Capítulo único
Ela andava sem pretensão pela beira da praia. Só queria sair de onde estava a qualquer custo, mesmo que não tivesse lugar nenhum para ir.
Não gostava de festas, nem de aglomerações. Era pouco sociável, sempre foi. Sentia-se desconfortável com o toque das pessoas, o acúmulo de energia entre elas. Os gritos exacerbados, as atitudes impensadas, a alegria que parecia cada vez mais falsa. Talvez o problema fosse com ela, sempre pensava. Só tinha ido até lá por insistência de sua amiga, que dizia que ela precisava sair mais. Não saía de casa, tinha poucos amigos.
Também não tinha grandes pretensões na vida. Na verdade, estava cansada de pensar que tinha algum propósito. No final, talvez isso não faça nenhum sentido, ou eu que estou vivendo errado, pensava consigo. Pensava que já tinha visto de tudo, mas ao mesmo tempo sentia que não sabia de nada, e que provavelmente viveríamos sem saber. Aquilo causava uma ansiedade que não dava pra controlar, e ali também não era lugar e nem momento.
Cansaço era a palavra que mais repetia consigo mesmo. Estava incrustado em todo o seu ser. Chegar em casa, tirar as roupas, comer qualquer coisa, deitar no sofá, assistir qualquer coisa e dormir. Qualquer coisa. Sim, essa era outra palavra recorrente na sua vida.
Assim como tinha se cansado daquela sala cheia de gente e tinha descido as escadas para o lado de fora sem pensar muito no que fazia. Sua amiga estava entretida demais conversando com os outros para notar sua ausência. Não que ela não sentisse sua falta em algum momento. Ela gostava de sua companhia, mas não era uma prioridade. Bem, nunca era uma prioridade de fato, mas tinha aprendido a conviver com isso.
Afinal, não somos seres especiais, e, se somos, ela não era um caso. Ou pelo menos estava crente de que não era.
Caminhou sem rumo no escuro. Não tinha lugar nenhum para ir, mas sabia que qualquer lugar que não fosse ali estava bom.
Como sempre, qualquer coisa.
Tirou as sandálias para poder sentir a areia debaixo dos seus pés. Não fazia isso há anos, mas só se deparou quando esteve ali. Quantas coisas se deixam passar com o decorrer do tempo com os afazeres, as coisas inacabadas e as novas que sempre costumam aparecer?
Sentou-se na beira da praia, ali mesmo. No escuro. Sentia aquele incômodo novamente. Aquele de que parece que perdeu todo o tempo que tinha em mãos. Que podia ter feito diferente em algum momento, mas deixou a oportunidade ir. Incomodava o fato de não lembrar qual foi a última vez que fez realmente algo que gostava, se é que gostava de alguma coisa. Do que ela gostava? Se questionava enquanto a água do mar batia no fundo, em ondas cada vez mais revoltas.
“Por que tenho a impressão que não vivo de fato se estou aqui?”
Isso estava preso em sua garganta como uma conversa mal resolvida a qual nunca teve final. Passou a mão na nuca, cada vez mais envolta em tais pensamentos. Deveria estar feliz que tinha uma boa posição em seu trabalho, mas afundava cada vez mais o sentimento de que odiava aquele lugar. Nunca quis aquele emprego. Na verdade, nem lembrava se teve alguma objeção na vida. Aquele sonho de ser alguma coisa, de mudar o mundo.
A única coisa que dizia quando era criança era que queria ser livre, e agora estava presa em sua própria gaiola. Era mais fácil assim. Quando seguimos o que esperam, você acaba vendo que lutar contra não é a melhor solução. Talvez esse seja o significado de crescer: ver todo aquele brilho que um dia te pertenceu se tornar cinza. Acomodada era a palavra? Frustrada também podia se encaixar bem nesse sentimento, mas soava muito cruel. Talvez todos nós sejamos grandes crianças desiludidas com o mundo, e que tentamos lidar com isso com o decorrer do tempo, ocupando nossa cabeça com nossos afazeres.
A diferença é que, para ela, essa inquietação nunca sumia.
