11. Afeição
— Ana Clara – Júlia disse chamando sua atenção, e ela levantou o olhar da xícara de café que encarava – Sua cara está péssima.
— Eu sei.
Não tinha dormido mais aquela noite, e Júlia soube ao sentir ela rolando do seu lado mais uma vez, a espantando vez ou outra. Achou que apagou em algum momento por exaustão, mas não tinha certeza. Estava ocupada demais imersa em pensamentos intrusivos e inoportunos que sempre culminaram nela sendo escorraçada.
— Quando vai resolver isso? – Júlia perguntou entre um gelo do café amargo, e Ana Clara grunhiu insatisfeita. Estavam só as duas na casa, já que tinham se mostrado de confiança o suficiente para a mãe de Coralina as deixar só em casa enquanto se dividia nas tarefas do trabalho do esposo e elas cuidavam da casa.
— Posso só fingir que nada...
— Não.
— Então não sei, Ju – e se atirou na mesa, cansada.
— Vamos por partes, então – ela colocou a xícara de volta, pegando o prato bem servido do café – quando o assunto é ela, o que vem na sua cabeça?
— Ah, sei lá – ela dizia ainda de cabeça baixa – eu gosto de conversar com ela, de a ouvir, da sua companhia, de ouvir música com ela, de estar perto dela, do jeito que ela mexe a orelha quando...
Levantou o olhar percebendo os olhos gélidos e pouco convidativos de Júlia, que puxou a boca pro lado e voltou a comer.
— Minha mãe diz que isso é estar arriada os quatro pneus por alguém.
— Eu não estou a fim dela, Júlia, não tem nada a...
— Só fica nervosa e sorridente que nem uma idiota quando ela aparece naquele portão – ela apontou para o lado de fora – e faz dois dias que não dorme por causa dela. Sou bem eu – e apontou para o próprio peito – que estou a fim.
— Mesmo se eu estivesse, e ela?
— Para de se enganar, Ana Clara – Júlia revirou os olhos, com a boca parcialmente cheia – acha que ela vem todo dia pra cá pra ficar olhando pra minha cara? Pra conversar com a Cora que ela já passa o dia? Até eu já percebi que ela te olha de um jeito diferente.
— Diferente como? – ela levantou uma das sobrancelhas.
— Sei lá, é diferente, é o mesmo olhar idiota seu que parece que está vendo uma coisa muito importante na frente quando não basta de uma garota qualquer.
— Ah, Ju, não fale assim, ela não é qualquer coisa e...
Deve ter sido a primeira vez que Ana Clara viu Júlia sorrindo, ou melhor, dando um esboço de sorriso, aqueles de canto, tímido. Foi quando percebeu que ela só tinha dito aquilo pra ver a reação de Ana Clara, e tinha caído exatamente como ela esperava. Júlia nada mais disse, e voltou a comer enquanto Ana Clara continuava com a sobrancelha franzida.
— Acha que eu deveria mesmo falar disso com ela?
— Tenho certeza – ela voltou a tomar o café – e quer saber por que? – Ana Clara concordou e Júlia começou a enumerar com os dedos – Um, eu e a Cora temos quase certeza que isso está acontecendo por algum bom motivo que não descobrimos qual e dois, eu preciso dormir um pouco, e contigo angustiada pensando na menina não está dando.
As bochechas de Ana Clara se enrubesceram, e ela abaixou o olhar, fitando as mãos de Júlia segurando a colher ao terminar de comer.
— Mas se eu for falar, o que eu faço?
— Seja sincera contigo, com ela, não sei, beije ela, o que você desejar – ela deu com os ombros – mas não deixa isso passar em branco, sério...Eu acho que é a melhor coisa pra se fazer agora em vez de deixar isso te torturando.
Seu rosto ficou ainda mais rubro, e Júlia segurou sua mão, chamando sua atenção.
— Não te preocupa com o que for acontecer, tá bom? Estou aqui.
E Ana Clara sorriu, indo abraça-la. Júlia não era acostumada com contato físico e ao sentir o abraço, ficou sem reação de primeira, mas logo deu alguns tapinhas reconfortantes em sua costa.
