Inverno
Sentada sobre o chão sujo daquela velha casa, Theodora debulhava-se em lágrimas enquanto lia as linhas décadas atrás escritas pela avó. Gabriela ainda passou os braços envolta dos seus ombros para passar alguma segurança e conforto, mas ela própria chorava com a voz embargada da namorada fazendo a leitura.
Tinham chegado à propriedade abandonada da família Macedo alguns minutos antes com a missão de explorar a residência que dali a algumas semanas seria derrubada. A ida àquele lugar tinha um objetivo claro: com a demolição daquela casa, parte da história da família Macedo desapareceria, e Theodora, que estava com um projeto de reconstrução de memórias familiares, quando soube, imediatamente chamou a namorada para acompanhá-la até o local para tirar algumas fotografias. Nunca tinha estado lá antes, mas sabia que parte da infância de seu pai tinha sido ali; infância da qual ele falava muito pouco ou quase nada.
Quando pediu ao avô para ir ao local fazer algumas fotos, pensava que faria registros dos cômodos, de alguns objetos domésticos e só, mas o que encontrou foi muito mais do que isso, foi uma história, uma história diferente daquela que lhe fora contatada a vida inteira.
Seguida pela namorada Gabriela, Theodora entrou na velha casa abandonada segurando com firmeza a câmera. Fez algumas fotos dos cômodos do térreo e depois, não querendo de modo algum perder a luz, foi ao primeiro andar. Indo no óbvio, abriu a porta em frente à escada: era um quarto de casal, dos seus avós, concluiu após ver um quadro deles pendurado na parede.
Mexiam em algumas gavetas, armários, e então Gabriela abriu um baú. Após folhear alguns cadernos encontrados, chamou pela namorada, que sentou-se ao seu lado para ver melhor o que a deixava tão boquiaberta. Então Gabriela simplesmente entregou os cadernos e deixou que a própria Theodora lesse.
Primeiro apenas corria os olhos, mas depois, porque Gabriela pediu, começou a ler em voz alta. Os três diários continham, além de uma carta endereçada nunca enviada, longas páginas confidenciais: escrevia porque uma Inês recomendara, o marido a espancava, tentava inúmeras vezes fugir, foi trancada em casa, depois num hospício, depois em casa de novo, sofria, estava só e angustiada, não aguentava mais ficar longe do amor de Inês, daria um jeito de reencontrá-la.
Então as páginas deixaram de ser escritas.
— Sempre me falaram que ela era má, perversa, péssima pessoa, que abandonou a família! Mas talvez ela devesse mesmo ter fugido... Será que a avó Cristina fugiu com essa tal de Inês? — questionou ainda aos pratos.
— Espero que sim! Porque as coisas que seu avô fez com ela…
— Quero ver a minha avó, Gabriela — disse de repente, confiante. — Aquele envelope, nele tem um endereço...
— Theo, isso já tem quase quarenta anos! Ainda que sua avó tenha ido se encontrar com essa Inês, quais as chances de encontrar esse lugar e as duas?
— Quero ver com meus próprios olhos que ela teve a chance de ser feliz, nem que para isso eu vasculhe cada ponto desse estado, desse país, porque se ela conseguiu nos anos 40, a gente também consegue nos 80, não é?
No entanto, diferente do que Gabriela imaginou, não foi difícil encontrar o endereço. Aquela cidadezinha parecia ter parado no tempo. Segundo o investigador, o endereço no envelope dava direto num hotel administrado por duas senhoras idosas. Gabriela e Theodora se emocionaram, os corações batiam descompassados, pois tinham certeza, uma era Inês e a outra Cristina. Elas estavam juntas, tinham conseguido!
Encontraram-nas sentadas num banco posto na estreita rua do hotel, de braços dados, conversando algo que as fazia sorrir. Theodora mal sentia o chão sob os pés. Sua avó fugiu! Estava feliz e bem!
Mas conforme se aproximava ainda mais, percebia que nenhuma delas lembrava aquela das fotos praticamente escondidas nos álbuns de família.
— Me desculpe, meu bem, estive esperando por sua avó por quarenta anos, mas ela nunca veio — Inês explicou, após Theodora contar o porquê de estar ali. — Essa aqui comigo não é Cristina, é apenas uma prima.
A fala foi como um balde d’água fria na ansiedade que cultivou desde que decidira ir até aquele lugar. Quis chorar, sair correndo, mas então Gabriela segurou firmemente sua mão.
— Entrega os diários e a carta, ela tem esse direito.
Tirou-os da bolsa e entregou-lhos. Frustradas e tristes, estavam para ir embora, se despedir, mas então Inês e a prima, amiga e confidente, insistiram para que ficassem ao menos um pouco, a viagem tinha sido longa e elas pareciam cansadas e com fome. Aceitaram.
