@mor.com por Carla Gentil
Capítulo 27
Com o passar das semanas, os nós foram se desembaraçando e Laura já vislumbrava seu caminho livre para voltar ao país natal. Faltavam poucas semanas para o final do ano e queria muito passar o réveillon com Sam. A primeira virada de ano juntas.
A venda do apartamento para um morador de um andar inferior, que por sua vez vendeu o seu para Dana, que se casaria em breve, a tinha a deixado feliz. Sabia que a amiga queria morar perto dos pais, mas não em frente, já que imaginava as constantes invasões e intromissão da família. Laura riu, “Como se um andar fosse fazer muita diferença...”.
Por outro lado, a negociação com sua agência estava complicada. Talvez se ela fosse “apenas” fotógrafa não teria tantas dificuldades para decidir onde trabalhar e o que fazer. Mas não era só isto... O trabalho para a ONG era, na verdade, sua maior ocupação, as fotos eram consequência e um bom argumento para estar onde precisava estar.
Pierre não queria liberá-la, argumentando que todo seu treinamento foi realizado pelo Sr Olivier e somente ele poderia dispensá-la. Outro problema sério. Olivier “em campo”, desde que ela retornara da África, era um assunto sério. Apesar de ser o mais experiente membro da ONG, há muito tinha suas habilidades debilitadas. Já não via o perigo com tanta clareza, já não agia com a mesma cautela.
Desde que retornara do Brasil, Laura tentava localizá-lo, mas não era uma tarefa muito fácil. E ela imaginava que ele estaria dificultando ainda mais por conta própria. Apesar do aperto no coração, iria embora, com ou sem a “benção” de seu mentor.
Na véspera do Natal, Sam ligou para ela, toda contente por ter sido convidada por sua “sogrinha do coração” para ir à ceia deles, na pousada.
- E você vai? – Laura perguntou animada.
- Não dá! Tenho que ir na casa de painho. Nossa família se resume a nós três, se eu falto é 33% de abstenção.
- Nossa! Na festa de meus pais vem todo mundo, quando não juntam os hóspedes. Acho que não sou 1%. Em termos de quórum, você ganha disparado de mim.
- Se bem que parece que este ano o pessoal da turma vai passar comigo. O Gabriel você sabe, sozinho ele é uma escola de samba inteira. E as meninas...
- O Cássio sabe que elas são casais? Me ocorreu agora que ele vai ficar todo ouriçado com tanto gay na casa dele.
- Deve ter comprado desinfetante pra passar em tudo depois – disse rindo.
- Puxa, eu queria passar esse Natal ai! Teve um ano que passei na África. Em alguns países você já sente muito forte a pasteurização, sabe, como em Johanesburgo, por exemplo, já não faz tanta diferença estar lá ou em alguma outra capital do mundo.
- Ah, é? Já foram tomados pelo “espírito consumista do Natal”?
- Alguns sim, principalmente nas grandes cidades. Mas mesmo assim, ainda tem muito mais colorido por lá do que no resto do mundo. As pessoas ainda são muito mais do que meros consumidores. Sorte que tem alguns lugares por lá que sabem lutar por sua cultura.
- Laura, você tem noção de quantas vezes falou na África esses últimos dias? Não que eu não goste - emendou quando percebeu a reticência do outro lado da linha. - Só estou achando que você está com saudades.
- São as minhas memórias, Sam. Isto é o que eu tenho pra falar.
- E eu gosto muito disto, você sabe, não é? Sempre admirei o seu trabalho. Só... - respirou fundo antes de continuar. - Você não está arrependida pela opção que fez?
Laura pensou por alguns instantes. O que não foi passado despercebido. Tinha pensado nisso tantas vezes e a cada vez tinha mais certeza do que queria.
- Não, Sam, não me arrependo nem um pouco... O que não quer dizer que não seja uma separação dolorosa.
Sam notou que a voz de Laura tinha ficado embargada. Como não estava vendo seus olhos, não soube que era de emoção, a estranha emoção que tomava a morena de assalto em algumas ocasiões, a enchia de amor e a deixava sem saber como respirar. Ao invés disso, considerou que sua amada estava muito triste por ter que decidir entre dois amores.
- Você está com meio coração...
- Romântica essa imagem - Laura respondeu após um suspiro. – Mais até do que aquela do coraçãozinho flechado - brincou.
- Palhaça...
****
Os amigos de Sam chegaram juntos na casa do Dr Rafael. Arthur e Cássio os receberam, visto que Sam conversava com seu pai no escritório da casa.