Casa, trabalho, trabalho, casa. Um e outro lance casual. Almoço com os pais aos domingos. Não se dava tão bem com o pai, mas dava pra levar. Ida ao salão vez ou outra. Pagamento de contas, compras e descartes. Supermercado sexta à noite. Nenhuma sensação de lar naquele lugar de seis cômodos.
“Se as coisas são assim, por que ainda temos que continuar?”
Já era grande o suficiente pra saber que a vida não era como um dos livros que costumava ler na adolescência, que não existia o grande amor da nossa vida e que não era a estrela especial de algum filme. Só mais uma apenas lembrada por seus familiares e que iria ser esquecida pela terceira geração em diante, se é que sua família iria seguir com alguma espécie de legado que valesse a pena. Não tinham nenhum, e, se fosse depender por ela, continuaria assim.
A mediocridade, na medida que te afaga, também te destrói. Não pelo sentido negativo da palavra, mas que ser como qualquer um te transforma em apenas um número dotado de um registro e algumas poucas histórias. Amigos que chegam e se vão. Momentos engraçados, divertidos, tristes, revoltantes e inesperados, todos esses pingados em semanas, meses e anos que se arrastam.
Até que esse silêncio é quebrado por uma singela voz de fundo.
— Posso me juntar a você?
Virou-se assustada. Não estava sozinha esse tempo todo?
A garota usava um vestido longo, branco. Também carregava as sandálias de couro nas mãos. Recuou por um instante ao vê-la. A visitante também fez o mesmo.
— Espero não estar atrapalhando...
— Não, é... – gesticulou para que sentasse – Fique à vontade.
Ouvia-se a música vindo das casas atrás delas. Talvez fosse uma das convidadas de outro lugar, ou talvez estivesse na casa com ela. Não tinha prestado atenção o suficiente pra lembrar do rosto de ninguém, sem contar que estava escuro. Não dava pra ver com nitidez os detalhes do que se constitui a feição de alguém de fato.
— Fugindo das multidões? – diz a garota que chegou com uma voz amigável. Ela só concorda com um murmuro, até que ela puxa a carteira do bolso – Quer?
— Ah, não, obrigada, não curto.
— Faz bem – ela diz em um tom ainda gentil – se importa?
Ela nega, e a garota faz um breve esforço de acender em meio a ventania, sem sucesso, até que gesticula para sua acompanhante que se aproxime com as mãos curvadas para que acenda. Acaba funcionando.
— O clima estava estranho por lá... – ela volta a falar. A que estava ali primeiro cerra as sobrancelhas, em um gesto de tomar coragem pra prosseguir.
— Como estranho?
— Ah, um carinha inconveniente começou a dar em cima de mim – diz com certo desgosto – sempre tem dessas, e a propósito – ela ri com um ar que beira o infantil, como uma criança que apronta alguma coisa – se alguém vier perturbar, qualquer coisa, você é minha amiga que não vejo há anos. Tem problema?
— É... – ela pigarreia – Não, mas acho que não sou a melhor companhia pra isso.
— Seria pior do que um homem babando o próprio ovo? – diz a garota entre uma tragada, encarando-a ao se apoiar nos joelhos. Ela ri, negando mais uma vez – Então pronto.
Um breve silêncio se forma antes que a garota de cabelos compridos voltasse a falar.
— Então está aqui, nesse lugar tão bonito, olhando pro mar – a garota dizia ainda com o cigarro nos lábios – pensando no quê?
— É... – Ela respondia envergonhada, sem saber exatamente do quê – Pensando um pouco na vida.
— Pensando em como ela é maravilhosa?
— Bem longe disso... – ela a olhou de relance.
— Sou a todos ouvidos.
Pensou em como falar do que pensava para uma estranha soava menos inusitado do que estar sentada do seu lado, em uma penumbra com o risco de ter a garganta cortada a qualquer momento. Talvez colocar pra fora funcionasse. Nesse caso, só iria saber tentando.
— Eu tenho tudo o que achei que precisava ter pra ser feliz, mas... Por que não consigo sentir essa felicidade de fato? – ela deu com as mãos no ar – Não tenho nenhuma aspiração na minha vida a não ser viver, e... Isso não é meio deprimente?
A garota continuou encarando-a esperando o resto das palavras. Engoliu em seco e continuou.
