@mor.com por Carla Gentil
Capítulo 43
Já havia se passado um ano desde que Laura deixou o apartamento de Sam, erguendo entre elas uma muralha forjada de palavras não ditas, necessidades protegidas em invólucros difíceis de romper.
Samantha não voltou a morar com o pai. Trabalhava a maior parte do tempo possível, aprimorava-se profissionalmente e as críticas eram muito favoráveis, com destaque ao “notável amadurecimento”. Ela guardava o sorriso irônico para as paredes escuras e vazias de seu apartamento, onde repassava seu fracasso pessoal. Enquanto as palmas diziam “sucesso”, via-se confusa, amarga e, principalmente, covarde.
Repisava com uma constância quase obsessiva seus próprios argumentos, os motivos de sua fuga. Mas eram tão inconsistentes que nem ela mesma se convencia. Não tinha se esquecido do pânico, ele não a tinha abandonado. Mas se estava doente, que procurasse um médico, tratamento, remédio. Então por quê? Depois de tantas noites vazias, afundada insone em seu sofá, se deu conta: era apenas medo.
A capa de coragem, agressividade, autossuficiência que ostentou por tantos anos, nada mais eram do que um débil escudo, um verniz encobrindo a pessoa mimada, insegura e, custou a admitir, com muito medo da vida.
Garimpeira, se entregava com tudo que era, com todos seus defeitos, com toda suas angustias, seus sonhos encantados, sua vontade feroz.
“Meus castelos de ilusão, minhas verdades de mentira. Um espelho partido, desfocado, invertendo os lados, contrastes, opostos”. A sala de espelhos. A figura não era ela, embora a refletisse, imitasse seus gestos. Deformada, esticada, encolhida, arremedando-a. não era do lado de fora que estava a verdade.
Sua opção por viver longe da sombra do pai não era sinal de independência, ao contrário, foi a forma de garantir mais atenção, preocupação por parte dele. Sob suas asas ele podia ser mais ausente. Deu-se conta que tinha tudo o que queria. Tinha a quem queria. E com uma facilidade que agora a assustava, pois percebia que nunca havia lutado por nada. Nem por ninguém. Ser agressiva com os outros, visto pelo retrovisor, era tão mais fácil do que cultivar laços de amizade... Percebeu que sempre se esforçou por passar pela vida sem comprometimento algum, sem se arriscar por coisa alguma. E quando o sentimento surgiu de uma forma inelutável, aproveitou a primeira oportunidade para abandoná-lo.
Laura era diferente. O lado contrário do espelho. Ela não precisaria se esforçar tanto, se preocupar com tantas coisas e tantas pessoas, se expor tanto. Mas fazia. E parecia bem feliz. Pelo menos era, antes de cruzar seu caminho.
-- Laura, Laura...
Repetia o nome feito um mantra, até que a palavra perdesse o sentido e tudo o que sobrasse era a essência, aquela que nunca diminuía.
Sempre que o escuro se aproximava e, a despeito do calor apontado no termômetro, sentia-se congelar, deixava seus pés seguirem livremente. Passos... Apenas alguns passos e estava na praia, seguia pela areia sem prestar atenção onde pisava. Quando o calor finalmente invadia seu corpo a ponto de se sentir derreter, sentava-se e em silêncio contemplava o mar.
-- As gaivotas ainda não apareceram hoje.
***
Ouvia Laura falar coisas assim, como que consigo mesma ou como se Sam estivesse sempre ali, ao seu lado.
Laura não precisava olhar, ou sequer ouvir, para saber que Sam estava por perto. Não eram todos os dias que vinha, mas quando se aproximava, o oceano parecia se agitar em seu sangue.
Com o tempo aprendeu a calar a esperança e seus sons desesperados que não a deixavam ver ou sentir mais nada.
Ela vinha, ficava ao seu lado como se tivesse uma necessidade vital. Às vezes se beijavam, iam para a casa dela algumas vezes. O pesado silêncio sempre gritava que não era a hora de ficarem juntas. As feridas, ou o que quer que fosse, ainda estavam lá.
Elas apenas insistiam em permanecer machucadas, por mais que doesse, sem conseguir dar o adeus definitivo.
Laura acreditava que poderia viver assim para sempre, sobreviver destas poucas migalhas. Mas não seria justo. Precisava deixar que Sam sentisse suas asas, voasse... Ainda que para bem longe de sua vida. Voltaria para a África ou onde seu grupo a enviasse.
