Outono
Em dois meses, Cristina sentia que nunca fora tão sincera e aberta como era com Inês. Se pegava contando histórias que achava estarem adormecidas pela eternidade em sua memória, se pegava tocando em assunto dos quais não ousava nem mesmo imaginar conversar com o marido, se pegava querendo realizar fantasias, outrora esquecidas, com pessoas senão o marido. Desde muito jovem reparava em excesso na beleza das meninas e aos poucos percebeu que aquele sentimento era desejo, mas o reprimia pois, mesmo sem ninguém ter dito, estava implícito que era imoral. Reprimia-o. Não esperava, porém, casara-se muito jovem e contra a vontade com Estêvão, um dos sócios do pai. Sentiu-se como uma moeda de troca. A Estêvão, não conhecia, não amava, não respeitava, sentia talvez até aversão. E foi assim que logo padeceu em angústia, isolamento e solidão. As boas lembranças da juventude foram sumindo, restando apenas as más oriundas no matrimônio natimorto. Com o tempo, conforme sua mente definhava, o sentimento por Estêvão às vezes era até de simpatia por nunca tê-la abandonado, apesar das suas crises histéricas, mas no fundo era isso o que desejava, que o marido a abandonasse, para que assim não fosse mais necessário se ver naquela posição de esposa que nunca lhe perguntaram se queria. Sempre foi de sua natureza ser fechada, introspectiva e até melancólica, mas desde a união, não se reconhecia mais. Voltou a se enxergar apenas com o passar das semanas com Inês e foi também na constante presença dela que Cristina sentiu retornar aquele antigo desejo.
O cuidado de Inês para consigo era diverso daquele que qualquer um algum dia possa ter tentado. Inês ganhava espaço sem esforço, pois não impunha sua presença e nem fazia jogos de palavras para persuadi-la a fazer coisas que não queria. Quando queria simplesmente ficar trancada no quarto, sem ver nada nem ninguém, Inês a deixava; quando, por outro lado, queria ir a uma cachoeira, lá estava Inês esperando por ela; e tinha quando, e esses momentos eram os que mais gostava, queria ficar trancada no quarto na companhia de Inês, ela ficava.
— Sempre faz todas as minhas vontades, vou ficar mal acostumada — disse quando Inês lhe entregou uma bandeja com uma massa e uma taça de vinho.
— Gosto de te mimar, Tina, e como sei que não gosta do tempo chuvoso assim, é mais um motivo para ficar aqui te fazendo carinho.
Mas nem sempre podia ficar muito tempo. Vez ou outra sua mãe, dona do hotel, lhe chamava para realizar alguma atividade e Cristina se via obrigada a conformar-se com sua ausência.
— Volto com seu jantar — dizia para confortar a hóspede.
E quando voltava, ficavam horas a fio conversando. Cristina dormia e somente na manhã seguinte se dava conta de que Inês se recolhera.
Naquele dia, a chuva caiu toda a tarde e noite. Pouco antes do horário em que Inês costumava levar seu jantar, a chuva ficou ainda mais forte, com direito a ventania, raios e trovões. Odiava o tempo daquele jeito e sozinha então? Estava encolhida na cama quando ouviu um estrondo potente e, num movimento reflexo, fechou os olhos com força. Quando os reabriu, tudo escurecera, assustando-a, pois não suportava a ideia de estar sozinha num local sem luminosidade alguma.
Cobriu todo o corpo com o lençol, quase rezando para que a luz retornasse logo. Ela retornou, porém, como Cristina jamais imaginaria: ouvindo o rangido da porta, tirou a cabeça do lençol e viu, viu Inês entrar segurando um vela acessa, que iluminava pouco do espaço, mas muito dentro de Cristina.
— Quase trinta anos, mas se comporta como uma garotinha — disse se sentando ao lado de Cristina. Colocou a vela sobre o criado mudo e deitou na cama, abraçando-a e beijando sua cabeça.
Cristina sentiu-se tão amparada e confortável que não quis mais sair daquele aconchego. Levantou o rosto e, à meia-luz, tentou ver e tocar o rosto de Inês. Quando seus finos dedos chegaram à boca, a contornou com delicadeza.
— Sente uma… uma vontade de…
Não teve coragem de continuar, mas Inês, compreendendo, respondeu:
— Todos os dias.
