- Paciente perdendo muito sangue, vamos direto para a sala de cirurgia... Vamos, vamos...

- A senhorita, não pode passar daqui! – parei diante de uma porta. – Avisa aos familiares dessa moça... Pode fazer isso?

- Posso...  – a mulher que deveria ter uns quarenta e sete anos, sumiu.

Sentei em um banco que havia ali, olhei para corredor, pessoas encostadas na parede, chorando, aquilo parecia mais um pesadelo. Tirei o celular do bolso, minhas mãos tremiam, estavam sujas de sangue, toquei e já havia secado. Meus olhos estavam embaçados, tive dificuldade para encontrar o número da Carolina, eu não queria dar aquela notícia, mas eu precisava. Disquei o número, chamou uma, duas, três:

- Amanda? – a voz dela era tranquila. Respirei fundo.

- Carolina, você e o Henrique precisavam vir para o metropolitano...

- Por que? O que aconteceu? – ela ficou nervosa. – Amanda, pelo amor de Deus, me responde...

- A Flávia, ela... Ela está sendo operada, Carolina... Você precisa vim...

- Ai meu Deus... Meu Deus...

- Carolina? Carolina?

- Ela desmaiou. – era o Henrique. – O que aconteceu? Marisa, me ajude, por favor...

- Henrique... Eu tô no metropolitano, a Flávia...

- O que aconteceu com a minha filha? – havia muito barulho.

- Ela foi baleada... Vocês precisam vir pra cá...

- Senhor... Estamos indo... Obrigada por avisar...

- Espero vocês aqui...

A chamada foi encerrada, olhei para o monitor acima, o jornal local anunciava o ocorrido, agora todos saberiam e logo chegariam.

- Há pouco mais de meia hora, uma estudante universitária, filha de Carolina Cardoso Freire e Henrique Cardoso Freire, Flávia Cardoso Freire, foi baleada no estacionamento de uma universidade, pelo filho da advogada Beatriz Alvares Viana e do cirurgião plástico Renato Alvares Viana, Paulo Henrique Alvares Viana, que logo depois do crime, tirou a própria vida. As causas da tentativa de homicídio são desconhecidas até o momento. O estado de saúde da estudante é considerado grave, de acordo com o que foi relatado no local...

Tirei a atenção do noticiário, fechei meus olhos tentando parar de chorar, um filme passava por minha cabeça, repetidamente. Encostei a cabeça na parede, as lágrimas passeavam pelo rosto, comecei a fazer uma oração. Não sei quanto tempo passou, escutei passos apressados e abri meus olhos.

- Meninas... – levantei e fui abraçada por Rebecca e Emily, que tinham os rostos molhados.

- Eu não acredito que isso está acontecendo... – Emily falava com a voz arrastada.

- Amanda.... Como? – os lábios de Becca tremiam.

- Foi horrível... – eu não consegui dizer mais nada.

Emily encostou a testa na parede, Becca e eu sentamos lado a lado, um silencio angustiante se instalou, o desespero só aumentava, a falta de notícia era torturante. Parecia que o tempo estava brincando com a gente, ele parecia se arrasta. Ouvimos passos e imediatamente viramos na mesma direção.

- Henrique, Carolina... – levantei. Logo atrás Nicole, Paloma e Cássia.

- Acabamos de falar com o médico... – Henrique tinha dificuldade na fala, olhos estavam vermelhos, assim como de todos.

- O que ele falou? – Emily se apressou. – Ela vai ficar bem, não vai? – Emily se apoiava na parede, Nicole e Paloma estavam sentadas cada uma de um lado da mãe. Cássia fixava um ponto qualquer.

- Pelo amor de Deus... Fala alguma coisa. – eu supliquei.

- Duas balas a atingiram... – ele sentou, tendo a atenção de Becca, Emily e eu. – Uma atingiu o braço, mas a segunda... – lagrimas escorriam pela face daquele homem. – A segunda atingiu a cabeça... Será uma longa cirurgia... Longa... Minha filha... Não faz isso comigo...  – ele começou a chorar e foi abraçado pelas filhas e esposa.

O clima não poderia ser pior, para onde eu olhava, havia alguém chorando, eu não conseguia, eu não queria acreditar que tudo aquilo realmente estava acontecendo. Teríamos que esperar oito longas horas para saber o resultado da operação. Só de pensar que ela poderia... Isso não iria acontecer, não mesmo. Ainda tínhamos uma vida pela frente, ela não vai de me deixar agora, nem pensar.

“Meu amor, não faz isso... Por favor, não faz... Seja forte, eu prometo nunca mais te magoar... Volta pra mim... Flávia, não ouse ir...”.