O caminho foi o mesmo, participou da ação que a ONG havia planejado por muitos anos e para a qual tinha feito longas expedições de preparação anteriormente. Como previsto, não foi fácil, eram idealistas contra exploradores poderosos. Contudo, ganharam aquela batalha, mas não sem perdas significativas, como a de Olivier, seu mentor. De repente, o ânimo que antes parecia inesgotável, chegou ao final. A ânsia adolescente de mudar o mundo, ganhava gosto amargo com o passar dos anos. Por mais que fizessem, por mais que lutassem, sempre havia, sempre haveria alguém tirando proveito de outro alguém.
Voltou ao Brasil algumas semanas após o fim da operação. Era sempre um contraste grande sair de um lugar em conflito e chegar em casa.
-- Quantos anos que não dividia a rede com mainha, hein? Eu tenho tanta saudade...
-- Eu tenho saudade é deste cafuné...
-- Bem que eu queria acreditar nisto, mas sei bem do que é que você sente falta.
Como negar? Sentia falta de Sam. Ela sentia falta da vida que poderia estar levando, que havia sonhado, que vislumbrara no tempo que moraram juntas. Sentia uma falta dolorida de jogar no palitinho quem ia lavar a louça, de esconder o controle remoto da TV, até das vergonhas que sempre passava quando encontrava o sogro ou o cunhado, especialmente o cunhado e as péssimas lembranças. Sentia falta de Sam. Do sorriso dela, da habilidade em fazer seu coração disparar, do poder que só ela tinha de levar seu corpo a limites tão extremos, da sensação única de estar em casa que o olhar verde dentro seu a fazia sentir. Sentia falta...
O amor não tinha passado, não passaria, sabia bem disso. A vida, entretanto, seguia e ela tinha que caminhar também, embora não soubesse bem pra onde, nem mesmo por que.
-- Sabe que eu não esperava isto de você? Não de você...
-- Ah, mainha, me deixa ficar quietinha um pouco.
-- Você está quietinha há tempo demais, filha. Este tempo que está passando não volta mais. Olha o seu irmão, a mudança que ele fez na vida dele pra enfrentar aquela fúria espanhola.
-- Ela gosta dele – falou já defensiva.
-- Se não gostasse, ele faria gostar. Não é todo dia que o vento sopra a nosso favor, às vezes é preciso remar. E não é como se ela não gostasse de você...
-- Ela decidiu, mainha, queria que eu fizesse o quê? Acampasse na sala dela feito uma sem-amor-próprio?
-- Quem sabe feito uma pessoa que prefere matar o excesso de orgulho do que morrer um pouquinho toda noite, quando percebe que deixou de viver naquele dia? Sabe, filha, um dia você olha pro espelho e vê que a vida não esperou por vocês, que o tempo de agir passou e ai, se você se der conta que as coisas poderiam ser diferentes, vai ser difícil se perdoar, eu bem sei...
Piorava sua situação pensar que a mãe quase tinha razão. Ela só não acertou em cheio porque não parecia saber dos encontros. Não era por orgulho ou amor próprio. Era covardia, mesmo. Ela, que sempre acusara Sam, também era covarde no final das contas.
Sam a procurava e era sempre quando e pelo tempo que queria. Era ela, Laura, quem não ousava se recusar ou pedir tudo o que precisava, deixar claro que aquelas pequenas gotas nunca eram suficientes. Mas ela temia que secassem de vez, então calava, continha seus gestos, emoções e desejos.
Percebeu, então, estar num mesmo labirinto emocional que Sam estava quando se separaram e, mais do que a entender seu medo, compartilhou-o. Já acreditava que a incerteza do dia seguinte era mais profundamente assustadora do que não ter nada o que esperar.
Novamente decidiu ir embora. Quando se perguntava se Sam não estaria melhor sem ela estar por perto, surgiu um novo desafio, um convite de trabalho diferente do que estava acostumada. Aceitou, mas sabia não passar de covardia fantasiada de altruísmo. Uma saída honrosa, caso ela algum dia acreditasse nisto.
***
-- As gaivotas ainda não apareceram hoje.
-- O dourado do céu ainda está forte.
-- Amanhã eu vou pro Haiti.
-- Painho me disse. Ele ficou amigo de sua mãe – respondeu à interrogação muda.
Laura permaneceu olhando para ela. Precisaria de muito mais cores no céu e revoadas inteiras de gaivotas, ou o espetáculo do sol desaparecendo na imensidão do oceano, nada disto conseguiria atrair seu olhar. Ele era cativo daquele verde, não havia saída, não havia fuga.
A noite chegou sem pressa, avançou levando aos poucos os sons urbanos, a maré fazia a água se chocar com força nas rochas, um beijo selvagem, exigente. Lembranças que ficariam.
