Ao ouvir aquelas palavras o semblante de Júlia imediatamente foi tomado por uma expressão atordoada.

– Quando? – Júlia conseguiu reunir coragem formar a pergunta.

– Três meses antes de nos mudarmos para cá – Alex suspirou e disparou a falar. – Eu namorava Emma, uma garota alguns anos mais velha que eu. Uma noite fomos em uma festa na faculdade dela. Por volta de uma hora da manhã decidimos voltar para casa, Emma se lembrou de que precisava conversar com um professor sobre a apresentação de um projeto, era encerramento de semestre e os professores também estavam comemorando aquela noite. Ela foi até o departamento e eu a esperei perto do carro. Um conhecido da escola apareceu, ele estava com outros dois rapazes. Nós fazíamos quase todas as aulas juntos e ele havia me chamado para sair algumas vezes. Ele me cumprimentou e começou a falar algumas coisas estranhas. Disse que eu era linda e perguntou o que eu estava fazendo ali sozinha. Eu disse que estava acompanhada e que Emma estava voltando. Ele começou a ficar inconveniente, eu pedi a ele que saísse de lá. Ele não saiu, então eu tentei sair. Ele segurou meu braço com força e avançou sobre mim. Estava descontrolado, parecia um animal. Eu gritei por ajuda, mas o som da festa fazia com que meus gritos fossem abafados. Enquanto ele rasgava minha roupa, os amigos riam e gravavam tudo com o celular.

Júlia não queria mais ouvir, não aguentava saber que a garota que amava havia sido violentada daquela maneira. Seu coração estava quebrado.

– 222 segundos. Esse foi o tempo que ele ficou dentro de mim. Enquanto ele me rasgava por dentro eu contava os segundos. Só queria que aquilo acabasse, aqueles minutos pareciam ser eternos e eu não aguentava mais aquela dor de ser invadida. Ele ria da minha cara e me xingava. Quando finalmente me soltou, ele e os amigos saíram dizendo que eu também queria aquilo e que mulher nenhuma conseguia fazer o que ele fazia. Ele decidiu que ainda não havia me humilhado o suficiente, antes de sair beijou a minha boca. Eu ainda sou capaz de sentir aquele gosto amargo. Emma me encontrou, eu estava nua e sangrando. Eu não conseguia chorar e nada ao meu redor parecia fazer sentido. Emma me levou para o hospital e chamou a polícia. Ele e os amigos foram presos naquela mesma noite. A polícia conseguiu apagar o vídeo antes que eles divulgassem.

Júlia tinha lágrimas nos olhos e suas mãos tremiam. Não se lembrava de alguma vez ter sentido tanto ódio assim. Seu estômago embrulhava ao pensar em Alex, tão doce e tão gentil sendo maltratada por aqueles monstros.

– Depois disso minha vida perdeu todo o sentido. Eu me tranquei no quarto e esperava que o mundo acabasse, minha garganta se fechava quando eu pensava na possibilidade de sair de casa outra vez. Emma se culpava pelo que tinha acontecido, ela não aguentava me ver daquela maneira, eu não queria que ela sofresse mais e terminei com ela. Eu sentia que nunca mais conseguiria me entregar a alguém. Eu havia perdido aquela parte de mim e já não conseguia mais me lembrar de como era minha vida, tudo que eu via em minha frente eram as imagens daqueles 222 segundos. Meu relacionamento com minha mãe não era dos melhores, ao contrário do meu pai, ela nunca aceitou minha sexualidade. Ela me culpava pelo que tinha acontecido, mas a situação ficou insustentável quando eu comecei a acreditar nela. Um dia ela e Natasha tiveram uma briga horrível, o marido da minha mãe precisou interferir antes que as duas se atacassem. No mesmo dia Natasha ligou para o meu pai e contou tudo a ele. Ele nos perguntou se queríamos morar com ele. Eu não queria, não via como isso pudesse melhorar minha situação, mas Natasha me convenceu e eu decidi dar uma chance. Eu melhorei 50% só em afastar da minha mãe. Os outros 50% eu melhorei a partir daquela noite em que você me acalmou do pesadelo.

Júlia ainda estava em choque. Sabia que a garota tinha uma história, mas nunca sequer imaginou que pudesse ser aquilo.

– Eu estou com você, ninguém nunca mais vai te machucar – Júlia puxou a garota para si e a afagou. – Eu prometo.

As duas conversaram por mais algumas horas até que dormissem nos braços uma da outra. Naquela noite Alex não teve pesadelos.

No dia seguinte Natasha voltou para casa e encontrou as meninas em clima romântico na cozinha.

Júlia correu para pegar os cachorros do braço da menina.

– Eu nunca mais me ofereço para ficar com esses filhotes de diabo-da-tasmânia – Natasha entregou os cachorros aliviada. – Não sei como as pessoas conseguem conviver com essas coisas. Eles são como gremlins.

– Não seja exagerada – Júlia disse cheirando com carinho a barriga de um filhote. Alex a admirava com paixão.

– Preciso de um banho, um deles fez xixi em mim – Natasha saiu da cozinha e as meninas ainda podiam ouvi-la xingando.

– Posso ficar com um? – Júlia perguntou.

– É claro – Alex respondeu exultante. – Isso é perfeito! Vou convencer o meu pai a me deixar ficar com o outro.

– Acha que é uma boa ideia? A Natasha não vai gostar disso.

– Natasha não gosta de nada que ela não possa controlar, mas ela vai aprender a gostar deles. Como vamos chamá-los? – Alex perguntou animada.

– Eu gosto de Paçoca – Júlia respondeu analisando a postura do filhote.

– E esse aqui vai se chamar Shoyu – Alex batizou o outro cachorro e o beijou.

– Preciso ir embora – Júlia suspirou. Não queria ir, mas seus pais já haviam ligado perguntando onde a garota estava e, além disso, ela decidira que conversaria com Gustavo ainda naquele dia. Na noite passada tivera certeza de que o que sentia por Alex era amor, ela precisava tratar esse sentimento com o devido respeito.

– Não vai – Alex agarrou a garota e cheirou o pescoço da menina. – Fica comigo mais um pouco.

– Vou resolver a minha vida e ficarei com você o tempo que quiser.

– Pode ser para sempre? – Alex pediu fazendo bico.

– Pode.

– Ok, trato feito – Júlia beijou Alex nos lábios. – Agora vou levar o Paçoca para casa e conversar com o Gustavo e depois com meus pais.

– Boa sorte. Seja forte – Alex se despediu com mais um beijo.

– Eu serei.

Fim do capítulo