O meu celular tocava insistentemente, não quis saber de quem se tratava, Emily que havia saído para atender a uma ligação, retornou. Sentou ao lado da Becca, a beijou com carinho no rosto.

- A Isa está muito preocupada, quase não entendi o que ela dizia, chorava bastante... Ela está se culpando... – Emily olhava para o celular. – Ela disse que em frente a casa dela há muitos repórteres, o pais dela não deixaram ela sair de casa.

- Mas ela não tem culpa de nada... Ela é só mais uma vitima. – Becca se pronunciou e eu apenas ouvia a conversa.

- Eu não... – os olhos de Emily imediatamente ficaram úmidos e ainda mais vermelhos.

- Ela vai sair dessa... Nossa menina é forte... – Becca abraçou a namorada. Senti meu celular vibrar e novamente não dei importância, mas a pessoa insistiu. Olhei e era a minha mãe, resolvi atender.

- Até que enfim... Por que a demora? Você está bem? Onde você esta?– ela foi logo me bombardeando de perguntas.

- Eu tô bem, mãe... – falei simples.

- Eu vi pela televisão o que aconteceu... Fiquei com muito medo que você... – a voz dela embargou. – Tem vários vídeos, o que você estava fazendo lá?

- Não me aconteceu nada, mas a uma pessoa importante sim... – recebi o olhar atento de todos. – Eu estou no hospital... Eu precisava estar lá, mãe...

- A filha dos teus amigos, como ela está, filha?  - sua voz ficou mais suave. Tentei não mudar o tom de voz, mas não consegui.

- Ela está sendo operada, mãe... – a minha voz embargou. Paloma veio até a mim, sentou ao meu lado e segurou minha mão. A encarei muito surpresa.

- Eu estou orando, minha filha, ela vai ficar bem. – respirei fundo. – O Danilo me ligou inúmeras vezes, seu pai também... Eles estão preocupados...

- Diga a eles que eu estou bem, mas só irei sair daqui quando eu ter a certeza que ela vai ficar bem... – Emily, Cássia, Nicole e os pais de Flávia me lançaram um sorriso fraco.

- Tudo bem, minha filha... Nos mande notícias...

- Eu mando sim... – encerrei a ligação, Paloma ainda segurava a minha mão.

- Ela vai ficar feliz quando souber que você ficou aqui... – Carolina falou com os olhos marejados.

- Não pretendo sair daqui... – falei secando umas lagrimas fujonas.

- Obrigada, minha filha... – seu Henrique me sorriu.

- Eu sei que não é o momento... Só quero que saibam que... – fechei meus olhos.

- Que? – Nicole me incentivou.

- Que eu amo a Flávia... – abri meus olhos. Nossa, como foi bom dizer aquilo.

- É bom saber disso... Mal posso esperar para ela volta pra gente e saber disso. – Cássia falou emocionada. Sequei a milésima lagrima, não acredito que finalmente saiu. Senti as costas pesarem um pouco menos.

Depois desse momento, passamos a esperar angustiantes oito horas, deveriam ser mais de oito e meia da noite, tomava o meu vigésimo copo de água, quando finalmente um médico feio falar conosco, ficamos todas de pé com uma ansiedade quilométrica. Henrique tomou a frente da conversa.

- E então, não precisa ocultar nada. – Henrique estava muito abatido.

- Dr. Henrique, sou o doutor Carlos Saraiva, é um prazer conhece-lo, infelizmente nessas circunstancias. – um breve cumprimento. - A cirurgia foi considerada um sucesso... – o ar preso em meus pulmões saiu com força. – Os projeteis foram retirados, felizmente o ferimento na região craniana não foi profunda, porém com os seus riscos. As próximas 24horas serão determinantes para saber se haverá sequelas ou outros agravantes. A paciente foi levada para a UTI e seu estado é instável e não poderá receber visitas por enquanto. Alguma pergunta?

- Não doutor, obrigada por tudo... – Henrique acabou abraçando o doutor.

- Só fiz o meu trabalho. – o médico sorriu simpático.

- Obrigada meu Deus, obrigada por deixar a minha menina ficar conosco... – Carolina chorava emocionada.

- É isso ai... Danada... – Emily sorria nervosa.

As lagrimas de angustia deram lugar ao alivio, sentei no chão, fechei meus olhos com força, agora era questão de tempo, ela iria voltar. Olhei para o rosto de cada um ali, um sorriso de alivio em cada. Os pais e as irmãs de Flávia se abraçavam, Becca e Emily me puxaram para um também.

- Amanda? -  ouvi a voz de Danilo, sai do abraço das meninas.

- Danilo...

- Eu fiquei sabendo... Eu estava preocupado... – ele estava visivelmente desconfortável. – Como ela está? – ele perguntou diretamente para os pais de Flávia.

