descompassado! Céus! Suas pernas não aguentariam por muito tempo.
Obrigando-se a raciocinar, imediatamente colocou os demais em cima da mesa com certa violência e caindo sentada em sua cadeira, encarando aquele título. “Mas como?” Pensou aturdida. ‘’Não... só pode ser ele! Isso é.. isso não é possível!’’ Como é mesmo que se respira? O ar fugia de seus pulmões. Sua mente trabalhava a uma velocidade sobre-humana, tentando entender o que aquilo tudo significava.
Ainda trêmula, sem saber exatamente há quanto tempo encarava aquele projeto, decidida a descobrir do que se tratava aquela brincadeira ridícula, dedicou toda a sua atenção á leitura. Sua ansiedade e curiosidade aumentavam a cada parágrafo lido, ora pelo teor de seu conteúdo, ora pela maneira habilidosa com que fora redigido. Delphine se surpreendia e se encantava com a escrita fluida, que alternava o rebuscado academicismo com uma linguagem clara e mais objetiva, demonstrando certa erudição e grande conhecimento da perspectiva abordada. Não era a escrita magistral que a incomodava, mas sim o imenso domínio do assunto. O conteúdo que ali se encontrava era específico demais, impossível demais. Não sabia ser era possível, mas seu choque aumentou consideravelmente quando resolveu checar uma das fontes utilizadas para o desenvolvimento daquele projeto.
Melanie Varguer & Evelyne Chermont - Signos e Símbolos do Sagrado Feminino na Ordem do Labrys. Paris, 1658.
Completamente aturdida, sua boca se abriu involuntariamente, se fechando em seguida numa linha fina e rígida. – Aquele filho da puta! – Cuspiu entre os dentes. Lutava contra o bolo que se formava em sua garganta e uma lágrima conseguiu escapar de seus olhos.
Simplesmente não acreditava no que lia. ‘’Não é possível! Que merd* é essa?’’ Passou a mão em seu cabelo em um gesto claro de exasperação, olhando a sala ao seu redor, sem ser capaz de fixar seu olhar em nada. Fechou seus olhos com força, amaldiçoando seu passado, seu presente e o que o destino reservara pra si. ‘’Não pode ser... ele foi longe demais.’’ Já não havia mais esperança, tanto tempo se passou sem nenhum sinal, nada. Ela nem mais sabia mais se acreditava ser possível. Já havia parado de contar os dias, os meses, os anos. Seu corpo logo respondeu à tensão que seus pensamentos carregavam e um forte tremor a percorreu. Não, ela não se deixaria enganar, precisava se manter firme! Não permitiria que nenhum fio de esperança se alojasse em seu coração. A muito decidiu aceitar o seu destino. Mas como evitar aquele turbilhão de emoções? Não soube distinguir exatamente o que estava sentindo, mas deixou as lembranças tomarem forma, sentindo na boca o gosto amargo de seu passado. Ela pagara um preço alto demais, daqueles que nem a vida dos que lhe arrancaram tudo seria capaz de pagar. Balançou a cabeça rapidamente para espantar as lembranças e a pontada de uma dor dilacerante que há muito não atormentava seu coração com tanta intensidade.
Um pensamento lhe tomou a mente causando-lhe terror. Num insigth, seus olhos rapidamente alcançaram o enorme painel em alto relevo que ficava sobre a lareira. Num salto, correu em direção a uma estante no canto da biblioteca, encontrando o livro desejado e movimentando-o como se fosse retirá-lo, mas somente puxando-o para baixo numa espécie de alavanca. O livro era um comando secreto que fazia com que uma parte da estante se afastasse para o lado, revelando uma porta metálica com um painel digital. Imediatamente, Delphine digitou um código que destravou a porta, liberando sua passagem para uma escada de pedras com formato espiral.
