"-- Nós paramos por aqui. Você pode não acreditar, mas eu gosto muito de você, nunca tentei te enganar, apenas não falei de um assunto tão íntimo até me sentir segura e no fim eu não estava errada, não é mesmo? Veja só, deixei de ser uma mulher linda para me tornar um homem mentiroso. Desejo-te toda felicidade do mundo e agradeço o que fez por mim, apesar desse desfecho desastroso, mas não devo e nem quero gastar energia revidando atitudes preconceituosas. Só te peço um favor, não conte a Liz sobre mim. Adeus Ashley!"

Depois que cantora deixou o quarto de hotel, a última conversa que tiveram ficou ecoando nos ouvidos de Ashley e a morena não acreditava no acesso de imbecilidade diante da revelação feita minutos antes. Guiava o carro pela cidade em busca de Lara, que além de não atender ao telefone parecia ter evaporado, já havia procurado em casa, nos bares em que ela costumava tocar, no lar de acolhimento, circulou pelas praias e nada de encontrá-la. Seguiu até o quiosque de Denise, amiga de Lara que havia visto apenas uma vez e rapidamente, mas pela forma carinhosa como a outra falava deixava nítido que eram bem próximas. Para sua decepção o lugar, que já estava fechado, era sua última opção, se viu forçada a voltar para o hotel.
Parou o carro e decidiu andar um pouco pela praia, pensava no que poderia fazer para consertar sua burrada, procurou tanto por Lara, mas na verdade não fazia ideia de como iniciar essa conversa, apenas não queria ir embora sem vê-la, pedir perdão pela sua atitude preconceituosa. Sabia que havia a possibilidade de ser rechaçada pela castanha, ainda assim tentaria. Gostaria de conhecer a história da outra, queria que as duas mantivessem contato, mesmo sob a exigência de não revelar sobre seu paradeiro à irmã. Lembrou-se de mais cedo quando se deu conta de que estava começando a gostar da amiga de um jeito diferente, Lara estava andando pela praia distraída com pequenas ondas lavando os pés, a luz dourada do sol poente banhava seus cabelos, num dos raros momentos em que ela parecia mais leve, sem aquela seriedade de quem leva o mundo nas costas, sentiu que poderia ficar a observá-la uma vida inteira e nunca cansaria e se perguntou se ali não estaria a sua oportunidade de um novo recomeço.
Voltou à realidade quando cruzou com duas meninas, que não pareciam ter mais que 17 anos, em clima de romance. Lembrou-se de sua adolescência, dos conflitos para aceitar a própria sexualidade, o medo de perder o amor da mãe e irmã e o apoio da família que a fez mais forte para seguir com sua vida sem sucumbir ao preconceito e crueldade da sociedade heteronormativa. Pensou em Lara, em como teria sido sua infância, adolescência, se teve alguém do seu lado ou teve que superar sozinha todas as barreiras que a vida impôs. Lamentou sua atitude. Tantas vezes fez discursos inflamados contra intolerância e quando se deparou com o novo, reproduziu exatamente o comportamento que tanto dizia repudiar.
Desconhecia o momento e as circunstâncias que fizeram Lara e Liz se distanciarem, porém desde que descobriu sobre a transexualidade da cantora, tinha uma leve suspeita do porquê de ninguém no seu meio saber sobre a cantora, era a pessoa menos indicada para julgar Liz, mas ainda assim se assustou com a face preconceituosa da amiga. Torcia para que o problema que as afastou tenha ficado no passado, não imaginava aquela garota superprotetora e leal com as amigas virando as costas para a irmã, não sua Liz, a caçulinha que a vida lhe presenteou e que tanto apoio lhe deu no momento em que ela mais precisava. Acreditava que as duas mereciam uma chance de se reencontrar, conhecer as mulheres incríveis que haviam se tornado. Daria um jeito de descobrir o que realmente aconteceu e juntar as duas.

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Acordou às 6 da manhã, voltaria para casa naquele mesmo dia. Deixou o hotel em direção ao lar de acolhimento, passou na casa de Lara, ainda tinha a esperança de encontrá-la, não se importava com o adiantado da hora, queria apenas vê-la, não teriam muito tempo, mas queria partir sabendo que ela estava bem, que as duas ficariam bem, apesar de tudo. Como na noite anterior, ninguém respondeu e Lara ainda não atendia seu telefone, nem havia visualizado o aplicativo de mensagens desde o dia anterior.
Depois de deixar o carro com as irmãs responsáveis pelo projeto social, havia preparado a documentação dois dias antes, voltaria de avião e não pensou em um destino melhor para o transporte, se despediu de todos e partiu num taxi para pegar suas malas e ir para o aeroporto. Mandou uma mensagem para o Vadias, cortesia de Liz para o grupo de amigos, dizendo que chegaria por volta das 11, imaginava a irmã resmungando a falta de consideração em ligar, pois haviam se falado há duas noites por chamada de vídeo. Estava feliz por voltar depois de tanto tempo, mas o coração apertado por Lara e pelas circunstancias em que haviam se visto pela última vez.
Já no aeroporto tentou mais uma vez ligar não obtendo resposta, com a voz embargada decidiu se despedir da forma que podia.

