Minha primeira namorada
Minha primeira namorada
É curioso como até hoje eu tenho o impulso de estender a mão, com a palma aberta, e me concentro na sensação do seu toque leve e carinhoso. É interessante essa lembrança: não é a memória de um fato ou de um episódio específico, é sensorial. É como um segredo guardado entre você e a minha pele.
Eu não soube de mais ninguém que tenha se conhecido de maneira tão óbvia e genial quanto você e eu. A troca de olhares confusos e sorrisinhos irônicos durante a primeira aula da faculdade. A sua audácia de parar diante de mim como se eu tivesse lhe chamado.
– Eu conheço você de algum lugar??
A nossa frase. A mesma frase. A primeira fala, disparada, idêntica, tanto de um lado quanto do outro, como se fosse ensaiada. Mas não era. Destino não é algo que se possa praticar com antecedência.
Quase quarenta alunos e um professor, mas a gente já sabia que era diferente e que seríamos únicas. Eu gosto de voltar para aquele primeiro dia, para o primeiro instante. É doce sentir de novo, porque toda vez que eu lembro da primeira troca de sorrisos, não é memória que me ocorre, é amor, sempre.
Passaram-se meses até que eu conseguisse entender o que já tinha acontecido e o que eu queria tanto que acontecesse... Eu ouço a sua risada e vejo o branco dos seus olhos porque sei que, nesse ponto, você iria frisar que eu tinha um namorado e que nós éramos apenas boas amigas. Bem, tecnicamente, isso foi verdade, e foi ele quem colocou uma aliança de compromisso no meu dedo, mas seus papeis estavam trocados: ele que era só um amigo; meu coração queria passar a vida com você.
Lembra quando aquela sua amiga Fátima veio de Porto Alegre pra te ver? Você usou gravata na primeira noite fria de inverno e eu te achei tão absurdamente linda que sequer conseguia acompanhar a conversa da mesa. Você pensou que eu estivesse zangada com alguma coisa e, antes de dormir, fez um carinho no meu rosto e garantiu que a Fátima (que já estava em seu terceiro sono, coitada) não era ameaça alguma para o lugar que eu tinha ocupado.
Só voltei a pensar nessa frase alguns meses depois, quando a ficha caiu, não como um balde de água fria, mas como um banho quente e delicioso: você nunca foi minha melhor amiga, tudo aquilo que a gente viveu foi um torturante e também irresistível processo de conquista. Um preâmbulo. Era o que a gente precisava para juntar forças e superar dezoito anos de heteronormatividade, cristianismo, medo e culpa.
Eu nunca esquecerei nosso primeiro beijo, a adrenalina, a euforia, a emoção, seus lábios trêmulos e nossas respirações entrecortadas. Tanto medo, tanta alegria, tanta entrega no gesto que, se pensarmos bem, nunca parou de acontecer. Enquanto ambas somos capazes de lembrar tão bem daquele dia, ele se repete. Ele existe fora da linha do tempo, em um nicho à parte, como um GIF da cena em servidores do nosso coração.
Não foi apenas o beijo, foi a dança ao luar, sob a garoa, e você sussurrando versos de The Music of the Night ao meu ouvido, antes de rodopiarmos, corrermos, ora desviando das poças, ora pisando nelas de propósito.
Nunca duas amantes foram tão felizes por cruzarem a Avenida Presidente Vargas de mãos dadas. Nunca uma despedida que era só até a manhã seguinte doeu tanto, e o rangido lamurioso do portão verde da sua casa se estendeu, hesitante como você e eu, indeciso sobre se abrir ou se fechar, como nossas pálpebras durante o derradeiro toque dos lábios.
Nos anos que se seguiram, só de ouvir sua voz eu tinha o fôlego roubado. Muitas coisas mudaram e nenhuma foi mais difícil pra mim do que o seu novo endereço. Mas a cada reencontro ou despedida diante da porta de um ônibus, você ampliou sua capacidade de fazer o resto do mundo desaparecer durante beijos cálidos e abraços infinitos. Com você tenho o conforto e a ousadia de sempre ser eu mesma e jamais estivemos no mesmo ambiente sem essa noção poderosa e apaziguadora de que nos pertencemos.
Meu bem, eu errei tantas vezes. Eu te feri. O tempo foi passando e, algumas vezes por teimosia, tentamos nos esquecer. Mas mencionar a passagem do tempo me leva para aquela dança lenta, à meia-noite, debaixo dos fogos de artifício na praia de São Lourenço. Nos seus braços eu me senti em casa. No seu ritmo eu me senti em paz.
Hoje não importa que não vivemos juntas, porque os nossos momentos compartilhados ainda existem. Ainda rodopiamos, às gargalhadas, pelas calçadas de Santa Maria. Ninguém tirará de nós o marco do primeiro beijo de amor eterno, da paixão juvenil que foi loucamente correspondida. Há muito de você em quem eu me tornei e vice-versa. No mais, trilhamos os caminhos que a vida ofereceu.
Obrigada por ter sido minha primeira namorada. Obrigada por ainda me deixar tão orgulhosa e me fazer tão feliz. Quando adolescente eu ouvia sobre amor infinito e achava que era sinônimo de nunca terminar um relacionamento. Que bobagem! Tudo tem prazo de validade nessa vida. O segredo foi usar o tempo que tivemos juntas para criar memórias que jamais se perderão.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 14/07/2022
Bom dia Carol.
As lembranças nos fazem viajar.
Resposta do autor:
Bom dia, Lea, tudo bem?
Muito obrigada pelos seus comentários tão gentis.
Quero responder a todos com zelo.
Eu amo recordar das coisas, e essa história foi um primeiro exercício de escrever dessa forma.
Considero ter tido muita sorte nesse primeiro amor.
Foi tudo o que eu poderia sonhar e foi com alguém que admiro até hoje.
Ainda mantemos contatos esporádicos, respeito e admiração.
Um abraço, Carol
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Rosa Maria
Em: 04/07/2022
Carol...
Belo conto me fez reviver lembranças...afinal o primeiro namoro pode ter sido bom, ruim, avassalador ou ter realmente descoberto o amor, no entanto pode tudo menos ser esquecido, mesmo que tentemos...
Beijo
Rosa Maria
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