Essa noite sonhei com ela. Imagine só: já são quase dez anos sozinha nessa jornada e as vezes que a vi nos sonhos podem ser contadas nos dedos de uma única mão. Então vê-la nos sonhos é sempre um evento à parte; fico obviamente feliz, pelo reencontro, ainda que breve e manchado pela névoa do inconsciente que projeta imagens difusas num cenário confuso, mas ao mesmo tempo amanheço triste, porque quando desperto fico apenas com a ressonância dissonante da realidade fria e vazia. Da vida que insiste em seguir, mesmo sem ela.

No sonho, meu amor sorria. Aquele sorriso que era só dela e que ela direcionava só para mim, com a covinha na bochecha me fazendo querer mergulhar ali e permanecer ali para sempre, e que conseguia, sozinho, me devolver o chão em dias difíceis. Me inspirar nos dias mais tensos. Me apaixonar todos os dias.

Em nosso encontro, ela não disse nada, como sempre acontece quando a gente se vê, nas esquinas da minha mente que me levam até ela, depois de topar com mil becos vazios em infinitas caminhadas notívagas, escuridão adentro. E ao abraçá-la, aquele abraço forte, saudoso, gostoso, comentei que todo o mundo estava muito feliz porque estávamos juntas de novo. Foi tão real que pareceu que o tempo nem tinha passado, de um jeito como se a ausência dela fosse só uma história mal contada, sem final feliz. Acordei insistindo em manter os olhos fechados, como se isso pregasse o sonho sob minhas pálpebras pesadas, com a nítida impressão de que ela ainda estava aqui, comigo, no meu abraço, e por um segundo quase a chamei pelo nome, esquecida da eternidade que há tantos anos nos separa.

É curioso como o tempo lida com o luto. Ao contrário do que imaginei anos atrás, o tempo não apaga nada, só reorganiza tudo. Traça uma linha e separa o bom do ruim, o passado do presente. Porque, ao contrário do que dizem os poetas e afirmam as canções, nem tudo passa.

Há certas dores que simplesmente aprendem a caminhar do nosso lado, disfarçadas de silêncio, de rotina, de resiliência. E, às vezes, até de alegria – porque sim, há situações em que até me sinto um pouco feliz, nos momentos em que me permito esquecer por um instante do peso que sobrecarrega o meu cansado coração. Como meio de sobrevivência, afinal eu permaneço aqui, aprendi a sorrir com a saudade assentada em meus lábios, a fazer café só para mim sem sentir culpa, a rir de piadas que ela teria adorado ouvir. Porque a ausência dela está em absolutamente tudo: no jeito que arrumo a cama, no espaço vazio do sofá, na gaveta que nunca mais arrumei direito porque era ela quem ajeitava.

Ela foi embora querendo ficar, e o mundo que restou está repleto de suas digitais. E talvez seja por isso que, mesmo depois de tantos anos, ela ainda vem me visitar. Às vezes no sonho, às vezes no cheiro de terra molhada, às vezes na música que toca de maneira “aleatória” e me faz parar o que estou fazendo só para chorar um pouquinho.

Se amar é continuar lembrando, então sigo amando. Um amor que também virou memória, virou resistência, virou uma forma insistente de continuar e seguir. Não existe mais a melodia de sua voz nem o prazer de sua companhia ou planos para o fim de semana. Mas há lembranças que me alimentam, silêncios que me ensinam, e sonhos – raros, preciosos – que me permitem deitar de conchinha encaixada nela e abraçá-la por um breve período, ainda que apenas com as mãos do pensamento.

Essa noite sonhei com ela. E mesmo que o dia tenha amanhecido cinzento, mesmo que meu peito doa de novo, algo dentro de mim se acalma... Porque por algumas horas, voltei a ser nós, desatada da minha dura e crua realidade. E isso, para quem anda nas sombras há tanto tempo, é um lindo e breve milagre em forma de luz.

Fim do capítulo