Enquanto ia em direção ao seu quarto, subindo as escadas, Inês escutou as três iniciarem uma conversa até animada no caminho até a cozinha. Quando a Inês finalmente chegou ao seu quarto, trancou a porta e sentou-se na cama, colocando os óculos de leitura em seguida. Deixou os diários sobre a cama e concentrou-se na carta. Ao abrir o envelope, caiu a correntinha ofertada há tantos anos. Segurou-a com firmeza entre seus dedos murchos e trêmulos. Enquanto corria os olhos pela página amarelada, cujas letras quase se desbotavam, podia escutar claramente a suave voz de Cristina sussurrar em seu ouvido:
“Salvador, 03 de julho de 1943
Querida Inês,
Com a constante ausência do seu toque em minha pele, sinto novamente meu corpo perdendo as margens e aos poucos desaparecendo. Não queria isso para mim, não após ter te conhecido e ter me sentido em você. Os dois meses em que passei com você foram a única estação da minha vida que parece ter tido alguma razão. Agora todos os sentidos reclamam a sua falta: a comida não tem mais sabor; as flores perderam o cheiro; o dia se apresenta sem luz; as notas do meu piano estão mudas; e minha pele, sem ter seu toque, não sente mais nada. Minha pele não tem mais o seu toque! A percepção disso é dolorida, pois seu toque me é tão caro, sinto a falta dele.
Mas como não posso mais tê-lo e notando que desapareço para mim, passei a querer desaparecer em definitivo, fazer desvolatinizar no ar todos os resquícios de minha existência que sem você é ilógica.
Peço que não se zangue comigo, que na sua companhia pude ser eu mesma, sem medos ou receios, mas que na sua ausência me ponho caminhando no vazio. Minha decisão não é impensada, ao contrário, matutei-a em longos momentos de angústia, isolamento e solidão mas lúcidos. Estar neste plano tem me doído muito, minha querida, e você não me quer numa vida sôfrega, não é? então insisto que não se zangue comigo.
Querida Inês, você já deve ter percebido, essa página é uma despedida, ou melhor, um até logo, e, embora duvide, espero que um dia chegue às suas mãos para que saiba que te amei com cada poro de minha pele até o último segundo dessa vida e que agora busco te encontrar.
Eternamente à sua procura,
Cristina”
Fim do capítulo
Quero acreditar que pouco tempo após a leitura da carta e dos diários, o corpo de Inês entendeu que era hora de abdicar àquela vida e partir para uma outra, pois também aquela alma estaria eternamente à procura da de Cristina.
Espero que tenha gostado, que não tenha se frustrado e que encontre - se é que já não encontrou - a sua alma gêmea.
Um beijo e muito obrigada por ter lido meu textinho! <3
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LuBraga
Em: 18/07/2021
A mistura simbolica do seu nome artistico somado ao enredo dessa história só confirma o que vai na letra da música que é o seu nome Ê Madalena "Até a lua
Se arrisca no palpite
Que o nosso amor existe
Forte ou fraco
Alegre ou triste"...
Beijos e excelente semana.
Com carinho,
LuBraga
Resposta do autor:
Você é um amor e eu só tenho a agradecer por você ter lido meu textinho. Muito obrigada pelo carinho <3
Beijo,
Madalena Lenares
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Nay Rosario
Em: 08/07/2021
Comecei e terminei essa história na madrugada. Entretanto não tive como tecer algum comentário devido ao emaranhado de sentimentos. No fim, Inês e Cristina esbarraram com o mal que povoa o mundo; o preconceito. A ignorância.
Texto belíssimo.
Final doloroso, porém real. E ainda assim, bonito.
Parabéns!
Pelo pouco que já li escrito por vossas mãos, pressinto que a cada texto que lançares, serei inundada de sensações.
Resposta do autor:
Inês e Cristina, sobretudo essa última, sofreram um bocado e, de fato, pelos motivos que você elencou. Adorei demais escrever essa história, ainda que com um final tão amargo e, como você disse, real.
Nay, saiba que você é um amor! Obrigada mesmo pelas palavras e por ter tirado parte da sua madrugada para ler minha historinha <3
Pretendo em breve começar a atualizar mais aqui na platafoma e espero que você goste dos próximos trabalhos também :)
Um beijo,
Madalena Lenares
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LuBraga
Em: 03/07/2021
Continue a nos brindar com suas estórias Árvore da Vida, tens um lindo talento, o dom da escrita.
Nada melhor do que encontrarmos nossa alma gêmea, sim existe um encontro marcado e certamente se concretiza se não nesta vida, mas em outra. No fim tudo da certo e é apenas um lindo começo...eu que o diga.
Abraços,
LuBraga.
Resposta do autor:
Você não tem ideia de como esse comentário me encheu de alegria! Penso semelhante a você!
Obrigada por ter lido minha historinha e por ter comentado também!
Um beijo,
Madalena Lenares
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Alex Mills
Em: 03/07/2021
Que misto de emoções dona Árvore.
É possível entender o que levou a Cristina a enxergar essa solução, era uma realidade muito sofrida, a dela, naquela época. D:
Espero que as pessoas hoje em dia não enxerguem o suicídio como uma saída, como uma porta para algo bom, é um assunto muito sério a se tratar.
Mas fico contente que tenha chegado até o fim dona Àrvore! Espero ler mais coisas suas no futuro próximo :D
Parabéns pela história ;)
Resposta do autor:
De fato, siucídio nunca é a solução, mas, feliz ou infelizmente, era o único caminho para que a personagem encontrasse, ainda que no plano espiritual, a paz que não alcançou em vida terrestre.
Se você fica contente por eu ter chegado até o fim, eu fico ainda mais contente por saber que você também chegou. Obrigada demais por ter lido! <3
Em breve vou começar a publicar coisinhas novas por aqui e espero que tu goste! <3
Um beijo,
Madalena Lenares
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