Se houvesse luz o suficiente, Inês teria notado o brilho nos olhos de Cristina.
— Fica comigo essa noite — disse àquela que fizera renascer em si desejos muito antigos. Inês ficou.
A noite longa e cheia de descobertas fez Cristina, que estava entregue e satisfeita como nunca antes, ter a certeza de que, se pudesse, ficaria com Inês pela eternidade. Sentia o universo curvar-se diante daquele encontro que, ela sabia, não era banal e mudaria sua vida para sempre.
Quando os raios de Sol adentraram por entre as cortinas, sentiu Inês beijá-la com carinho e perguntar o que ela sentia, ao que Cristina respondeu:
— A mim, como nunca antes senti. Também me vejo. Há anos percebia meu corpo perdendo as margens, mas agora as vejo voltando e o desenhando novamente. — Com pesar, acrescentou: — Tenho até medo do que me vai acontecer quando voltar para casa.
— Não vá! Fique aqui e não precisará nunca mais ter que esconder quem é, nem passar por tratamentos que não deseja.
— Está louca! — disse incredulamente — Como ficar aqui?
— Estou te dando uma alternativa.
— Tudo sempre esteve traçado para mim, nunca me deram alternativa para nada, aí você aparece e me dá uma?
— Se você quiser, sim.
Queria gritar que sim, que ficaria para sempre nos seus braços, mas o sorriso, que nem nascera direito, morreu.
— Se fosse somente o Estêvão, eu ficaria aqui, mas… tenho filho! Sou uma mãe negligente, confesso, mas, por mais que seja feliz aqui, não suportaria a imagem que ele faria de mim caso o abandonasse.
Embora lhe doesse, Inês compreendia e, além disso, não queria colocar Cristina numa posição em que devesse escolher. Ela não podia por enquanto e pronto! Tinha que aceitar que Cristina não era nem sua, nem livre.
Quase sem perceber, Inês retirou uma correntinha do pescoço e colocava-a em Cristina.
— Era da minha avó…
— Não posso aceitar! — protestou, interrompendo-a.
— Te dou para que um dia, caso seja seu desejo e caso possa, você volte para mim.
Cristina chegou a lacrimejar. Se pudesse, claro!, voltaria para Inês.
Porém, não teve tempo de dizer a ela, pois a porta foi aberta e elas, flagradas por Estêvão, que, após muito insistir ao doutor Eduardo, recebeu autorização para buscar sua mulher.
Furioso, foi para cima das duas e bateu nelas como podia, e também elas, como podiam, se defendiam. Quando decidiu que bastava, segurou a esposa pelo braço, arrastando-a para fora do quarto, e em meio aos protestos de ambas, gritou para Inês:
— Vagabunda! Te paguei para cuidar da minha mulher e não para seduzi-la.
Ao ouvir essa fala, Cristina cessou seus gritos, olhando para Inês com lágrimas nos olhos. Aquilo não poderia ser real, a história delas não poderia ter começado assim. Mas então Inês se defendeu:
— Isso não muda nada — dizia, tentando inutilmente se aproximar, sendo impedida por Estêvão. — Apesar do pedido que ele me fez, eu teria me aproximado de qualquer forma, porque já estava atraída por você. Eu te amo! Confia em mim!
Sedada com a revelação, desiludida, Cristina não respondeu, simplesmente se deixou ser levada pelo marido.
Continua...
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Alex Mills
Em: 28/06/2021
Dona Árvore!
Capítulo dramático, mas adorei ele todo ahahaha quase estourei uma pipoca e li debaixo das cobertas :D me senti na mesma chuvinha da Cristina.
E que manhã cheia de revelações!
O que será da dona Cristina agora? D:
Esperando pelo próximo!
Muito bom, dona Árvore! Continua escrevendo :)
Resposta do autor:
Saiba que estou a um passo de abdicar ao meu atual pseudônimo para poder adotar esse "dona Árvore" hahaha
Eu adoro um drama, tá no meu DNA, então uso e abuso quando posso kkkkkkkk
Sortuda e, ao mesmo tempo, azarada demais essa Cris, pois encontra o amor, mas isso logo ele é tirado dela... ou não?... aguarde cenas do próximo capítulo!
E pode deixar que vou continuar sim! Assim que liberar a 4a semana, tamo aí na atividade
Beijão! E obrigada mesmo por acompanhar <3
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