Quando chegou ao final da escada de maneira apressada, as luzes de um imenso salão se acenderam de maneira automática à medida que ela caminhava. Deu pouca importância para tudo que continha naquela sala, uma vez que já esteve naquele local incontáveis vezes. Sua atenção estava toda voltada para um compartimento de vidro depositado no fundo da sala. Delphine se aproximou, soltando a respiração de maneira pesada ao avistar o objeto constante no compartimento. Dentro daquele recipiente, repousava um grande livro com capa de couro e seus elegantes dizeres pintados num violeta intenso: “Signos e Símbolos do Sagrado Feminino da Ordem do Labrys” de Melaine Verguer & Evelyne Chermont.
- Não é possível! Este é o exemplar único... ao menos, deveria ser! – murmurou.
De súbito, como se não acreditasse que havia deixado aquele detalhe passar, entendeu que precisa descobrir de quem era o tal projeto.
- Merde! Merde! Merde!
Havia se esquecido que os projetos chegavam para os professores sem os nomes dos autores, para evitar favorecimentos escusos e preferências descaradas. Desta forma, onde deveria conter o nome do autor do projeto, constava apenas um código de identificação, que funcionava como uma espécie de número de matrícula. Prontamente sacou o celular do bolso e enviou uma mensagem para sua secretária, preferindo não ligar uma vez que já era madrugada:
Gracie, isso é muito, muito, muito importante! Preciso que descubra pra ontem a autoria de um projeto específico. Aguardo amanhã na primeira hora. O código do projeto é o 324B21!
Glossário:
1 Polícia Secreta Israelense.
2 'Perda de tempo' em francês.
3 Sororidade é a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum.
Fim do capítulo
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Cris Lane
Em: 26/10/2018
Oi autora.
Espero que esteja tudo bem. Comecei a ler a alguns dias e tenho que dizer que é um enredo muito envolvente, estou absurdamente envolvida com a leitura, a narrativa é de altíssima qualidade, bem explicada, bem desenvolvida, impressionante!
Parabéns! Vou continuar a ler com grande vontade.
Até a próxima.
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Nicole Grenier
Em: 13/08/2018
Acho essa história lindíssima! Muito bem escrita e a temática abordada é cativante.
Parabéns autora.
Resposta do autor:
Muitíssimo obrigada pelos elogios. Espero estar sempre à altura de vocês!
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GLeonard
Em: 25/06/2018
Encantada com a qualidade da escrita! Parabens! São raros os textos que reúnem vocabilário de bom nivel e inspiração. Escreves muito bem e encadeias os pensamentos com maestria. Foi uma grata surpresa retornar ao site depois de tanto tempo e encontrar algo de tanta qualidade. Passo a ser sua leitora assídua. Enchanté.
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Pollyan
Em: 04/06/2018
Coisadamente: quando a gente quer escrever palavras como "lascividade", mas a esquecemos ou desconhecemos, ou simplesmente somos julgadas por nosso amigos por ter um linguajar que eles não entendem, daí acaba-se entrando na onda e usando essa palavra para substituir certos termo, como o supracitado. (Risos)
Sabe a história de que a palavra "sexo" fica muito séria e "transa" muito despojado? A palavra "COISA" usada em suas variadas formas e as mais que eu possa inventar dela me salvam desse tipo de situação. Uma das coisas que mais gosto na sua estória é sua escrita. Então obrigada por corrigir-me, de certa forma, com a palavra "lascividade". Abraço apertado!
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Portelinha29
Em: 13/05/2018
Moça, parabéns pelo seu talento! Sua fanfic é maravilhosa. Me apaixonei completamente pela história.
Estou aguardando ansiosamente os próximos capítulos dessa linda história!
Mais uma vez, parabéns pelo seu talento!
Abraços
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Flavia Rocha
Em: 03/12/2017
interessante a sinopse. Vou ler depois. É fanfic do que?
Resposta do autor:
Que bom! De Cophine. OTP de Orphan Black
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