Capitulo 1
Clarice era uma menina curiosa e questionadora, se sentia especial, amada pelo pai, seu ídolo, a quem sempre dispensava toda sua atenção — confiava em suas palavras e acreditava que ele sabia todas as respostas — e ela era cheia de perguntas. Clarice nasceu no 4º mês da década de 80, veio a um mundo onde uma espécie de esperança era sentida no ar das cidades (mesmo que aquele lhe parecesse um estado natural das coisas, já que era assim que era e ela, nesse tempo, ainda começava a se descobrir ao mundo, ainda se constituía a si mesma — com toda a redundância que se tornar um ser subjetivo permite — e dava como certo o que o mundo lhe apresentava), a vida de sua família parecia segura e próspera. Só muitos anos mais tarde, quando a Clarice crescida veio conhecer um pouco dos assuntos de política, é que pôde entender que aquele clima de esperança se devia ao fim da ditadura, oficialmente em 1985, e percebeu, também, como em cascata, seu lugar de privilégio, a bolha onde se inseria no mundo, formada de uma espécie de burguesia intelectual, que respingava na menina Clarice, desde pequena estrangeira em si mesma, como o suor do gelo nas caixas de isopor dos churrascos regados a cerveja, futebol e machismo estrutural à la anos 80, dos docentes da Academia, amigos de seu pai.
Apesar de ouvir muitos “nãos” dentro de casa, especialmente de sua mãe — cuidadora rígida e surpreendentemente fria, que gerava na menina uma sensação ininteligível e incômoda de insegurança e ambivalência —, neste tempo a pequena ainda sentia que podia tudo o que quisesse. O céu era o limite! E só de pensar nessa frase, Clarice, como a escritora famosa de sotaque diferente, podia imaginar tanta coisa! E formular tantas questões... Do que são feitas as nuvens? O que tem além delas? O que é o mundo? O que estamos fazendo aqui? Para que serve a vida? Se não estivéssemos aqui, vivendo essa vida, o que existiria? E nós, onde estaríamos? O que é tudo isso? — e por aí seguiam os pensamentos da menina desbravadora e corajosa, que tentava encontrar no universo à sua volta alguma paridade com o universo infinito que trazia dentro de si.
Era a mais velha de três filhos e, embora a diferença de idade entre eles fosse pouca, Clarice tinha muito claro, graças à repetição incessante de sua mãe, o seu papel de mais velha na relação com os irmãos Fábio e Ingrid, por ordem de chegada. Geralmente era ela a responsabilizada por qualquer problema que surgisse e não estaria fazendo “mais que sua obrigação” quando tudo corria bem. Com os primos, quase todos também mais novos, Clarice fazia o mesmo papel, embora não fosse nenhuma santa, participava cuidando da harmonia entre eles em meio aos jogos e brincadeiras na casa da avó paterna, onde dormiam todas as crianças todos os finais de semana. Mas ali, naquele ambiente onde se sentia mais em casa que em casa, não havia obrigações, fazia por empatia, por amor, porque era assim que ela era, embora não fizesse nem ideia de nada disso (só mais tarde faria todas essas análises).
A família morava em um condomínio com três prédios, somando 120 apartamentos, recém-entregues pela construtora onde seu pai trabalhava antes de passar a se dedicar exclusivamente à carreira de professor. Túlio era engenheiro civil e Clarice achava o máximo pensar que seu pai tinha calculado e projetado cada cômodo da casa de todos os seus vizinhos — tal qual mostravam os infinitos desenhos feitos a lápis, esquadros e régua T em papel-manteiga de tamanhos enormes que via sobrepostos na mesa de trabalho e que seu pai enrolava cuidadosamente com as duas mãos deslizando suaves pelas folhas até que virassem um canudo gigante. Com esses vizinhos Clarice brincava todos os dias na área de lazer do condomínio; um parquinho de grama no chão e brinquedos sólidos de ferro pintados em cores fortes, e descascados e enferrujados com o passar do tempo — também pensada por seu pai, se lembrava ela — e aquelas crianças foram se tornando uma nova família para a menina, com o passar dos anos. Ali, Clarice, Fábio e Ingrid fizeram suas primeiras amizades e eles próprios puderam se reconhecer diferentes quando destituídos do controle e da rigidez de dentro do apartamento. Bastava descer por um dos dois elevadores que cada bloco possuía para atingir a liberdade de se juntar aos seus, era como Clarice se sentia. Formavam um enorme grupo de crianças de idades variadas e, com essa turma, ao longo dos 15 anos que moraram ali, aprendeu valores importantes como companheirismo, pertencimento, comunidade, fraternidade e respeito.
