Lara saiu do hotel com uma sensação da vazio dentro de si, não sabia porque se deixou levar pelos momentos com Ashley. Há tempos decidiu não se envolver muito com as pessoas, pois o final era sempre o mesmo, acabava de coração partido, isolada por longas horas em companhia do mar e lembranças de um tempo em que foi vista a respeitada na sua essência. Agora nem isso, como iria em busca do seu companheiro de tardes e noites solitárias se agora ele representava tudo o que ela desejava e não poderia ter. Foi em busca do colo de uma velha amiga, que esteve do seu lado em vários momentos bons e ruins, o que tinha mais próximo de família. -- Oi Dê - Denise tinha um quiosque na praia, perto da universidade federal, o que tornava o local bastante frequentado por jovens estudantes nas quintas e sextas-feiras. -- Aconteceu novamente. - A mulher conhecia Lara bem, bastava um gesto ou olhar para perceber o que se passava na cabeça da amiga - Quer conversar a respeito? -- Não, só deixa eu te ajudar, preciso me manter ocupada. -- Só se você me deixar cuidar de ti hoje. - Abraçou forte a amiga, mesmo ela não querendo falar sobre o assunto acreditava que deveria ter sido um golpe duro, pois a mesma estava bastante abalada. - Vamos encher a cara de sorvete de chocolate e falar mal das mulheres, aquelas bruxas sem coração - conseguiu arrancar um mínimo sorriso da cantora. --Você não existe. Porque a gente não se apaixonou? Teria sido tão mais fácil... -- Porque você não me merece. Você muito boa e eu sou uma cafajeste, terminaria sem amiga e sem namorada. No fim da noite, foram para a casa de Denise que ficava um quarteirão antes da de Lara. A cantora tomou um banho rápido e vestiu roupas emprestadas da amiga. Comeram uma sopa leve e deitaram em um futon na varanda, sempre que estavam ali gostavam de observar o movimento da cidade e atualizar as novidades. -- Ela me beijou e quando contei que era trans quase surtou, me acusou de tentar seduzi-la com uma mentira - Abraçada com a amiga contava os acontecimentos do último momento juntas. -- Essa mulher é uma anta, sabe a vontade que deu agora? ir nesse hotel e quebrar aquela cara de sonsa. Porr*! -- Não é a primeira vez que a vida tenta me derrubar.... XXXXXXXXXX -- É um casalzinho de gêmeos, meu pai. - vou chamá-los Leon e Liz. Tenho certeza que meu homenzinho será valente como um leão e ajudará a cuidar da nossa florzinha. - o Jovem Antonio estava empolgado com a prova de sua virilidade, havia feito dois filhos de uma vez e para sua satisfação maior teria um companheiro nas pescarias e caçadas, iria torná-lo seu sucessor em tudo, inclusive na arte de seduzir as jovens incautas. Leon seria seu orgulho. Antonio bem que tentou, Leon também. A criança buscava a todo custo imitar o pai, agradá-lo, porém se identificava de verdade com a irmã Liz. Desde cedo se sentia diferente dos outros e se culpava muito por ser quem era. Vendo o jeito do filho Antonio o colocou em aulas de artes marciais, o que não deu muito certo, pois Leon chorava sempre que o derrubavam no chão. Na adolescência sofria com o preconceito na escola e o desconforto com seu próprio corpo que aumentava na medida em que observava o desenvolvimento da irmã em comparação com o seu. Usava às escondidas roupas e maquiagens de Liz, quando ninguém estava em casa,ou seja quase sempre, os pais trabalhavam e Liz com sua ânsia por liberdade desde cedo, fugia todas as tardes para bater perna com as amigas. Sabia das expectativas de seu pai e avô em relação a ele, este último antes de morrer havia lhe deixado uma boa herança na esperança de vê-lo se tornar um homem poderoso levando adiante o legado da família. Leon teve uma infância inadequada e uma adolescência calada. Não mantinha vínculo de amizade muito forte nem com a propria gêmea, apesar do amor que sentia por ela não conseguia estar à vontade nem