Capítulo 15
“Love is a many splendored thing
Love lifts us up where we belong
All you need is love”
Moulin Rouge
Eu precisava conversar com o Jaque o mais rápido possível, mas a Rafa decidiu que iria conversar com ela antes e terminar o namoro. Eu me ofereci para o que ela precisasse. Estava eufórica, apesar de envergonhada por ter traído a confiança de uma amiga. Não que fôssemos melhores amigas, mas eu devia ter sido mais leal, menos impulsiva. Mas impulsividade era meu nome. Eu não sabia seguir regras, não conseguia controlar minhas emoções e aproveitava cada segundo quando meus sentimentos eram correspondidos. Fazia o possível para ser sempre sincera, mas muitas vezes ignorava o sentimento das outras pessoas. Demorou muito tempo para compreender esse egoísmo.
A Rafa adiou aquela conversa por alguns dias. Me dizia que não conseguia falar, não sabia o que fazer e não queria magoar o Jaque. Embora aceitasse seus argumentos, estava confusa. Queria tê-la para mim o quanto antes, queria acertar a situação com o Jaque e não sabia mais como me comportar perto dela. Eu estava agoniada, com ciúmes e só depois de duas semanas ela contou o que havia acontecido entre nós. O Jaque ficou furiosa. Veio tirar satisfação comigo e eu não tinha muito o que dizer:
- Aconteceu, Jaque! Eu não pedi para acontecer. Eu me apaixonei, ela se apaixonou. Eu não sabia o que fazer. - tentei explicar.
- Sua traidora! Confiei em você, você foi na minha casa, te falei sobre ela e você me apunhalou pelas costas. - ela estava com raiva e eu não podia tirar sua razão.
- Desculpa, Jaque! - eu dizia sem ter outras palavras que pudessem mudar aquela situação.
Ela não me perdoou. E eu segui em frente. Todos ficaram sabendo o que havia acontecido, mas ninguém se manifestou. Eu continuava trabalhando no bar e as pessoas mais vinham me parabenizar por estar com a Rafa do que me julgar. Ela era realmente linda.
A nossa paixão à primeira vista logo se transformaria em tortura.
Já havia um mês que a Raquel tinha voltado para Curitiba para fazer seus exames. Tinha descoberto um tumor no estômago e precisaria ficar mais tempo por lá para fazer o tratamento. Não era grave, mas precisaria de cirurgia. Junto com essa notícia, ela disse que precisaria devolver o apartamento. E que eu precisaria sair de lá até o final do mês. Eu tinha 10 dias para dar um jeito de continuar em Brasília.
Minha mãe queria que eu voltasse para casa assim que soube da notícia. Mas eu não queria. Queria continuar naquela cidade que amei desde o primeiro minuto, queria continuar com a Rafa, queria continuar no bar, continuar perto dos amigos que tinha acabado de conquistar.
Luna e Jaque ofereceram, prontamente, a casa delas para que eu ficasse o tempo que eu precisasse. Não pensei duas vezes.
Arrumei minhas coisas, deixei o apartamento em ordem e avisei Raquel que já poderia devolver o apartamento.
O mês de novembro estava começando, assim como minha relação conturbada com a Rafa. Era nosso primeiro mês juntas e eu não me continha em mim. Estava feliz, orgulhosa por te-ela ao meu lado e, ao mesmo tempo, ainda tinha ciúmes do Jaque que continuava indo atrás dela. Eu ia encontrá-la na saída do colégio e, dificilmente, conseguíamos ficar juntas, com privacidade. Já não tinha mais o apartamento para onde levá-la e não queria levá-la na casa da Luna. Elas já estavam sendo fantásticas me deixando morar lá. Não queria abusar da boa vontade.
Ficávamos juntas sempre que possível. Andávamos pela cidade, sentávamos embaixo dos blocos para namorar, conversávamos muito. Em uma dessas tardes mágicas ao seu lado, saímos da escola dela em direção a sua casa, aproveitando cada minuto juntas. O calor de Brasília se transformou em chuva de verão e nos vimos dentro de um filme romântico, caminhando de mãos dadas, encharcadas pela chuva, brincando com as poças de água e nos beijando a cada sorriso.