Com o passar dos anos o parquinho deu lugar a uma quadra poliesportiva, numa construção que se deu no ritmo das mudanças adolescentes. Num piscar de olhos os piques deram lugar aos Hi-Fi no salão de festas à meia-luz, com Sukita e Guaraná esquentando em cima da mesa ou nos copos de plástico deixados aos pés das cadeiras dos que se permitiam, na pista de dança delimitada de forma imaginária no meio do salão, o encontro dos corpos embalados pela sequência de músicas lentas que — de Roxete a Elton John, passando por Michel Jackson e Madonna — mexia com os hormônios e as fantasias juvenis de uma forma cúmplice e inocente, e cada beijo roubado no pescoço deixava um gosto de novidade que jamais se sentiria. Passeios de bicicleta, filmes no cinema, fim de semana na chácara daquela colega de família rica, pequenas viagens para pequenas cidades aos arredores — onde morava o pai divorciado de uma amiga, ou a avó fofíssima de um amigo — festinhas nas repúblicas que se formavam conforme os tempos de vestibular chegavam e os cursinhos foram dando lugar às vagas na Universidade. Clarice morava em uma cidade universitária e, naquela época, todo o esquema da cidade acabava girando em torno do calendário da Universidade Federal (onde agora seu pai ocupava o cargo de diretor da Faculdade de Engenharia) e de receber, a cada novo semestre, estudantes de todas as partes do país, que vinham morar pelo período de sua graduação.
Foi durante os últimos anos nesse condomínio que Clarice, um dia qualquer, acordou lésbica. Foi assim mesmo que ela sentiu. A adolescente teve um primeiro namorado, de quem tinha gostado muito e com quem havia feito suas primeiras descobertas sexuais, e teria ainda outro, logo em seguida, com quem se descobriu ainda mais. Mas entre um e outro, Clarice foi dormir hétero — hétero de nascença, hétero de nunca ter pensado nisso, hétero de viver em uma sociedade com cultura heteronormativa de controle de corpos enraizada — e teve um sonho revelador. Sonhou com uma amiga nova que havia se mudado há pouco para a cidade e estudava na mesma classe. No sonho, as amigas dormiriam juntas num lugar que Clarice não reconheceu ao acordar. Ao se prepararem, no banheiro, antes de se deitar, entre risadas e diálogos animados sobre sabe-se lá o que, a amiga se despia ao trocar de roupa e Clarice, sem se dar conta, parou de falar e se deixou hipnotizar pelos seios da amiga, que percebeu o olhar fixo no seu corpo nu e deixou cair de suas mãos a camiseta que pretendia vestir, olhando de volta para a amiga de uma maneira que parecia um convite. Clarice, com o coração acelerado, se sentia pulsar de prazer e vontade de tocá-la e se aproximou até que pudesse sentir o cheiro suave de sua pele, rostos quase colados e, no seu, o calor que o corpo da amiga exalava. Acordou suada, molhada e confusa: aliviada e irritada por ter sido “apenas” um sonho. Claro que não foi “apenas” um sonho, Clarice descobria ali a sua pólvora. Descobria uma parte importantíssima de si mesma, se reconhecia naquela atração que sentiu no sonho ainda que, conscientemente, nenhum tipo de pensamento a respeito lhe tivesse ocorrido até então. Meu Deus, eu sou lésbica! — foi o que ela concluiu com surpresa e entusiasmo.
