Acordo naturalmente às 5h00 com uma sensação de plenitude, como se eu estivesse mais leve e sentindo uma satisfação fora do comum. Fecho novamente os olhos e passo alguns minutos saboreando toda aquela paz, então estico todo o meu corpo querendo garantir que não exista mais nenhum resquício de sono. Com aquela sensação gostosa dentro de mim, me viro para o lado lentamente enquanto suspiro alto pronta para começar mais um dia. Quando estico minhas mãos para frente em direção ao outro travesseiro em minha cama tomo um susto que me faz sentir como se estivesse dentro do filme “o chamado” olhando para a Samara em pessoa.

-- Jesus amado, Apolo! - coloco as mãos em meu peito a fim de segurar o meu coração e não deixá-lo atravessar minha pele.

Ainda estando muito tensa pelo susto e me sentindo como se o sangue do meu corpo tivesse sido drenado por aquela criatura branca e peluda em minha frente, observo a cena: Apolo com o focinho praticamente grudado em meu rosto, me observa como se fosse um experiente vigilante, aguardando apenas por um único sinal para começar a ser o Apolo de sempre. Continuei o encarando por alguns segundos, olhando seriamente para os seus olhos até que não resisti, sorri e falei de forma alegre:

-- Bom dia, filho!

Pronto! Bastou essa frase para eu ver de perto a transformação de Samara em Dênis, o pimentinha. Simplesmente ele deitou bem em cima do meu rosto na maior cara de pau e depois rolou para o lado feito um saco de batatas até alcançar a outra metade do colchão e cair de barriga pra cima, abanando de forma efusiva o rabo me pedindo carinho.

-- Apolo, os outros cães cumprimentam os seus donos de manhã com singelas e carinhosas lambidas ou simplesmente abanam o rabinho, mas você não, não é verdade? Você acha que é um dublê de algum filme de ação, me sufoca e depois rola igual a um maluquinho! - me debruço sobre ele,e começo a passar uma das mãos em seu rosto, enquanto passo a outra por aquela barriguinha redondinha e lisinha dele. Aquela definitivamente era uma de suas brincadeiras prediletas.

Fico na cama com Apolo por mais algum tempinho até meu telefone tocar “I will survive”, me fazendo dar um triplo carpado devido ao susto. Coloco a mão no peito novamente e penso que há alguma conspiração do universo para me fazer ter um infarto fulminante. Querendo descobrir de onde surgiu este toque de telefone que não é o meu habitual, olho a tela do celular e vejo que é Manoela, imediatamente acho que o mundo está acabando, afinal ela acordar tão cedo assim só pode ser para me avisar que estamos tendo um ataque de zumbis e precisaremos ir para um local seguro.

-- Bommmm diaaaaaaa, amiguinha mais linda do mundo! - ela diz com uma animação totalmente estranha para quem estava acordada às 05h00.

-- Quem é você e o que você fez com minha amiga? - falo fingindo estar desesperada.

-- Sou eu mesma, pode acreditar! - ela responde sorrindo.

-- Quero provas! - prossigo com a brincadeira.

-- Eu sei exatamente a sua posição preferida na hora do sex* e você tem uma pintinha localizada…

-- Ei! Tá bom...tá bom! Acredito em você!- interrompo Manoela rapidamente sentindo meu rosto todo ficar quente de tanta vergonha.

-- Alexandra, quem te escuta assim acha que você é uma santinha na cama e que eu nunca te peguei de jeito antes de sermos BFF.

-- Primeiramente nunca disse que era uma santa, sou apenas um pouco mais reservada para falar sobre assuntos tão íntimos a esta hora da manhã. Em segundo lugar, olha lá como fala comigo, viu?! Você não me pegou, eu te peguei! Em terceiro lugar, que diabos é BFF? - pergunto já caindo na gargalhada.

-- Sempre atrasada né, Alexandra Ferraz? Não é possível que você não saiba o significado de uma coisa tão atual para os jovens! BFF significa Best Friends Forever. - ela responde debochando por eu não estar antenada às novas gírias da garotada.

-- Querida Manu, sinto lhe dizer, minha cara amiga, mas você não é jovem há tempos. Não querendo te lembrar, mas já te lembrando, você nasceu em 17/11/19…

-- Para agora se você tem amor à sua vida! Que droga, não podemos nem mais brincar de peteca, que você já vem me dando um golpe de MMA. - diz ela em tom revoltado.

--Viu como é bom, dona Manu? - pergunto morrendo de rir - Mas me diga o motivo do meu telefone ter tocado I will survive. Com certeza esta é uma obra sua e você vai querer os créditos, não é?