Eu estava feliz. E parecia que esse sentimento sempre trazia uma reviravolta.
Rafa era super sincera, não sabia esconder o que sentia e o Jaque ainda estava presente em sua vida. Eu não gostava nem um pouco. Rafa dizia que ainda eram amigas, que gostava dela e não ia se afastar. Cada vez que eu encontrava o Jaque, meu sangue fervia. O ciúme tomava conta de mim e eu perdia o controle. Brigava com a Rafa, pedia que ela se afastasse, chorava, fazia drama. Eu era muito dramática. Tudo era muito intenso, caso de vida ou morte. Não queria que nada pudesse estragar aquele momento.
Já era metade de dezembro e voltei para Curitiba para passar as férias em casa e aproveitar para dar uma folga para Luna e Jaque. Era tão tranquilo morar com elas que não queria estragar. Levei comigo um casal de amigos que tinham o sonho de conhecer a capital mais fria do Brasil. Henrique trabalhava como barman no Fusão e Bruno era seu namorado. Apesar de ter conhecido o Henri primeiro, eu e o Bruno nos tornamos melhores amigos.
Bruno era um cara super tranquilo e, junto com sua delicadeza, deixava qualquer pessoa se sentindo em paz. Ele estava com 23 anos quando nos conhecemos e era uma daquelas pessoas que a gente quer ter por perto a vida toda. Tinha sido adotado por seus avós e vivia no Setor de Mansões do Park Way. O lugar era uma delícia, uma casa enorme, super arejada e seus avós eram ótimos. No quintal, um espaço destinado a criação de jabutis (ou seriam cágados?), dois lindos pit bulls que precisavam ser colocados no canil cada vez que chegavam as visitas e árvores frutíferas espalhadas pelo terreno.
O sonho dele era conhecer Curitiba, então convidei ele e o namorado para ficarem no meu apartamento. Moulin Rouge tinha sido lançado no ano anterior e estávamos apaixonados pelo musical. Alugamos a fita e assistimos 23 vezes o filme para aprender a letra de cada música. Nos divertimos muito naquele verão. Experimentamos absinto no ano novo, jogamos baralho e vimos Bruno ser possuído por um espírito no apartamento mal assombrado de uma vizinha.
Nesta noite, tínhamos ido ao apartamento da vizinha do prédio da rua de trás. Ela dividia o apartamento com Dinorah e tinha começado a namorar meu ex-namorado, o Bernardo. Eu nunca tinha entrado naquele prédio e ele era assustador. Os corredores lembravam a cena clássica das gêmeas do O Iluminado. Estávamos indo para jogar baralho e conversa fora. Priscila e Dinorah começaram a contar histórias trágicas dos moradores do prédio. Como a de um cara que batia na mulher, que curiosamente, era o mesmo que colocava sua mulher na janela durante as relações sexuais e eu conseguia ver do meu apartamento. Barulhos estranhos. Espíritos. E assim a conversa se tornou a hora do terror do que já tinha acontecido com cada um de nós.
Eu tinha tido momentos de paralisia do sono durante a adolescência e eram assustadores. Não sabia o que era na época e acordava sempre com a sensação da porta do quarto se abrindo, um calor tomava conta do quarto enquanto sentia a coberta grudando no meu corpo. Não conseguia me mexer. Só meus olhos se moviam. Durou alguns anos até começarem a acontecer esporadicamente e desaparecer. Em uma das vezes, ouvi uma voz rouca no meu ouvido dizendo “Você não vai conseguir” quando tentava levantar meu braço e chamar minha mãe. Nesta época, aos 16 anos, meus pais tinham se mudado para o meu quarto por causa dessa paralisia frequente e o medo que eu sentia. Depois de assistir O Sexto Sentido, achando que poderia ser uma possessão, comecei a perder o medo e enfrentar a situação. Parece ter funcionado.
Assim, cada um contou sua história. E como já era tarde, acabamos cochilando, esperando amanhecer para voltar para o apê. Deitei ao lado dos meninos e Bruno já parecia estar dormindo quando abriu os olhos de repente. Henri me chamou assustado.