Foi no mesmo ano que Clarice entrou para a faculdade, completou 18 anos, teve sua primeira namorada e tirou carteira de motorista; que se mudou com a família do apartamento de dois quartos e ½, onde não suportavam mais se trombar pelos pequenos espaços daquele imóvel de tamanho ideal para um casal e três crianças pequenas. E tudo mudou radicalmente na vida da jovem, sem que ela pudesse ter previsto. Seus amigos/irmãos estavam, como ela, desbravando novas aventuras, e seus horários e rotinas já não permitiam tanta proximidade. A internet fez falta nesse tempo, embora já estivesse pairando no ar — na globalização que se anunciava, nas grandes instituições e nas casas dos mais ricos — e o novo mundo tecnológico que surgiria logo, logo sem que ninguém, ou quase ninguém, pudesse notar com tanta clareza até então. Clarice com certeza não podia.
No novo bairro, um residencial de classe média alta, onde Clarice até então só frequentava raras vezes ao ano quando visitava o triplex de sua tia mais rica, a jovem se viu completamente desconectada daquela nova realidade. Era na rua mais alta do bairro o prédio onde a família comprou a cobertura e Clarice se sentia a Rapunzel presa na torre. Tudo ficou mais longe, mais difícil e mais distante, não só física como afetivamente do universo do qual fez parte até então. Não era só o endereço que havia mudado, Clarice agora crescia, ou devia crescer, era o que sentia como uma urgência, e ela não sabia bem como lidar com tudo o que se passava dentro de si. Sentia falta dos amigos, de cada um, mas principalmente do todo, da convivência, de poder vivenciar seu pertencimento cotidianamente. Clarice não pertencia mais, era como se tivesse saído de um porto seguro e ido para lugar nenhum. Não tinha pares naquele novo ambiente.
Na faculdade, Clarice se enturmou, fez novas amizades, resgatou algumas dos tempos de colégio que voltava a encontrar, agora por interesses e escolhas mais afins. Clarice se adaptou àquele lugar com mais facilidade do que com o fato de estar se tornando adulta. Sentia verdadeiro desespero quando algo lhe fazia lembrar disso.
Em casa, apesar de uma revolução ter acontecido devido ao tamanho daquele novo “lar” — pela primeira vez ela tinha um quarto só seu e a possibilidade de ficar só! Como havia desejado isso! —, na medida em que buscava sua autonomia, mais se via cerceada pela cuidadora rígida, que não cuidava mais, mas seguia fria, e por tudo o que daquela relação a filha já introjetara. Clarice sentia que tudo o que fazia era ruim ou sem valor, se cobrava em demasia e tinha muito medo, não sabia explicar bem de que ou o porquê. Começou a trabalhar durante o dia para ter como pagar pelos rolês que passou a gostar de fazer à noite, depois das aulas, com suas novas turmas, a da faculdade, geralmente nos barzinhos que circundavam os arredores do prédio antigo e imponente com guarita na entrada em que estudavam; e também sua galera gay, que com dificuldade a jovem ia encontrando pelos bares mais escondidos da cidade, lugares que há pouco nem sabia que existiam, e outros poucos que já sabia, mas não conhecia e que abriam um novo universo de possibilidades, quase que como uma vida paralela, ela sentia. E era bom que fosse assim, se sentia livre para se descobrir estando em guetos onde, de uma forma ou de outra, estava entre iguais. Clarice se descobriu lésbica num período onde esse assunto, as sexualidades, as identidades e as orientações, por mais que já se falasse, naquele tempo, que ERA tabu, assim, no passado, ainda era tabu no presente. O finado ICQ, que trazia sua famosa função de fazer tremer a tela, literalmente, também proporcionou à Clarice acesso a novas futuras amigas do Vale. Suas primeiras relações com mulheres foram, cada uma em sua medida, um tanto tóxicas — vamos combinar que Clarice era propensa a toxicidades — e pelos próximos anos a jovem adulta que não sabia crescer caiu na armadilha do medo e da insegurança, se perdeu de si e arrastou uma depressão que teve vários nomes, de acordo com o médico que a atendia, a fase ou o episódio. Foi um tempo cansativo para Clarice, e não menos para os que estavam à sua volta e conviviam com ela, cada vez mais por falta de opção do que o contrário. Foram anos sem futuro e de um presente oscilante, interminável, pesado e emperrado. Clarice teve apoio material, acesso a todos os médicos especialistas, medicamentos e terapias. E estava entupida de todas as tentativas de sair daquele fundo de poço sem fundo. Dentre todos os diagnósticos, dados como incorretos depois que a medicação fracassava em seu propósito, uma alma inspirada e diplomada, soltou essa: “Confirmamos que não é endógeno, tampouco tem causa em evento específico. O que você tem é vivencial.” Clarice não se lembrava bem se foram essas as palavras exatas, mas ela se agarrou ao vivencial. Na prática, isso não dizia absolutamente nada, sabia ela racionalmente, mas internamente aquilo explicou o que ela sentia, explicou a dor que carregava, a raiva que ela por tantas vezes se viu disparar contra o mundo à sua volta, de tantas maneiras. Largou todos os tratamentos e medicações — menos seu ansiolítico de estimação — e focou na terapia. E na Psicanálise se salvou, e vem se salvando, nunca mais parou.