— E isso anda me sufocando de um jeito que... Olham pra mim e veem uma pessoa feliz e bem-sucedida, mas o que tenho além disso? Somos só o nosso trabalho, nossas aparências e nada além disso?
O silêncio dela continuou, mas tinha a impressão de que seus olhos estavam compenetrados na direção da falante, o que a fez logo desviar.
— Mas o julgamento alheio não é justamente por uma projeção que criam da gente?
Não esperava por aquela resposta. Na verdade, imaginava que sequer tivesse prestado atenção de fato no que tivesse sido dito.
— Mas é disso que falo – ela disse com amargor – só me veem como essa projeção, nada além disso.
— Ou isso não reflete em justamente como se vê?
Ela precisou de um tempo pra digerir o que tinha ouvido.
— Quer dizer se ver pela ótica dos outros?
— E por conta disso não consegue olhar para o que está atrás – e apontou em sua direção – É como se sua visão estivesse viciada para ver só uma coisa, e justamente o que dizem de ti.
As palavras a atingiram certeiras. É aquele tipo de coisa que não se gosta de reconhecer.
— É como se não se reconhecesse mais? – ela deu com os ombros, se aproximando da outra que recuava – E não lembrasse mais de como era antes?
— É, é exatamente isso – ela começou a gesticular – Eu não consigo ver o que eu era antes de ser o que sou de fato. A sensação que tenho é que, se eu tinha uma essência, em algum momento, eu a perdi.
— A rotina nos massacra – a garota volta a fumar – é verdade, e por isso a gente se apega a coisas pequenas pra nos ressignificar de alguma forma... Não é? Aquele pequeno prazer pra não enlouquecer...
— Qual? – ela volta a rir constrangida – Sou uma pessoa solitária, do mesmo jeito que você me encontrou...
Ficam em silêncio por um tempo enquanto a garota tragava o cigarro mais uma vez.
— E isso é um problema?
— Quando se passa muito tempo só, talvez seja... Mas, deixa isso pra lá – ela volta a gesticular em negativa – Só estou falando sobre mim você, o que faz?
— Não tenho um trabalho, estou fugida da casa dos pais, aspirante a muita coisa, mas no final sendo nada... – ela dá com os ombros, com o sorriso quase infantil transparecendo mais uma vez – Sou um grande nada demais.
Elas se entreolham, e a garota volta com o cigarro. Ela é estranhamente intrigante, é o que ela pensa quando a vê a encarando como se esperasse algo demais no que iria falar agora.
— E como se sente? – ela começou a gesticular – Está bem com isso?
— Nem um pouco – ela dá um sorriso de canto, a olhando de relance, jogando as cinzas logo em seguida – Na verdade eu ando em uma fossa terrível e meus amigos me trouxeram pra ver se me animava, mas...
Ela dá um breve suspiro antes de continuar e a olhar mais uma vez, mesmo no escuro. O cigarro tinha acabado.
— Você parece ter tudo o que achei que precisava pra me sentir melhor, mas, no final das contas... – ela dá um breve riso sarcástico – Nos encontramos na mesma situação. Engraçado, não é?
— O sofrimento sempre acaba sendo igual para aqueles que o tem – ela sorri amigável ao dizer isso, e a garota a encara de relance mais uma vez – minha mãe costuma dizer isso.
Sorriram uma pra outra. Pessoas perdidas, assim como pedras, acabam se encontrando no caminho.
— Eu tenho que ir, mas... – a garota disse, limpando a areia do vestido – Se quiser continuar a conversa, tenho um vinho gelando lá em cima.
— Não, obrigada, eu... – ela olha para cima, negando com uma careta – Vou ficar por aqui mesmo.
— Bem, ainda assim, fica o convite.
A garota parecia desapontada quando se despediu com um aceno. Ela virou e encarou as ondas batendo de volta uma contra a outra, e a única coisa que passava por sua cabeça naquele momento era porquê não. O que tinha a perder, afinal? Como ela mesmo disse...
Viu a garota já distante, mas ainda assim correu a passos largos ao seu encontro. Ela estava quase chegando quando ela chamou sua atenção. Acabou se virando. Seus olhares se encontraram novamente. Ambas sorriam. Agora podiam reconhecer o rosto uma da outra.
— Tinto ou branco?
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]