Açafrão do Prado
Capítulo 17 – Açafrão do Prado
“Os melhores dias estão no passado”
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Laima
O vento balança o galho que pouso e traz consigo a humidade, todas minhas penas arrepiam-se no aviso de uma chuva que logo vai cair. Odeio a chuva, não só pelo fato de molhar e pesar em minhas asas fazendo o voo difícil, mas...a odeio pois sempre chove quando dentro de mim quer chover.
Viro a cabeça, olhando o movimento abaixo de mim, as pessoas passam apressadas, algumas com lugar para ir, outras andando devagar sem rumo, sem vontades. Talvez eu seja uma dessas do segundo grupo, no meu futuro nada me aguarda que não o meu desejo de alcançar o fim.
Alma salvara minha vida tantos anos atrás que não sei contar, naquele dia também chovia, mas a água que caía do céu não era o bastante para apagar o fogo que consumia tudo que me era importante.
Se ela, a bruxa que sirvo, não tivesse aparecido, assim como aquele gato e Whisper, teria me atirado no fogo e daria um fim a tudo. Parando para pensar, é engraçado como são as chamas que nos une, tanto Alma e eu e quase metade dos pedidos que aceitamos acabam em uma fogueira.
Gotas gordas começam a pingar dos céus, todos os pedestres ali embaixo, mesmo aqueles sem rumo, apertam o passo em direção a sabe-se lá onde. O cheiro de asfalto e terra molhada encobre todo e qualquer odor para mim.
Mais uma vez me identifico com as pessoas sem rumo e bato as asas, levantando meu corpo no ar, mas diferente deles, hoje tenho um rumo. Com um movimento de asas decisivo, alcanço os céus, voando em frente, desviando quando consigo dos pingos que caem em pequenos intervalos mas em grandes quantidades. O prado não está muito distante, mas infelizmente estou molhado o suficiente para meu corpo pesar mais do que devia.
Ainda sim, voando torto e baixo, alcanço meu destino, encontrando as pequenas flores roxas próximas ao chão. Não paro, em um rasante passo por entre as flores, arrancando duas em meu bico.
A chuva aumentara de forma a me obrigar a parar e me abrigar entre os galhos de uma árvore, chacoalhei-me segurando bem firme as flores, que assim como eu, livrara-se das gotículas de água.
Outros pássaros também encontraram proteção entre as folhas, pardais e pombos, em dias com o tempo fechado e molhado, as aves ficam mais quietas, vez ou outra consigo perceber em seus cantos pequenas palavras ou frases, geralmente cantam atrás de suas parceiras ou parceiros, para avisar de perigos ou sobre o tempo. Seu idioma não é entendido por outros animais, cada um tem seu meio de se expressar, de nós, pássaros, é o canto. Mas nesse momento, tudo está quieto, só posso ouvir o som da chuva e essa melodia não me agrada.
Mexo-me levemente, um pequeno pardal pia, perguntando-me se realmente enfrentaria a tempestade, com um pequeno som dos meus bicos bem cerrados, afirmo e levanto voo, preciso enfrentar a tempestade.
Mesmo na dificuldade, alcanço a casa que divido com Alma mais rapidamente do que gostaria. A janela aberta para mim, passo direto ao meu poleiro.
⎯ Finalmente resolveu ser o cliente do próprio negócio? ⎯ Alma, sentada na mesa da cozinha a minha frente pergunta.
Não eram somente meus sentimentos confusos aquela manhã, ela segura sua caneca de café com as duas mãos, as costas caídas com o cabelo preso em um rabo de cavalo baixo, caído sobre seu ombro direito. Chacoalho-me mais uma vez e vou até ela, deixando as flores poucos centímetros de suas mãos.
⎯ Está bem? ⎯ pergunto, pendendo a cabeça para olhar em seus olhos.
⎯ Sim...é só...⎯ solta a caneca, pegando uma das flores, girando-a, analisando-a. ⎯ Tive um sonho essa noite.
⎯ Acha que pode ser algo?
⎯ Não tenho certeza.
⎯ Com sua experiência?