- Graças à Deus, a operação foi um sucesso... Agora é questão de tempo para ela acordar... – Carolina respondeu mais tranquila.

- Fico muito feliz... – ele disse sincero, estávamos a poucos metros de distância. – Amanda, vamos até a lanchonete? – ele tinha o olhar triste.

- Vamos... Eu volto logo... – falei para todos ali que apenas concordaram com a cabeça.

Seguimos lado a lado, parecíamos até dois estranhos, o silencio era torturante, minha cabeça estava trabalhando a todo vapor. Depois de alguns minutos, chegamos a lanchonete do hospital, eu sentei e logo ele também.

- Quer alguma coisa? – ele buscou os meus olhos.

- Apenas um suco... – ele levantou e foi até o balcão. Batucava na mesa em nervosismo.

- Aqui... – ele pós a minha frente.

- Obrigada! – nos encarávamos.

- O que vai acontecer com a gente? – logo os seus olhos foram inundados. Suspirei pesado, um rolo compressor passava sobre meu peito.

- Me perdoe... – a essa altura eu também já chorava. Muita coisa em um dia só.

- Estou totalmente perdido, Amanda... – ele secava as lágrimas do meu rosto.

- Eu não queria que as coisas fossem assim, eu juro... – fechei meus olhos tentando controlar o choro.

- Eu não te culpo, Amanda... – abri meus olhos e o encarei surpresa. – Há certas coisas que não dá para ter controle... Não vou negar que senti raiva, mas perder a cabeça não me levaria a lugar algum... – seu olhar fixou em um ponto qualquer. – Eu vi o vídeo... Todos viram... Você estava disposta a morrer por ela... – fiquei alguns segundos calada, tudo aquilo em um só dia.

- Esse tempo todo, você sabia, eu deveria ter dito... Me condeno por isso todos os dias, Danilo. – ele me olhou. – A vida toda eu fui vivendo conforme o que me foi imposto... Há uma coisa no meu passado, mas que guardei comigo. Eu sempre me senti diferente das outras meninas... – sustentei o meu olhar no dele. – Meus pais são tradicionais, você sabe bem disso...

- Tá me dizendo que você sempre gostou de...

- Mulher? Sim, Danilo... Mas preferi guarda isso, pois quando eu era mais jovem, meus pais descobriram e foi horrível... Eu senti nojo de eu mesma, me crucifiquei por algo que... Não foi escolha minha...

- Você deveria ter me dito, Amanda... – ele ficou ainda mais magoado. – Eu poderia entender... Droga, Amanda...

- Hoje sei que sim, eu deveria ter dito segundos depois que te conheci, mas a minha covardia não me permitiu... – olhei para o suco já quente. – Que piada sou eu...

- Eu sempre fui seu amigo, Amanda... O que vai fazer agora? – o mirei. – Como nós ficamos?

- Eu não posso mais viver essa mentira... Vou enfrentar os meus dragões, como deveria ter feito há dez anos atrás... – os olhos dele passeavam pelo meu rosto.

- Isso significa que a gente não terá um futuro juntos? – baixei o olhar para segundos depois o encara-lo de novo. – Nossos anos juntos acabam aqui?

- Sim... Eu já te magoei demais... Você não merecia nada disso, me perdoa Danilo, mas eu não posso mais viver sem ela... Não posso mais viver mentindo para todo mundo, não quero te fazer infeliz... Já te trouxe muito sofrimento.

- Tudo bem... – ele levantou. – Eu... Eu...

- Danilo... – tentei me aproximar.

- Não... – ele levantou a mão. – Você precisa viver... Precisa ser quem realmente é... Eu não vou ser hipócrita e dizer que estou feliz, mas também não quero que você viva fingindo algo que não é... Eu vou tentar ficar bem, eu...

- Danilo... – os olhos dele transbordavam. Atraímos a atenção de algumas pessoas que estavam ali.

- Eu vou ficar bem...

Ele me deu as costas e saiu dali depressa, voltei a sentar, por um momento eu achei que iria apagar ali mesmo. Aquele dia estava acabando com o meu emocional, fiquei ali por um tempo, bebi o suco do jeito que estava e decidi voltar para onde a família de Flávia estava.

- Como foi? – Becca me perguntou assim que sentei ao seu lado. Olhei e Carolina descansava nos braços do marido, Paloma dormia sobre as coxas de Cássia, Nicole e Emily conversavam.

- Horrível... – ela segurou a minha mão.

- Eu estou orgulhosa de você... Muito.

Rebecca me acolheu em seus braços, chorei baixinho, eu estava psicologicamente esgotada e não vi a hora, mas senti que acabei dormindo agarrada a Becca.

Fim do capítulo