-- Você reparou o toque? Legal, né? Eu troquei na semana passada enquanto você estava tomando banho. - ela fala com uma voz de quem realmente acreditava que aquele toque era maravilhoso.

-- Como não reparar? Meus vizinhos do 12° andar repararam, sua doida! E não, não é legal! Se eu tivesse em uma reunião no Ministério Público e este telefone tocasse, acabaria ali toda minha fama de Promotora de Justiça séria e teria que cavar um buraco para me esconder da vergonha. - digo rindo.

-- Na hora me pareceu uma boa idéia, Alex, mas pensando bem agora…

Não aguento e solto uma gargalhada bem alta e penso que só uma doida dessas para me fazer rir tanto ainda de madrugada.

-- Manu, juro que às vezes acho que você ainda pensa que tem 15 anos! Bom...não fuja do assunto, minha amiga doidinha, o que você quer?

-- Assim no seco? Tá bom! Quero eu, você, dois filhos e um cachorro, mas como somos amigas sem privilégios sexuais, coisa que eu acho um absurdo, por hora quero apenas te avisar que enquanto você leva o Apolo para passear, farei nosso café da manhã. Espero que você tenha comprado tudo o que pedi! - falou tudo isso num fôlego só.

-- Manu, não poderei realizar nenhum dos seus desejos secretos, mas minha missão da compra dos ingredientes para o nosso café da manhã foi um sucesso! - respondo sorrindo - E admito que hoje acordei com um humor esplendoroso. Um café da manhã daqueles de hotel cinco estrelas cairia como uma luva.

-- Só queria entender quem no mundo falaria a palavra esplendoroso em pleno século XXI. - brinca comigo de forma debochada.

-- Eu falo ué! E bem que você gostava. Vivia dizendo que achava bonitinho esse meu jeito idoso de ser.

-- Mas antes nós trocávamos fluidos, querida. Agora posso enxergar todos os seus defeitos. - ela fala e engata numa sessão de risos.

-- Manu, depois dessa, vou desligar, tá? - falo rindo e balançando a cabeça, não acreditando na capacidade que ela tinha de me deixar sem graça.

-- Ok, minha linda. Deixe a porta aberta ou a chave em baixo do tapete e quando chegar conversaremos sobre este seu ótimo humor, viu? - ela deixa claro que eu seria vítima de um interrogatório.

-- Você esqueceu que tem a chave do meu apartamento?

-- Não, não esqueci! É que eu fico um pouco sem graça de usá-la assim. - respondeu de forma constrangida.

-- Não sinta vergonha. A dei pra você, pois você é uma das poucas pessoas que confio no mundo. Use sua chave, está decidido!

-- Ok, senhorita Alexandra Ferraz!

-- Bem...até mais, Manu! Vou adiantar minhas coisas aqui com o Apolo.

-- Beijos, Alex!

Depois de desligar o telefone, saio da cama, me apronto e rumo com Apolo para nossa caminhada matinal. Após 45 minutos retorno para meu apartamento e já na porta sinto um cheirinho gostoso de café. Entro de forma silenciosa e resolvo me vingar de Manu. Caminho sorrateiramente até ela, mas Apolo resolve acabar com a surpresa e late avisando sobre a nossa chegada.

-- Obrigada, Apolo! Você é um companheiro e tanto de venturas! - faço sinal de jóia com o polegar.

-- Ah! Então a senhorita queria me dar um susto é?

-- Só um pequenininho! - respondo dando um beijo em seu rosto e um abraço apertado.

-- Alex, vá tomar um banho enquanto finalizo o seu café. Depois quero todos os detalhes sobre esse seu sorriso novo, que não estava nesta linda boca há tempos! - ela diz me fazendo um carinho nos ombros.

Tomo um banho gostoso, pensando na Lavínia e em Cléo. Bate uma vontade de encontrá-las novamente. Penso que talvez eu possa ligar e propor algo para fazermos hoje, mas não tenho certeza se um convite para um outro café seria apropriado, afinal nos encontramos ontem. Saio do banheiro ainda de roupão e vou até a cozinha, seguindo o rastro invisível do cheiro de café e de bolinho de chuva.

-- Manu, esse cheiro está magnífico!

-- Que bom! Espere só até provar! Fiz bolinho de chuva pra você, panquecas, trouxe uma geléia de framboesa que fiz ontem, temos também vitamina de morango, café fresquinho, misto quente, torradas com azeite e orégano, manteiga que eu comprei na roça onde meus pais moram, queijo minas, presunto, peito de peru, salada de frutas e iogurte natural! - disse ela enquanto de forma gentil afastava a cadeira para que eu pudesse me sentar.