Já na escola, Coralina analisava em silêncio a amiga que estava anotando a esmo alguma coisa no caderno. Primeiro tinha acontecido aquilo da Ana Clara, depois ela foi até a casa dela conversar e Ana Clara agia estranho, mas não pior do que Laura, que nem naquele lugar parecia estar.
Ela engolia em seco, pensativa. Começava a cogitar que...
Não, era impossível, se fosse ela já tinha conversado com ela. Coralina tinha a mente aberta, aceitava o novo e diferente e era até simpatizante das causas, por que sua melhor amiga, se fosse, não falaria pra ela? Não confiava nela o suficiente? Ou tinha medo que contasse pros pais dela ou pra alguém?
Não tinha motivos pra que ela tivesse desconfiança de Coralina, já que elas compartilhavam tantos segredos juntos, e ela jamais julgaria a amiga se ela fosse entendida. Na verdade, a apoiaria em qualquer coisa.
“Olha como elas estão ficando próximas, não acha que isso vai se tornar um problema?” a voz de Júlia veio em um sobressalto em sua memória, e ela respirou fundo.
Em um primeiro momento pensou que fosse mera amizade, assim como a dela e de Júlia. Se ela fosse embora, ela ficaria triste, era inevitável, e sentiria sua falta, logo pensou que o mesmo se encaixava para elas, mas... E se fosse mais do que isso?
Ela olhou de lado para Laura, que encarava o chão, séria.
Sua amiga não estava bem, sabia disso, mas não sabia dizer o porquê. Talvez agora tivesse, mas não tinha coragem de tocar o assunto, mesmo achando que Laura estivesse esperando a iniciativa dela.
A campa tocou, e elas se levantaram. Na saída, Cora pigarreou chamando sua atenção, e ela a encarou.
— Vai lá em casa hoje?
— Não, eu...vou direto pra casa hoje – e acenou de onde estava – até amanhã.
Cora não estava nem um pouco convencida, mas ainda assim, com sua bolsa de mão, seguiu para casa. Estava acontecendo tanta coisa naqueles dias que era até difícil pegar o fio da meada de algum raciocínio. Não sabia se pensava na amiga, nela mesmo ou nas resoluções do quadro com Júlia.
Ao chegar em casa e tirar os sapatos, viu Júlia e sua mãe conversando na sala. Olhou ao redor, e sentiu falta de uma notável figura.
— Onde está a Ana? – disse ela olhando de um lado a outro.
— Saiu pra resolver umas coisas – Júlia comentou a esmo, como se fosse uma coisa qualquer e rotineira e não como algo que ela sempre implicava e, mesmo estranhando, deu com os ombros e seguiu para o quarto.
A algumas quadras distantes dali, Laura olhava para cima, procurando respostas no anoitecer, e as pequenas estrelas cintilantes longe. Só queria chegar em casa, tomar um banho, comer e se enfurnar no quarto procurando ocupar a cabeça com qualquer coisa que não fosse seus próprios pensamentos.
No entanto, ao chegar na esquina de sua casa, viu aquela figura que fez seu coração disparar sem pedir licença. Do outro lado da rua, sentada, balançando os pés calçados de seu tênis preferido, ela olhava de um lado para o outro.
Não tinha outro caminho ou atalho que pudesse ser pego, e antes que pudesse dar meia volta e voltar pelo caminho que veio, Ana Clara a notou. Ela engoliu em seco, e foi a passos lentos até seu endereço. Quando chegou no muro de sua casa, Ana Clara a alcançou.
— É... oi – ela acenou envergonhada – estou atrapalhando? – Laura negou com a cabeça timidamente – Eu queria falar contigo, posso?
Ela olhou para trás, notando que tinha gente em sua casa. Olhou de um lado para o outro, e suspirou, pausando os olhos no rosto de Ana Clara, mas sem conseguir olhar diretamente em seus olhos.
— Vamos andando?
Ana Clara concordou. Suas mãos suavam e ela as tentava esconder, e estava tão entretida consigo mesmo que sequer percebia que Laura engolia em seco, com os braços cruzados para esconder as mãos trêmulas. Sentiram a eletricidade que antes era uma mera faísca cada vez mais forte, e nesse caso elas não se repeliam. Essas ondas as aproximavam ainda mais na caminhada silenciosa que faziam e, ao perceberem, já estavam a centímetros de distância uma da outra.