Como fantoches manipulados por indiferentes títeres, caminharam em direção oposta. Laura só passou na casa dos pais para tomar banho e pegar sua bagagem.
Não quis que ninguém a acompanhasse até o aeroporto. Altruísmo.
Não se despediu, simplesmente saiu. Covardia.
Sam foi para seu apartamento. O frio apartamento na cidade escaldante. Paredes opressoras, vazias, escuras. Os ecos incessantes, reverberações de tantos risos, de tanto tormento. Enlouqueceria se torturando daquela forma. O que afinal a aprisionava tanto? A morte da mãe, a ausência do pai, os laços que não sabia fazer, Laura não ter voltado... Não. Era seu próprio perdão que precisava. Perdão para as escolhas erradas que tinha feito, mas que agora estavam no passado, não poderiam nortear seu futuro.
Mentiras! Quantas se contou a vida toda! As respostas estavam todas dentro dela, escondidas, abafadas... Foi de suas mãos que saiu o afastamento, foi ela quem virou as costas e se achou autossuficiente, foi ela quem não acreditou. Foi ela quem se levantou primeiro naquela noite e deixou que seus passos a levassem pra tão longe de onde queria, precisava, ir.
Seus amigos estavam ali, fiéis e inabaláveis. Tinham fé nela, uma que ela mesma não sabia o fundamento. Mas que decidiu não decepcionar.
-- Vamos!
Não precisou falar duas vezes, não precisou explicar, saíram correndo ao seu lado rumo ao aeroporto.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 05/06/2017
Nossa, vc escreveu bastante dessa vez.
Colocoi tantas coisas interessantes, analisando as escolhas de ambas e o pq daa atitudes de Sam..adoreiiii!!Até li devagarzinho para aproveitar!
Esse capítulo chegou forte em mim, mas td bem...até caiu uma lágrima de cada olho..
Essas palabras não ditas viram uma bola de neve..
Será que Sam chega a tempo no aeroporto?
Adorei as coisas novas que colocou, ficou mt bom!!
Beijão
Resposta do autor:
Deveras interessante a técnica de ler devagar pra saborear (me deu vontade de chupar sorvete).
Menina, to praticamente na terceira versão dessa história! Essa revisão rendeu por baixo uns 3 capítulos a mais. Uma hora a gente acerta... Vida longa ao Lettera pra eu não precisar escrever a 4ª versão. #NãoSeiRevisarSemMudar
Zaha
Em: 05/06/2017
Nossa, vc escreveu bastante dessa vez.
Colocoi tantas coisas interessantes, analisando as escolhas de ambas e o pq daa atitudes de Sam..adoreiiii!!Até li devagarzinho para aproveitar!
Esse capítulo chegou forte em mim, mas td bem...até caiu uma lágrima de cada olho..
Essas palabras não ditas viram uma bola de neve..
Será que Sam chega a tempo no aeroporto?
Adorei as coisas novas que colocou, ficou mt bom!!
Beijão
Resposta do autor:
Deveras interessante a técnica de ler devagar pra saborear (me deu vontade de chupar sorvete).
Menina, to praticamente na terceira versão dessa história! Essa revisão rendeu por baixo uns 3 capítulos a mais. Uma hora a gente acerta... Vida longa ao Lettera pra eu não precisar escrever a 4ª versão. #NãoSeiRevisarSemMudar
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patty-321
Em: 05/06/2017
Ai ai. A mãe de Laura revive sua estória. Perdas e erros. As vezes achamos q temos tempo, que controlamos algo, kedo engano.
Resposta do autor:
A Letícia achou que a história dela tinha sido sepultada junto com a Jackie. Mas o amor não morre, as palavras não ditas perseguem feito fantasmas. Precisavam ganhar forma física pra perder a sina.
Mas isso vai passar quando amanhecer.... (to ouvindo o vídeo que vc mandou, coisa márlinda!)
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NovaAqui
Em: 05/06/2017
Triste viver na covardia e as duas estão vivendo assim
Sam com seus medos de sempre e Laura submissa às vontades de Sam
Vamos ver o que dá essa viagem
Abraços fraternos procê!
Resposta do autor:
Já dizia Vinícios
Para viver um grande amor direito
Não basta apenas ser um bom sujeito
É preciso também ter muito peito
Peito de remador
[...]
Pra não morrer de dor
É preciso um cuidado permanente
Não só com o corpo, mas também com a mente
Pois qualquer "baixo" seu a amada sente
E esfria um pouco o amor
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