-- Manu, não precisava isso tudo. Agradeço muito sua gentileza, minha amiga! E queria entender como você fez tudo isso em 1 hora. - falo não acreditando ser humanamente possível preparar tantas coisas na cozinha em tão pouco tempo.

-- 1 hora para mim foi o tempo perfeito, mas agora eu vou te servir. Você está magra demais e não anda comendo nada bem. - ela disse em tom de repreensão.

Me serviu uma xícara de café preto, que pelo cheiro ela passou no coador de pano, coisa que eu adoro, preparou 2 panquecas com geléia  e me entregou um misto quente que acabara de tirar da misteira.

-- Agora trate de comer tudinho! - ela ordena.

E eu como, pois estava tudo uma delícia. Enquanto pegava um pedaço do queijo minas, ela me inquiriu:

-- Então...posso saber o que aconteceu de novidade nessa sua vida tão organizada à ponto de deixar os seus olhos tão iluminados?

-- Ah, Manu, não é nada demais!

-- Claro que é e não se esquive. O que houve? - ela pergunta enquanto segura uma de minhas mãos.

-- Eu conheci alguém ontem.

-- Não creio! Alguém está conseguindo balançar as estruturas da quase inabalável Alexandra Ferraz? - ela fala sorrindo, mas percebo um certo incômodo em sua voz ao proferir isso.

-- Ah, Manu! Também não é assim, vai!

-- Claro que é e eu sou a prova viva disso. Quando achei estar te conquistando, você me deu um pé na bunda. Então por isso estou surpresa. Nunca você havia ficado com essa luz nos olhos ao conhecer alguém. - ela fala de forma diferente e como eu não consegui entender muito bem o que ela quis dizer, resolvo deixar pra lá e voltar para a conversa.

-- Bom...não disse que ninguém me conquistou, disse apenas que conheci alguém. - falo com ar sonhador.

-- Se esse alguém te deixa assim com cara de bobona, certamente não é um alguém qualquer. Me fale mais sobre ela. - pediu Manu.

-- Ela é tão linda, tão doce, é tão bom ficar perto dela, conversar com ela, ela é tão cheirosa, tão…. ah! nem sei explicar. Ela não está saindo da minha cabeça! - falei passando a outra mão pelo meu rosto de forma preocupada.

-- Mas??? - Manu perguntou já sabendo que algo me afligia.

-- Mas ela é casada! - digo de uma só vez!

-- Nossa! Por essa eu não esperava! Mas como você descobriu, Alex?

-- Eu vi a aliança, enquanto estávamos eu, Apolo, ela e a Cleo no Seu Zé.

-- Quem é Cléo? - ela pergunta de forma confusa.

-- É a filhinha dela. Coisa mais linda e fofa do mundo. - digo dando um sorriso aberto ao lembrar da doce Cléo.

-- Péra! Ela é casada e já vem com Kit Gás? - Manu pergunta de uma só vez.

-- Manu, não chame a Cléo de Kit Gás.

-- Ué, mas se você conhece alguém com filhos é o mesmo que adquirir um carro que já venha com kit Gás. - ela responde caindo na gargalhada.

-- Não, não é a mesma coisa, sua boba! Mas sim, ela é casada.

-- Você perguntou sobre isso a ela ou deu um jeito de entrar no assunto?

-- Na verdade não. Eu não tive coragem. Preferi não saber nada sobre o casamento dela naquele momento. - falo chateada.

-- Olha, Alex! Você sabe o quanto eu gosto de você e o quanto quero ver você feliz, mas se relacionar com uma pessoa casada é furada. Saia disso tudo enquanto pode, enquanto ainda é tudo novo. Você mora no Rio de Janeiro e aqui o que não falta é mulher bonita e interessante. - me aconselha Manu.

-- Manu, sei que não posso me envolver com uma mulher casada, muito menos se teria alguma chance com ela. Talvez isso jamais pudesse acontecer, visto que ela provavelmente é hétero e que tem a vida dela estruturada, mas sabe quando tem algo que você não sabe explicar? Mesmo tendo a conhecido apenas ontem, eu pude senti quase de forma palpável uma necessidade de ficar próxima, de cuidar dela, de poder ouvir sua voz ou até mesmo apenas reparar a forma tão delicada e charmosa que ela coloca os cabelos atrás da orelha.. E a Cléo? Ela é uma garotinha linda, educada, fofa e muito inteligente. Eu meio que me gostei de estar com elas naquele lugar. Não sei onde isso vai parar, mas ainda não estou pronta pra deixar ir embora.  - disse de forma verdadeira.