- Eu só não quis incomodar vocês com estas coisas bobas. Sei bem que época de eleição é corrida no escritório - Sam falava com um sorriso amarelo.
- Não me incomoda em absoluto, Samantha. É bom mudar de ares de vez em quando. É cada problema cabeludo que me aparece, gente que suga a energia. Gosto de me distrair com a minha filhinha. Está tudo certo com a administração dos seus negócios?
- Não se preocupe, painho. Eu nem vejo os papéis, o escritório de contabilidade faz tudo pra mim. Quem foi que pintou esta tela da mamãe? - mudou de assunto rapidamente, se encaminhando à tela que sempre esteve ali.
- Uma artista que não pinta mais, daqui mesmo da cidade, era muito amiga da sua mãe quando ainda não tínhamos nos casado – ele suspirou, mas voltou seu olhar para a mesa e remexeu em sua agenda. - E quanto aos seus documentos, trás para mim que quero conferir se está tudo certo mesmo. Tudo que não quero é você envolvida em algum problema com a receita.
- Ai! - ela não pode conter a sensação de estar em uma enroscada, até que algo chamou sua atenção. - Olha só! Foi a mãe da Laura quem pintou esse quadro!
- A mãe da... Ah, é? Que interessante! Elas eram muito próximas antes de sua mãe se tornar crítica de arte. Quando eu estava recém formado não deixei de ir as lanchonetes que os universitários frequentavam para ver se a Jackie me notava, mas era difícil porque elas estavam sempre juntas, eram uns amigos barulhentos, me encantava aquela alegria toda – falou em tom saudosista.
- Ah é? E o senhor mesmo assim conseguiu chamar atenção?
- Na despedida dela, quando foi para Itália. Me lembro que estava lá, assistindo de longe, como sempre. Os amigos fazendo aquela algazarra de sempre, bebendo muito, falando alto, abraçavam ela mas pareciam não notar que ela estava tão triste. Me deu uma vontade incontrolável de ir lá e abraçar, consolar...
- E o senhor foi?
- Fui. Esperei ela se despedir do pessoal, que continuou a festa na mesa e quando ela saiu, eu parei na frente dela e a abracei.
- Assim, do nada? Foi o primeiro tapa de amor?
- Também esperava isso! Mas não... Ela estava mesmo muito arrasada, porque só encostou no meu peito e chorou. Muito, por muito tempo – ele fez uma pausa, respirou e fundo antes de continuar, com o olhar perdido de quem está entre dois tempos diferentes. – Eu me enchi de coragem naquele dia, a levei para casa e mesmo com seus avós me olhando com muita desconfiança, fui com eles até o aeroporto, ela sempre me agradeceu muito por isso, disse que tudo o que precisava naquele dia era alguém que a confortasse. Trocamos cartas por todo o período que ela esteve fora, até que eu consegui ir para a Europa. Bem... O resto da história você já sabe, a pedi em casamento, ela voltou comigo e logo nos casamos.
- Eu era muito criança quando... Bem, eu me lembro que vocês eram muito próximos.
- Sim. Não sei se algum dia ela foi apaixonada por mim – diante do olhar espantado da filha, tratou de explicar rapidamente. – Não! Eu nunca cobrei isso dela... Nós éramos grandes amigos e, sabe, filha... O meu amor valia por nós dois. Eu sei que ela estava vivendo muito bem, amava vocês dois e tinha aprendido a gostar de mim. Isso nos bastava... Pra falar a verdade, acho que era até mais provável que estivéssemos juntos até hoje do que estes casais que se casam por paixões imediatistas, sem se importar em construir algo sólido no dia-a-dia.
Sam voltou a contemplar o quadro, como fez durante grande parte de sua adolescência, quando se trancava no escritório e conversava com o retrato mãe.
Aquela pintura era tão diferente das fotos que tinham dela. Havia sentimento, uma energia que parecia saltar da tela. Tanto que a foto que ela guardava na carteira era da pintura. Estava chocada pela descoberta de a autora ser dona Letícia. Ela reconheceu a assinatura, a mesma que vira nas telas no quarto de Laura, mas mesmo que não visse, agora poderia reconhecer aquele traço único.
- E a Laura, tem previsão pra quando volta? – o pai perguntou para quebrar o silêncio.
- Ela está terminando de resolver a documentação do apartamento e “outras coisas chatas”, segundo ela...
- Então ela vai voltar para ficar mesmo? - Dr Rafael se sentou em sua poltrona e, para espanto de Sam, a puxou para seu colo.
- Talvez até passe o Ano Novo com a gente – falou com os olhos brilhando.
- Você gosta mesmo dela, não é?
