Cada quilômetro conta
Há pouco mais de três anos, decidi começar a correr. Foi depois de uma sucessão de fatos aparentemente aleatórios, mas que no conjunto me levaram até o caminho certo. Primeiro, aceitei ao desafio proposto por uma das empresas que reviso conteúdo desde o começo da pandemia. Chamada Desafio Saúde, a proposta envolvia dez minutos de atividade física por dia, o que me fez começar a caminhar. Sempre fui andarilha, acredito que a melhor maneira de conhecer os lugares é justamente andando, mas a Covid-19 tinha me afastado das ruas desde 2020 e confesso que fui uma das últimas a abandonar o isolamento social.
Estar lá fora, na rua, no entanto, foi tão bom que me animei a tentar correr. Eu, que não corria nem 100m e fui fumante por quase duas décadas. Meu desafio era correr daqui até o lixo, do lixo até o poste, do poste até a esquina. E cada progresso era tão inspirador e ao mesmo tempo animador, que me sentia capaz de absolutamente tudo. Eu, que consegui parar de fumar, me atrevi a querer correr. Primeiro cem metros, depois um quilômetro, depois três, cinco...
Aí, quando essa mesma empresa patrocinou uma corrida de rua, gratuita para os corredores, subi a régua do meu próprio Desafio e me inscrevi. Na minha primeira prova de 5km, levei pouco mais de 50 minutos para completar o percurso, mas na minha mente, subi no pódio porque minhas conquistas nunca tiveram a ver com o tempo e sim com o trajeto em si. Me apaixonei pelas quilometragens e pela possibilidade de ir sempre mais, um pouco mais. Naquele ano, em 2022, eu faria 40 anos em novembro e por causa disso me propus a correr a São Silvestre. Me pareceu uma boa forma de comemorar.
Já comentei em ocasiões anteriores que essa prova sempre me encantou, desde pequena. Quando era criança, eu costumava dizer que seria atleta quando crescesse e, na minha cabeça, quem corria São Silvestre era mais do que super herói: era um tipo de super humano. Com muita facilidade, caí na “lorota” de que “quem corre cinco, corre dez” e conforme os meses passavam, fui avançando sempre mais, e mais, e um pouco mais. No meu aniversário, um mês antes da meta, corri minha primeira meia maratona – são 21 quilômetros contra os 15 da São Silvestre.
É super importante ter um corpo preparado para correr, óbvio. Se for pensar bem, qualquer movimento exige um mínimo de preparação física, por isso que tanta gente não consegue subir uma simples escada, por exemplo. E para correr não é diferente. O corpo exige músculos e muito fôlego, mas principalmente te cobra foco mental porque a cabeça facilmente cansa antes que as pernas, pesa mais do que os braços e às vezes até dói, gritando como se tivesse caído, estabacada no meio da avenida, rodeada de carros. Em determinados treinos, fico com a sincera impressão de que pensar até pesa mais, como se o cérebro impusesse subidas extras num rolê que está longe de ser retilíneo.
Correr 21km não é fácil. São cerca de duas horas e meia ininterruptas se esforçando de um jeito insano, debaixo de sol, morrendo de calor mesmo quando a sensação térmica faz as pessoas te acharem uma doida por desfilar por aí de camisetinha e short, pulando como uma gazela feliz em verdes e floridos campos. É muito chão, acredite, e muito, muito controle mental e emocional – sem falar no físico, é claro, que também esgota bastante.
Ainda assim, dois meses depois da minha primeira meia maratona, comecei a correr uma meia por mês. Em 2023 eu praticamente voei no asfalto, tanto que me convenci de que seria capaz de ousar ainda mais. Afinal, pensei, se corro metade, consigo correr uma inteira. Sim, claro, só que não. E este é o ponto desta crônica.
A corrida infelizmente não ocorre ilesa às adversidades da vida. Ainda que tenha me dedicado, me focado e me preparado, e voltado para a academia depois de muito tempo, embora tivesse o comprometimento de me dedicar para correr 42km com 42 anos, levei duas rasteiras em abril de 2024. E, juro, depois da dengue eu nunca mais voltei a ser a mesma. O esforço dobrou, como se meus pés se descoordenassem e nunca mais se ajustassem.
Reaprendi a correr e a manter os treinos mesmo quando o corpo pesava, a mente chorava e minha cama se estendia como o melhor dos mundos, um consolo para a pessoa cansada que me transformei. Resistente a desistir, larguei a academia na primeira oportunidade.
Como se não bastasse, o destino foi cruel e me impôs uma enorme dificuldade dentro de casa, com problemas sérios envolvendo familiares que me fizeram sangrar durante meses. A dengue me destruiu, mas a depressão por muito pouco não me derrotou. Terminei o ano bem abaixo dos mil quilômetros corridos no ano anterior e muito distante do objetivo que eu mesma me impus, e que de bônus virou ônus com extrema facilidade.
No primeiro dia de janeiro deste ano, voltei a correr 21. No quinto dia, caí de cama, com covid. Um golpe que deveria ter sido um alerta, mas que na real só me estimulou a resistir e persistir, e só por isso que não desisti: porque sou teimosa, orgulhosa demais para me deixar abater.