-- Alex, só tome cuidado, ok? Cuidado pra não se machucar e nem se envolver naquilo que não deve, tá bom? - Manu perguntou de forma preocupada me fazendo carinho no rosto.

-- Tudo bem! Não estou aqui para estragar a vida e nem o casamento de ninguém. Nem sei se ela me deixaria chegar tão longe. Mas por hora quero apenas conhecê-la mais. É uma necessidade que não estou conseguindo controlar. Talvez fazendo isso, eu possa ver que não é nada demais e que estou apenas carente ou fantasiando algo, mas até que eu tenha certeza disso, quero apenas ficar um pouco mais perto, entende?

-- Entender eu entendo, mas só fico preocupada como isso tudo pode acabar para você. - ela diz me dando um sorriso fraco.

Ficamos ali por mais algum tempo, arrumamos as coisas, eu agradeci imensamente pelo café e pelos ouvidos antes de nos despedirmos e fui me arrumar para o trabalho, pois eram 08h00 e ainda queria passar antes no banco para sacar algum dinheiro e resolver algumas coisas na rua.

                                                             ***

Exatamente às 10h00 chego em meu trabalho e começo a resolver alguns problemas rotineiros. Pouco antes do horário do almoço surgiu um problema com um outro caso no escritório que causou um tremendo caos no meu dia que até então estava calmo. Fiquei tão absorta tentando resolver aquela situação, que me esqueci completamente de comer e de ver que já eram quase 05h00. Resolvo dar uma paradinha, vou ao banheiro e depois vou tomar um café. Enquanto sento na cadeira na área comum para os funcionários, pego meu telefone e acesso o WhatsApp. Procuro imediatamente pelo contato da Lavínia e fico ali olhando a foto dela e Cléo numa Selfie no que parecia ser um parque. Nos fundos dava para ver alguns coqueiros e um enorme arco de uma planta com muitas flores roxas, que aparentemente ser bougainville. Na foto Cléo está de vestidinho amarelo e Lavínia estava sobre ela com uma blusa de manga quase tão branquinha quanto a sua pele. Elas estavam com um sorriso tão grande, tão lindo que só de olhar dava vontade de sorrir também. Olhei a sua boca que estava sem batom e num tom natural quase vermelho e me perdi por ali por alguns instantes. Depois vi algumas sardas espalhadas pelo pescoço e pelo colo e senti minha pele arrepiar. Essas sardas ficavam tão lindas nela, como aqueles olhos amendoados num lindo tom castanho esverdeado. Davam a ela um ar único, tão dela! Não resistindo mais decido mandar uma mensagem: “Mesmo tendo visto sua foto, não custa confirmar se realmente é você, não é verdade? rs Boa tarde!”

Mando a mensagem e fico ansiosíssima aguardando pelo retorno. Passam-se  quase 10 minutos, vejo que ela está online, mas também que continua sem visualizar o texto. Fico extremamente frustrada, afinal queria conversar com ela ou quem sabe marcar um café. Fico chateada ao constatar que talvez ela esteja conversando até mesmo com o próprio marido. Para não me decepcionar ainda mais e nem criar mais expectativas que já estou criando, resolvo voltar para o escritório, mas minha cabeça ainda está lá, naquela mensagem.

Passado quase 1 hora, não resisto e pego novamente o aparelho. Quando abro as conversas, vejo que ela visualizou minha mensagem, porém nada respondeu. Sinto como se tivesse perdido uma coisa que nunca foi minha. Essa sensação ruim me consome e volto para casa com o coração apertado. Tudo bem ela não querer nem ao menos uma amizade, mas ler a mensagem e não responder nada? Com uma sensação que eu terminaria ferida nessa história, resolvo retomar velhos costumes, afinal acabei de olhar no espelho retrovisor central do meu carro e ver uma mulher aflita por não receber uma mensagem de uma pessoa casada. A Manu estava correta quando me pediu para ter cuidado, no final a probabilidade dessa história não acabar nada bem para mim é quase certa. Talvez possa estar até exagerando nessa história toda, mas decido cortar o mal pela raiz. Estaciono o carro em um bar GLS que frequentava, arrumo o meu terninho preto, passo as mãos levemente pelos meus cabelos, reforço a maquiagem e saio do carro em direção à entrada. Percebo imediatamente diversos olhares vindo em minha direção e coloco na cabeça que não posso atrapalhar a vida de uma mulher casada, afinal a quem eu estava querendo enganar? Meu interesse com ela não era de uma simples amizade, queria mais que isso. Preciso seguir o meu caminho!

Fim do capítulo