consigo mesmo. Liz tentou algumas vezes trazê-lo para seu grupo de amizades, porém acabou desistindo diante de apatia do menino. Aos dezoito anos, Leon conheceu uma figura que mudaria sua vida. O domingo amanheceu agitado na cidade com a chegada do circo, Antonio fez questão de levar a família para dar boas vindas aos artistas e deixar claro que ali moravam pessoas de bem, portanto reivindicava dos mesmos um comportamento exemplar. Durante o espetáculo, viu fascinado, a trapezista deslizar pelos ares com toda graça, a cada pirueta seu coração quase saltava pela boca não sabia se pelo susto ou pela sensualidade que a moça exalava. Antonio percebendo o êxtase de Leon decidiu incentivar o contato, prevendo que aquela cocotinha do circo poderia finalmente tirar o cabaço de seu filho afeminado, Leon passou a frequentar o circo todas as tardes depois da escola. Antonio não esperava, muito menos o garoto, que estas visitas trariam respostas para todas suas dúvidas através de Laura, uma transexual que vivia com o atirador de facas e trabalhava como malabarista. Laura era uma mulher muito bem resolvida que reconheceu em Leon, muito do que viveu enquanto jovem e confusa no interior da Itália. Os dois passavam tardes a fio conversando no trailer da artista, Laura não havia feito a cirurgia de redesignação e se sentia tranquila em relação a isso, assim como seu companheiro, para ela a genitália era apenas um detalhe, sua feminilidade não dependia disso. Na madrugada em que o circo partiu Leon roubou todas as roupas, sapatos e maquiagens de Liz e foi embora, sentia pelos pais e pela irmã, mas não conseguia mais existir, queria viver e para isso deveria encontrar seu verdadeiro eu. Entrou na trupe através de Laura e passou a dividir o trailer com a moça trapezista. Com o tempo se assumiu transexual, tendo Laura como mentora na arte circense, aprendeu malabarismo, também algumas receitas que preparavam para vender durante os espetáculos. Nos momentos de lazer Laura cantava e tocava violão, arte que também ensinou a Leon, que decidiu adotar o nome social Lara em homenagem à mulher que a havia acolhido e por quem nutria grande afeto. Em suas andanças Brasil afora, Lara conheceu uma empresária americana que se encantou com sua beleza exótica. A mulher fez de tudo para conquistá-la, pois sabia de sua condição sexual, Lara embarcou no desconhecido por amor e foi morar nos estado unidos com a então namorada. Beth financiava suas cirurgias de feminização e tratamentos hormonais, fazia questão de tê-la sempre impecável nas reuniões sociais e em casa, dizia gostar de ver sua namorada sempre linda exibindo feminilidade e a tratava como uma princesa, mas Lara não era feliz. Desde sempre suspeitou da obsessão que a namorada tinha pelo seu pênis, mas assim como todo bobo apaixonado, se deixou iludir. As coisas começaram a desandar quando a loira passou a exibi-la para os amigos, pressioná-la por sex* nos lugares mais improváveis, um dia cansada de ser tratada como boneca sexual deixou tudo para trás e voltou para Laura. O que deveria ser um dia de felicidade se transformou no momento mais triste de sua vida, Laura havia sido assassinada pelo companheiro, num acesso de ciúmes. Sabia que a velha amiga mexia muito com o imaginário e a libido principalmente dos homens, mas nunca pensou que o ciúme de Alejandro o levaria às vias de fato. Não se sentiu sozinha no mundo, desamparada porque Denise, sua antiga colega de quarto estava lá para lhe oferecer carinho e um ombro amigo, que seria o porto seguro para onde voltava sempre que precisava acalmar o coração.As duas tinha por Laura um carinho muito grande e não conseguiriam conviver com seu assassino, ninguém se manifestou para testemunhar contra o irmão do dono. Partiram logo após sepultarem Laura numa vala comum no cemitério da cidade. Não demorou muito para conseguirem