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Lara acordou atordoada no quarto pelo barulho do chuveiro percebeu que Denise estava no banho. A amiga sempre tão zelosa já havia deixado uma muda de roupas para quando ela acordasse, Lara costumava dormir até mais tarde nos finais de semana e quando acontecia dormir na casa da amiga, a rotina era sempre a mesma, Denise dormia no futon deixando a cama para ela e quando acordava encontrava sempre uma muda de roupa e café da manhã pronto. Às vezes se sentia mal com todos esses cuidados, houve uma época em que percebia nos olhares e nos gestos que Denise nutria por ela bem mais que amizade, porém fingia não ver por medo de partir o coração da amiga, pois sabia que jamais sentiria por ela algo além de um amor fraterno imenso e se ela tivesse coragem de se declarar diria a verdade, ainda que doesse.
Recordou seu acesso de carência noite passada e se repreendeu pela pergunta estúpida que fez sobre se apaixonar, tinha medo que ela ainda a amasse, por isso manteve distancia do quiosque quando estava na companhia de Ashley. Dê a conhecia bem, bastava um olhar e ela saberia o que passava em sua cabeça, já havia perdido demais na vida, pode parecer egoísmo, mas Denise é sua única família e também não tem ninguém além dela. Se não fosse o destino a uni-las, estariam as duas sozinhas no mundo agora.
-- Às vezes me pergunto onde você esconde todos esses músculos. - Brincou ao ver a amiga saindo do banheiro.
-- Aparecem só quando visto minha capa, - Devolveu a brincadeira- quando tem alguma donzela indefesa babando no meu futon de estimação. - desviou de um travesseiro que voou em sua direção - Ei não desconta em mim porque seu relógio biológico te acordou às 8 da madrugada!
Oito horas, Ashley já deveria estar no aeroporto aguardando o embarque, combinaram de se despedir no aeroporto, mas devido as circunstâncias da noite passada era melhor não aparecer.
-- Vem cá. Terapia do abraço. - Denise podia imaginar o que passava pela cabeça da amiga para trazer à tona esses olhos tristes. - As imãs ligaram avisando que teu celular ficou em cima do piano - comentou de forma dramática fazendo a outra rir da sua interpretação exagerada - Disseram que tiveram que trancar no armário, pois chamou a noite toda e cada vez que tocava I Will Survive a molecada ficava em polvorosa.

-- Dá uma carona até lá? Já acordei mesmo, é só o tempo de tomar um banho rápido.

Depois de prontas e alimentadas, as duas seguiram para o lar, Denise agradeceu o imprevisto, pois junto da garotada a amiga se distrairia. Ao chegar Lara viu o carro de Ashley estacionado Lara ficou um pouco insegura para entrar, não sabia como seria ficar diante da morena, felizmente tinha Dê ao seu lado que a apoiaria caso desabasse, se encheu de coragem para enfrentar o que viesse.

Adentrarem no casarão, enquanto Dê seguiu até o refeitório para cumprimentar o pessoal, varreu todos os espaços com os olhos buscando vê-la por perto, pois o capô do carro ainda estava quente. Quando irmã Sofia, uma das mais antigas do lar e que conhecia a condição de Lara comentou baixo.

-- A senhorita Grace é uma menina de ouro, minha filha e gosta de você - Sofia tinha uma visão distinta da de muitos religiosos sobre a palavra, cresceu com uma irmã machona, numa época em que a violência impunemente explicita e o machismo ditavam as regras da comunidade em que vivia. - Acredita que ela veio aqui hoje e doou o carro para os meninos poderem levar a cerâmica para a feira de artesanato? Disse que iriam economizar com gasolina, pois a Kombi bebia muito.

-- Ela havia comentado sobre a Kombi, mas eu nunca imaginei...

-- Quando os meninos perguntaram como pagariam pelo carro ela disse que eles apenas precisavam retribuir todo o amor e dedicação que você tem por eles, cuidando de você. - Lara estava muito magoada com a fotógrafa, mas não deixava se sentir um orgulho imenso pelo gesto dela, aquele carro ajudaria muito no orçamento da entidade.

Foi com Sofia até o escritório pegar seu celular, que tinha um sem fim de notificações, várias chamadas, grande parte de Ashley. No aplicativo um bombardeio de mensagens dela e a maioria "me liga" e "onde você tá",  a última, uma mensagem de voz, às 8:45.

"Lara não sei se você vai escutar essa mensagem, talvez apague sem sequer ler e eu não te culpo por isso, mas estou aqui cruzando os dedos para que me dê a chance de me despedir... Fui uma idiota, tapada. Nem sei se pra você faz sentido minha justificativa, mas eu tenho um problema com mentiras, um dia te conto se você me der a chance de permanecer na tua vida...Só queria que você soubesse que essas duas semanas foram maravilhosas e que você é muito especial pra mim... Queria muito que você continuasse fazendo parte de minha vida e espero um sinal positivo... Se isso não acontecer saiba que vai continuar guardada no meu coração e eu vou sempre torcer para que você seja muito feliz."

Fim do capítulo