- Olha, Júlia! Ele não ‘tá me respondendo - disse assustado.
- Bruno, tá tudo bem? - perguntei sem saber o que esperar.
Seus olhos arregalados, imóveis e sem reação nos deixou assustados. Henri pediu para trocar de lugar comigo porque estava com medo. Deitei ao lado do Bruno e comecei a tentar fazê-lo falar. Não tinha ideia do que podia acontecer. Ele estava estranho e, ao mesmo tempo, parecia que ia começar a rie a qualquer momento, brincando com a nossa cara.
Durante alguns minutos alternou entre arregalar os olhos e voltar a dormir como se nada tivesse acontecido. Acordava-o e sonolento ele respondia que estava tudo bem. A esta hora todos já estavam olhando fixamente pra ele, esperando o próximo movimento. De repente, ele começou a chorar compulsivamente e se esconder atrás das mãos. Ninguém entendia nada. Queríamos levantá-lo e levá-lo embora. Mas ele olhava fixamente para lugares vazios e tremia de medo. Enfim, conseguimos convencê-lo a levantar. Eu, apoiando-o de um lado, e Henri do outro, chegamos até a porta do quarto. Só era preciso seguir pelo corredor até o quarto. Ele estava em desespero e ninguém sabia o que só ele estava enxergando. Quando passamos na frente do banheiro, ele ficou ainda mais agitado e precisamos andar mais rápido até a porta. O corredor estava escuro e senti um calafrio.
O dia já estava amanhecendo quando saímos pela portaria. Bruno já parecia menos assustado, mas não queria falar sobre o que tinha acontecido. Quando chegamos no apartamento, acordei minha mãe e contei o que tínhamos presenciado. Ela era médium, já tinha incorporado algumas entidades em centros de umbanda, mas ela preferia frequentar o centro espírita, onde participava de cursos e recebia passes.
Ela pediu para irmos para o quarto e colocou o Bruno sentado em uma cadeira no meio da sala. Começou a rezar baixinho e deu um passe nele. Ele se acalmou. Só soubemos o que ele tinha visto alguns meses depois. Era uma criança que aparecia para ele e, quando passou pelo banheiro, ela estava na banheira e tinha sangue. O que ele sentiu não posso nem imaginar.
Apesar de algumas situações totalmente inesperadas, o verão ia bem. Eu e a Rafa trocávamos cartas e telefonemas diariamente.
A mãe da Rafa nem imaginava que sua filha se relacionava com mulheres até chegar a conta de telefone.
No início de janeiro, o telefone tocou. Era para minha mãe. A mãe da Rafa estava furiosa. Tinha visto o nosso número de telefone na conta telefônica e queria saber com quem a filha dela estava conversando. Quando confrontou a filha e ela disse que era comigo, ela enlouqueceu. Já tinha me visto e sabia da minha sexualidade, mas não imaginava que a filha dela mantivesse contato tão constante.
Ela gritou com a minha mãe, mandou que eu me afastasse, que colocaria a polícia atrás de mim, se necessário. Minha mãe desligou o telefone pasma. Não sabia nem o que dizer. A mulher estava louca e nada que minha mãe falasse seria suficiente para que ela se acalmasse.
Tentei falar com a Rafa, mas era impossível. Alguns dias depois, eu já estava em pânico, querendo voltar para Brasília o quanto antes para resolver a situação quando chegou uma carta dela. A carta dizia:
“Meu amor,
Não sei por onde começar esta carta. Não consigo conter as lágrimas.
Minha mãe não sabe sobre nós, mas sabe de você e não quer que nos encontremos. Ela acha que você está me influenciando e agora estou de castigo. Só posso sair de casa para estudar. Ameaçou colocar a polícia atrás de você se você insistisse em me procurar.
Eu não posso continuar com isso. Eu te amo, mas não poderemos mais nos ver. Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida até hoje e quero que você seja muito feliz. Eu não posso lutar contra a minha mãe.
Te amo, meu anjo!
Sua, sempre,
Rafa”
Fim do capítulo
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