Só que a corrida se relaciona com o corpo, mas também com a mente, conforme mencionado. Foi válido me agarrar à meta de me superar e ser um tipo de super humana, mesmo com idade relativamente avançada para certos caprichos como me atrever a querer correr uma maratona. Há vários meses deixo minha cama quente seis vezes por semana, quando o dia ainda é noite, e treino com constância e persistência, e me convenço de que consigo, de que de fato é possível correr por mais de cinco horas sem me deixar abalar ou sem me esfolar ao longo de um longo percurso. E tudo ia relativamente bem até a corrida passada.
No último domingo, participei pela segunda vez da meia maratona aqui na minha cidade. Esses eventos são sempre uma atração à parte; correr de galera é tão bonito que até beira a arte, com aquela sinfonia de pés marchando rumo a cenários subjetivos, com todo mundo sendo amigo, ainda que só por algumas horas. O rolê envolve ruas que são da minha quebrada, conheço até os buracos nas calçadas, reconheço subidas, descidas e cada lombada. E quebrei faltando 3km para a chegada.
Nunca senti tanta dor, parecia que as pontadas atingiam até a minha alma. Refletiam no joelho e se estendiam pelas pernas, como se minha pele estivesse inflamável ou inflamada, não sei dizer. Mal consegui andar... me rastejei por vias conhecidas, escondendo meu número de peito para nenhum fotógrafo me registrar no meu momento de entrega à dor, de desistência, de completa falência, quando deixei para trás a ideia de correr mais do que fui incapaz de avançar.
Meu corpo pode até querer ser valente e não ceder, mas ele é falho, assim como minha mente, que não mente quando admite que é preciso reconhecer que, esse tipo de objetivo, eu provavelmente jamais vou vencer. Posso até merecer, considerando minha dedicação, mas já trabalhei no autoconvencimento de que nenhuma meta é engessada em nenhum tipo de cimento; tudo sempre pode (e deve) mudar.
Cruzei a linha de chegada chorando (de dor, decepção comigo mesma e um pouco de emoção porque foram 2h48 lutando para vencer cada palmo de chão). Finalizei a prova com bolhas nos pés e ferimentos internos que vão demorar a cicatrizar – até agora, ainda não voltei a treinar.
A corrida me salva desde a primeira vez. É minha terapia, minha meditação; aquieta meus pensamentos e condiciona minha respiração – seja na ciclovia ou numa competição. E ela precisa ser leve porque já aprendi e entendi que com peso é mais difícil correr. E fatalmente será correspondente a uma bigorna se eu insistir em não querer desistir, se resistir contra o fato de que até os mais belos e nobres planos precisam de ajustes, de correção. Nem toda história é de superação, afinal; às vezes ser honesta com a realidade é a verdadeira lição que podemos tomar.
Desistir, porém, não é me entregar. Porque cheguei num ponto que simplesmente não tenho mais como recuar, parar não é uma opção. Mas consciente, com os pés bem firmes no chão, vou rumar agora para metragens mais curtas e mais próximas à minha realidade, adequadas à minha condição de quem se arrisca a se cuidar de verdade, mas estabelecendo limites possíveis de alcançar, preservando meu corpo para não me machucar e minimamente blindando minha mente para não me decepcionar.
Há pouco mais de três anos, decidi começar a correr. Hoje, tantos quilômetros e algumas quedas depois, decidi manter a corrida como minha aliada, uma espécie de amiga alada que me ajuda a me vencer, mesmo que na base de recalcular rotas, objetivos e sonhos impossíveis de viver. Cada quilômetro conta.
Fim do capítulo
Ando sumida, eu sei. O capitalismo tem me consumido, agora tenho dois empregos e quando poderia escrever estou sempre tão cansada que só quero deitar e dormir...
Hj abri o arquivo das TPM, as primeiras sete páginas do penúltimo capítulo da história estão prontinhas, redondinhas. Mas mesmo com saudade e vontade de escrever, acabou saindo essa crônica. Não reclamo porque desconheço as formas como a Santa Inspiração costuma agir.
Em breve volto, prometo.
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cris05
Em: 12/06/2025
Bravo, autora!
Você é fodástica correndo ou não a maratona!
Também tô com saudades das TPM mas imagino o quão cansada você está. Fica tranquila e volte no seu tempo.
Beijos!

caribu
Em: 13/06/2025
Autora da história
Bom dia, meu bem!
A meta é voltar pros braços do nosso trisal favorito ainda hoje!
Vamos ver se a inspiração permite...!
Se cuide aí!
Beijos!
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caribu Em: 16/06/2025 Autora da história
Subir dois ou três andares de escada é bom demais!
Correr é muito gostoso, mesmo. Ontem me arrisquei a voltar, uma semana depois de me conscientizar, de fato, das limitações que tenho. Senti dor e liberdade ao mesmo tempo rs
Meu maior objetivo, no fundo, é ser uma idosa funcional.
Boa sorte pra nós!
Beijos!