— Laura, eu sei que as coisas andam...estranhas entre nós e...
As palavras se perdiam na tensão de Ana Clara e sua respiração ofegante, mas ainda assim ela prosseguia.
— Eu só queria te perguntar uma coisa, uma única coisa – ela levantou o dedo indicador – e deixar tudo isso pra lá, e isso seria...
Ela respirou fundo, e deixou o ar sair pela boca para tornar o fluxo das palavras mais fáceis.
— O que você quis dizer com seu problema não ter... solução?
Aquele era um ponto ermo da cidade, onde não tinha fluxo de pessoas e a escuridão era quase predominante, o que tornava as coisas ainda mais tensas. Laura congelou. Sabia o que dizer, mas não queria dizer.
Seus dedos tremiam, sua boca estava seca e ela cerrava os olhos procurando se concentrar.
— Ana Clara, é que... – ela fechava os olhos, como se tivesse medo do pensamento que insistia em censurar – sabe, é melhor deixar isso pra lá...
E sentiu o toque de sua pele contra a dela, segurando a sua mão. Sua mão suave e seus dedos macios roçavam contra as suas, e seu corpo tremeu por aqueles breves segundos, sendo involuntário o pressionar de sua mão contra a dela. Seu ar faltou, e ela levantou os olhos de encontro nos de Ana Clara em meio a penumbra.
— Me responda, por favor – a voz de Ana Clara era emotiva – senão eu não vou dormir mais essa noite.
As palavras de Ana Clara a atingiram com mais força do que esperava, a desestabilizando de seus apoios já fragilizados. Mais essa noite? Ela estava tão aflita quanto ela em relação ao que estava acontecendo entre elas, nessa relação em palavras que nunca são ditas? Então, ela sentia o mesmo que ela.
Ela sentia o mesmo que ela desde o começo, mas nenhuma quis admitir em voz alta. Agora, admitiam do jeito que mais queriam.
Aquilo não era certo, não era moral, não era aceitável. Todos a odiariam se soubessem, nunca mais olhariam em sua cara, ela seria eternamente uma pária e tudo que planejava em sua vida ia por água abaixo.
Mas, quando encarou seus olhos cristalinos e convidativos, tão lindos quanto da primeira vez que a viu, não pensou em nada disso. Na verdade, naqueles segundos, nada daquilo importava.
A única coisa que importava fora o seu passo para frente, seu fechar de olhos e seus lábios indo ao encontro de Ana Clara, que quando os sentiu, recuou para trás com os olhos arregalados e a respiração ofegante entre a boca entreaberta. Aquilo estava realmente acontecendo?
Olhou para Laura, que a olhava de volta do mesmo jeito. Confusa, a respiração desregulada, o... Olhar desejoso, como se não entendesse o que estava acontecendo, mas ainda assim o quisesse.
Só queria aquilo.
E Ana Clara queria o mesmo.
Deslizou as mãos até a nuca de Laura, fechou os olhos e a beijou. E Laura, por sua vez, fechou os olhos e segurou o rosto de Ana Clara, o tocando como se não acreditasse no que estava acontecendo. E sorriu consigo, feliz ao perceber que estava.
Já em casa, Júlia olhava para o quadro de anotações dela com Coralina. Pegou o giz e circulou o nome de Laura e o ligou com de Ana Clara. Ao fundo, Coralina olhava para aquele acréscimo sem dizer nada, e se sentou na cama, encarando-o.
Júlia a olhou pelo ombro, e cruzou os braços, vendo os nomes e hipóteses rabiscados por elas. Coralina, por outro lado, só via suas suspeitas tomarem ainda mais forma, e se viu na obrigação de fazer tal comentário com sua fiel escudeira.
— Você acha que elas são mais do que amigas, Ju?
Ela deu um sorriso irônico consigo, mas tentou o esconder antes de voltar para Coralina e parar ao seu lado.
— Se forem, quais as chances de isso ser um problema?
E deu um olhar pesaroso para ela, que deu com os ombros.
— Enormes.
Júlia colocou o giz de lado, e se dirigiu até a porta.
— Então estamos com um problemão.
E assim saiu, deixando Coralina estática, encarando aos nomes recém-ligados no quadro.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 30/07/2022
O que será que aconteceu...
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