- Eu a amo... E o senhor também parece ter gostado, eu não esperava um escândalo, mas um pouco mais de resistência.
- Ah, eu gostei sim. Foi ela quem me disse para ficar atento aos seus negócios...
- Traíra! – Sam resmungou, mas sabia onde Laura queria chegar com isto.
- E depois, ela deixa o seu irmão doido! – falou, ignorando o comentário. Depois de olhar novamente para o quadro, ele explicou. - Sua mãe me preparou para este tipo de notícia, um pouco antes de morrer.
- Mainha achava que eu era lésbica com menos de 10 anos?
- Não! - ele riu com gosto. - Nós estávamos discutindo sobre o Cássio naquele dia.
Sam estava boquiaberta. Não imaginava que seus pais tinham tido este tipo de conversa. Gostaria de continuar o assunto, era a primeira vez que falavam sobre ela, era a primeira conversa sobre eles mesmos, no entanto, o barulho que podia ouvir vindo da sala, indicava que sua turma já estava animada.
- Vamos lá receber os convidados, filha. Outro dia te conto o resto da história - ele falou a erguendo com delicadeza.
- Mas com toda certeza! Vou mesmo querer saber disso. E quero saber mais sobre a amizade de mainha com a mãe de Laura, dona Letícia não me falou nada sobre isso - disse enquanto caminhavam juntos para a sala.
Apesar de achar que a presença de Laura teria feito aquele Natal ser muito mais inesquecível, Sam não podia negar que foi o melhor em muitos anos. Em mais de uma década, com toda certeza. Cássio tinha feito uma programação muito formal, inclusive para a ceia, porém seu pai quebrou as formalidades, permitindo música para que “as crianças” dançassem, durante a refeição puxou assunto com todos, imitou Gabriel dizendo que “homem tinha sua utilidade”, quando foi convidado a cortar o peru, o que provocou muitos risos.
Cássio, que a princípio ficou meio alheio ao perceber que as amigas de sua irmã eram casais, logo se soltou, tanto quanto era possível, ao menos. Arthur ficou ao lado dele, tentando fazê-lo se enturmar. Sam olhava a cena e se lembrava do que seu pai tinha dito. Isso, aliado às dezenas de brindes que fizeram e à inconfessável alegria que estava sentindo pela conversa com o pai, provocavam acessos de riso.
Um pouco antes da meia-noite ligou para a namorada.
- Você passou o Natal comigo e agora eu vou passar com você – brincou. – Oportunidade única de comemorarmos dois natais em três horas.
- Nossa, que pessoal animado! Está boa a festa, amor?
- Nem te conto! Eu acho que meu irmão gosta do Arthur e mainha foi amiga da minha sogra e meu pai me pegou no colo e depois imitou o Gabriel e...
- Calma ai, respira... Quantos brindes vocês fizeram? - Laura perguntou sorrindo, notando que falava com uma hiena embriagada.
- Uns trocentos e dois, pelo menos - ouviu Laura rir.
- Ah, pensei que fosse trocentos e cinco – brincou. – O que é que você falou de minha mãe?
- Você nem vai acreditar! Elas eram amiguinhas! – Sam falou em tom de confidência.
- Amiguinhas? – Laura riu. – Minha mãe a sua mãe? De onde é que você tirou isso?
- De painho! Ele esperou sua mãe não estar por perto pra roubar ela, tão romântico! Depois te conto tudinho! E você, ficou sozinha mesmo, linda?
- Antes só do que mal acompanhada. Linda? Taí, pode me chamar assim que é verdade mesmo!
- Eu não falei isto, você entendeu mal! – Sam falou enrolando a língua.
- Falou sim, embora talvez amanhã você não se lembre disto.
- Ah, nem é! Só estou meio alta...
- Jura! Queria ver você alta, vai doer menos minhas costas.
- Lau - falou com voz doce, deixando passar a provocação. - Você vem passar o Ano Novo aqui mesmo? Eu convidei painho e até o Cássio pra ir lá nos seus pais.
- Falando desse jeito eu quero ir é hoje! E se a gente passar a virada juntas, vamos ficar juntas o resto do ano?
- Indubi... Indub... Ah, com certeza! – conseguiu falar, ouvindo Laura rindo do outro lado. - E eu quero te dar o primeiro beijo do ano, pra te beijar o ano inteiro.
- Se for assim, meia-noite a gente tem que dar uma fugida do povo pra...
- Laura, tarada! - um segundo de silêncio e Laura ouviu Sam falando longe do bocal. - Por que esta cara, Cássio? Você viu que ela é gostosa, sorte minha que é tarada... - voltou a falar com ela. - Foi embora o mauricinho enrustido, todo vermelho – falou gargalhando. Adorava provocar o irmão.