se unir a uma trupe mambembe e saírem em espetáculos mundo afora, Denise era muito talentosa e exercia um encantamento enorme nas pessoas quando estava sob os holofotes. Continuaram nessa até que a trapezista sofreu um acidente e não podendo mais trabalhar foi dispensada da companhia, Lara não viraria as costas para a amiga doente, era hora de cobrar do pai a herança que sabia ser sua por direito. Lembrava com riqueza de detalhes do dia em que pisou na casa dos pais pela primeira vez depois de quatro anos, os móveis ainda eram os mesmos, a empregada que a viu crescer ainda era a mesma, a atmosfera de família classe média-alta permanecia, mesmo assim ela não se sentia em casa. Não fosse pela saudade de Liz e o amor imenso que viu nos olhos de sua antiga babá quando a reconheceu, poderia imaginar que sua vida entre aquelas paredes não passava de um delírio. Estava preparada para a hostilidade dos pais, não seriam os primeiros e nem teriam o poder de feri-la, pois cresceu num meio preconceituoso e sempre soube o que esperar daqueles que a trouxeram para o mundo desde o dia em que fugiu de casa, mas tinha a esperança de voltar a ter contato pelo menos com Liz. Para sua decepção, na curta "reunião familiar", descobriu que havia deixado de existir para todos eles no dia em que deixou de ser Leon, nunca esqueceu da maneira inflamada como Liz a tirou definitivamente de sua vida "Meu irmão Leon morreu há muito tempo, eu não sei quem é você". Conseguiu reclamar a herança do avô, porém vivia fugindo do pai que não a deixava em paz, sempre dando um jeito de descobrir seu paradeiro e expor sua intimidade em locais públicos ou agredindo verbalmente através do telefone, estar cada vez mais parecida com Liz não ajudava, sempre era confundida por alguém e lá começava o ciclo vicioso de perseguição e agressões. Quando teve acesso ao dinheiro que lhe pertencia não pensou duas vezes. Foi embora com a amiga e financiou seu tratamento, gastaria boa parte da herança, mas Denise voltaria a andar. Com o que sobrou pagou sua cirurgia de redesignação, entrou na justiça para mudar a documentação, comprou uma casa, adquiriram o quiosque na praia e ainda guardou um pouco para eventuais emergências. A vida das duas amigas depois de tantas tormentas estava finalmente voltando à normalidade, Lara apesar de não viver mais em circos ainda trabalhava em apresentações esporadicamente, se envolveram com um grupo que apoiava um lar para menores que sofriam violência em casa, a cantora dava aulas de violão e malabarismo, a amiga ajudava com aulas de reforço. Lara depois de Beth não se envolveu seriamente com mais ninguém, tinha uma ficada aqui outra ali, tudo sem nenhum compromisso, mas a americana ainda lhe povoava os pensamentos, se perguntava de vez em quando se conseguiria resistir aos encantos da loira caso chegasse a encontrá-la novamente. Pode confirmar suas suspeitas dez meses atrás, quando deu de cara com a ex num dos barzinhos onde tocava. Acabaram num motel e foi uma experiência constrangedora e frustrante para as duas, enquanto Lara buscava a mulher apaixonada que encantou a tímida malabarista, Beth buscava o objeto sexual que a satisfazia de todas as formas, nas noites de sex* selvagem. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX Denise observava a amiga que dormia enroscada em seu tronco, pensava em como as pessoas conseguiam ser cruéis com aquele ser que só sabia propagar amor. Amou Lara secretamente durante muitos anos, viu com orgulho a evolução do menino triste para a mulher encantadora que povoava seu interior, mas sabia que a outra não a via com outros olhos que não fossem de uma irmã. Sofreu muito até sufocar esse amor e torcia de verdade para ela encontrar alguém que a merecesse e soubesse amá-la de verdade. Enquanto isso não acontecia ficaria ao seu lado incondicionalmente.

Fim do capítulo