Depois de trancar a faculdade algumas vezes, ora por estar deprimida demais, ora por querer experimentar outros caminhos, foram nos últimos dois anos antes de se formar que Clarice precisou lidar com a doença — rara e incurável — de seu pai, que morreu um ano depois que ela se formou. Clarice ficou órfã, foi como se sua família inteira morresse na figura afetuosa de seupai. E, como era de se prever, a relação com a mãe, que sempre foi difícil, não tendeu a melhorar sem o pai fazendo intermédio.
A montanha-russa emocional de Clarice seguiu, subindo ao topo e descendo despenhadeiros velozes. Estava já muito mais equilibrada emocionalmente, sem medicação as coisas pareciam estabilizar, quando o luto se fez necessário, além de urgente. E ela se permitiu enlutar, e eventualmente se desenlutou; tinha força aquela menina-mulher, ou mulher-menina, tinha brilho, tinha garra, tinha alguma coisa de muito potente em Clarice. Podia desmoronar, e desmoronava, mas a cada volta por cima ela se levantava de alma íntegra, e investiria toda sua energia em crescer. Estava começando a entender o que era isso, afinal.
Enquanto se curava, teve alguns relacionamentos, uns mais sérios, outros nem tanto, alguns mais longos, outros fugazes e, com cada um deles, Clarice aprendia sobre si e saiu sempre mais madura e experiente do que entrou. A vida não era fácil, mas era boa em diversos momentos, e a menina crescida sabia vivenciá-los.
Se equilibrando entre perdas e ganhos — e foram mais perdas, Clarice sabia, sem reclamar e sem mais culpar ninguém, que acabou perdendo muito —, cresceu e amadureceu, muito também. Mas não deixou de cair…
Seu último “tombo” foi a mina com quem Clarice acabou se casando, sim, no papel e tudo. Não é que era uma vigarista de carteirinha, cheia das mentiras e golpes clássicos dos vigaristas? — Sim. E não é que Clarice caiu? — Sim. É, ou não é, dada a toxicidades? Pois então, Clarice caiu e se viu repetindo toda a trajetória que já estava acostumada a fazer, se sabotou em penitência sem perceber — imagina se a moça não fizesse análise há anos? Não se desesperou, já não desperdiça também suas energias assim, mas nem por isso entendeu, antes de pedir ajuda ao inimigo (ou à inimiga), quando era ela mesma quem tinha que se tirar de buraco, afinal de contas, Clarice,! Pois é, Clarice, agora, desde que se divorciou e dobrou a aposta com a coodependência logo em seguida, não quis mais se reerguer. Porque entendeu que aquela a quem ela tenta levantar não é ela mesma, mas o fruto do que outra pessoa plantou. Ela mesma é aquela menina curiosa e questionadora, que filosofa sobre a vida, sobre o que vê e sobre o que não pode ver, aquela que pergunta, desbravadora e corajosa, que quer saber, que quer ir além, aquela que acredita que a vida é próspera, que não veio a esse mundo à toa e que acredita encontrar no universo à sua volta alguma paridade com o universo infinito que resgatou dentro de si. Nem o céu é limite!
Agora, Clarice vai reescrever sua história. Literalmente.
Clarice,
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 29/07/2023
É viver...

Clarice
Em: 30/07/2023
Autora da história
Resumiu perfeito, Marta!
Agradeço sua leitura!
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Clarice Em: 15/09/2023 Autora da história
É isso aí!!!