- Você acha que é isto mesmo? Não me pareceu não. Ele só é um menino meio perdido, solitário.
- Ah, Lau, sei lá! Você sabe que os meninos são cheios de ficar de brincadeirinhas entre eles. Podem até falar que não comem alface de jeito nenhum, mas quando não tem ninguém olhando eles comem é a plantação toda.
- Sam... Estou ouvindo fogos... Feliz Natal, amor.
- Feliz Natal, Laura. Você foi o melhor presente que a vida poderia me dar – neste momento, deu um soluço. – E não se preocupe, eu vou me lembrar disso amanhã.
Laura riu muito com aquela ligação, Sam estava muito alegre, provavelmente pelos brindes, mas com toda certeza, a mudança de comportamento do pai dela tinha ajudado muito. Sentia-se feliz por fazer parte das mudanças na vida deles. Tanto tempo onde o medo falou mais alto que o amor. Tanto tempo de carinho não feito, de solidão desnecessária. Sabia que tudo dependia da boa vontade deles em mudar e, pelo que pode notar, isto existia.
Foi dormir sentindo-se serena, mesmo estando sozinha em casa, já que naquele ano os Martinez foram para a casa do noivo de Dana, seu coração estava tão repleto de amor, que não havia espaço para solidão.
***
Alguns dias depois, Sam estava sentada sozinha na praia. Olhava para o oceano, perdendo-se em sua imensidão. Seus pensamentos vagavam entre passado e presente. Seu comportamento, seus relacionamentos, a distância com seu pai, seu sentimento de vazio. Via a onda bater na rocha e se transformar em espuma... A mesma água da onda violenta se transformava em espuma branca, suave, etérea... Era assim com ela também, continuava a mesma matéria, entretanto, tão diferente!
Quando iria acreditar se alguém dissesse que ela desejava alguém morando com ela. Dividindo seu quarto, seus problemas, seus sonhos. Riu quando pensou nisto. Certamente chamaria a pessoa de demente.
O toque do celular avisando que chegou uma mensagem, tirou Sam do seu devaneio. Pegou o seu celular e abriu um sorriso quando viu quem era o remetente. A mensagem dizia: “1,80m de surpresa para você no aeroporto amanhã, às 11h, não vou te contar o que é! Não adianta insistir”
O coração de Sam disparou e o celular quase foi retorcido, arremessado, quebrado, atirado ao ar. Ao invés disto, ela se levantou, limpou a areia e se encaminhou para aquele que seria o dia que mudaria sua vida.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Zaha
Em: 25/05/2017
Boa noite!!
Espero que se sinta melhor,Carla! Ri faz bem,ajuda bastante!Só nao da minha reaçao..rs
Nao vou escrever muito por conta da sua gripezinha.
Suspeita essa relacao das maes...
Ao menos a presença de Lau fez bem as relaçoes de Sam e principalmente com o pai..
Realmente," dia seguinte" vai mudar a vida de Sam..:( ou será q dps?Capaz tenho sorte e me faça sofrer dps..
Se cuida,beijos
Resposta do autor:
Olá, Lai! To firme e forte como prego na areia :-P
Já te falei e vou repetir: serenidade, criança! Daqui a pouco tudo desenrola. Mas antes disso vai enrolar uma barbaridade #Panico
Sem cadastro
Em: 25/05/2017
Boa noite!!
Espero que se sinta melhor,Carla! Ri faz bem,ajuda bastante!Só nao da minha reaçao..rs
Nao vou escrever muito por conta da sua gripezinha.
Suspeita essa relacao das maes...
Ao menos a presença de Lau fez bem as relaçoes de Sam e principalmente com o pai..
Realmente," dia seguinte" vai mudar a vida de Sam..:( ou será q dps?Capaz tenho sorte e me faça sofrer dps..
Se cuida,beijos
Resposta do autor:
Olá, Lai! To firme e forte como prego na areia :-P
Já te falei e vou repetir: serenidade, criança! Daqui a pouco tudo desenrola. Mas antes disso vai enrolar uma barbaridade #Panico
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Suzi
Em: 24/05/2017
Ôoooo delícia!!! Quanta doçura esse capítulo, lindo demais.
Resposta do autor:
<3
No fim das contas, o pai da Sam é bem fofinho tb. Qdo vc falou em doçura, até fui reler o capítulo, tava mesmo rolando uma vibe de muito amor #SouDessasQueEsqueceOqueEscreve
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