⎯ Pode ser que sim, mas também pode ser que não. Mas...⎯ solta a flores, suspira e levanta-se apoiando as mãos na mesa. ⎯ Vamos mandar você para onde deseja. ⎯ Como de costume, retira seu punhal de dentro do seu bolso juntamente com um pedaço de giz. ⎯ Laima, não irei com você, tenho plena confiança de que saberá se cuidar e voltará, porém... sabe as regras, não é?
⎯ Não influenciar nada que possa alterar o meu ou o destino de alguém. ⎯ respondo prontamente, depois de todos esses anos ainda não entendi os motivos dela ao criar essas regras.
⎯ Para qual data? ⎯ pergunta-me riscando o chão.
⎯ Doze de fevereiro de mil novecentos e quarenta e cinco, a hora não importa.
Recuso-me a pensar demais, se considerar demais a ideia, não irei, mas também não sei o motivo de querer ir, talvez possa resolver esse sentimento, ou é só isso que quero acreditar.
Alma termina de riscar o chão, sem precisar me avisar, plano da mesa até o centro do círculo, sem demonstrar emoção, corta a palma de sua mão, o cheiro de ferro inunda minhas narinas, como sempre, enjoando-me. Ao que tudo começa a girar, ouço-a dizer:
⎯ Como não irei com você, tem apenas cinco horas.
Sua voz ficou para trás, girando em círculos como todo o mundo e aquela realidade, assim como, pela primeira vez, o chão sob meus pés. Logo que meus instintos retornam, percebi que estava caindo, mas o bom de ter asas é isso. Ajeitei-me devagar e pouco antes de atingir o chão, bato as asas.
A temperatura ambiente está gelada, me encontro na Alemanha em pleno inverno, antigamente isso era tranquilo, mas faz muito tempo que não vejo neve e o frio que ela traz.
Nessa época, nenhuma árvore consegue te proteger aqui, de forma que voo até o local que conheço muito bem. No meio do nada, da paisagem branca, a casa se ergue, uma casa grande de tijolos vermelhos, janelas altas de madeira e vidro, a chaminé trabalhava, fumaça sobe de dentro da mesma.
Aproximo-me do telhado e percebo alguém deitado em cima de toda a neve, alguém que não queria encontrar e que me vê também. Seu olhar curioso me observa, senta-se e me espera aproximar.
Agora é tarde para tentar não alterar nada, a memória de estar ali vendo um pássaro idêntico a mim se aproximar anos atrás, no inverno de 1945, surge em minha mente.
Alcanço o telhado, pousando de frente a mim mesmo na minha versão adolescente e ingênua, agora sei como Alma se sente a encontrar consigo mesma, mas pensei que estaria de boa com isso, uma vez que sempre que Alma se vê com sua outra versão, também vejo a mim...a diferença aqui é que essa versão que me encara de volta não passou por nada e nem sabe de nada e muito menos saberá por seu outro eu.
⎯ Você...sou eu? ⎯ pergunta depois de me avaliar por uns segundos.
⎯ Podemos ir para um lugar mais quente antes de fazer isso? ⎯ peço a mim mesmo, que assente com a cabeça, também se tornando um pássaro.
Observo as diferenças entre eu de agora e ele, suas penas são coloridas, vívidas e alegres, bem cuidadas, um belo pássaro. O sigo para onde sei bem, um pequeno buraco no telhado de madeira que leva ao sótão. Entramos e sacudo meu corpo, tirando tirar toda a neve derretida, pousado em uma pequena madeira que sustenta o telhado, estufo o peito aconchegando a cabeça, a fim de me esquentar.
⎯ Nosso nome continua o mesmo? ⎯ indaga voltando a forma humana, de trás de algumas malas velhas, puxa uma muda de roupas que sempre estão lá para essas horas.
⎯ Laima. ⎯ digo observando-o do meu poleiro mais alto que ele, no chão olhando para cima. ⎯ Meu nome é Laima.
⎯ Um nome engraçado. ⎯ passa mão nos cabelos escuros, na tirando a neve. ⎯ triste, quase...mas interessante. ⎯ abre um largo sorriso. Eu conseguia sorrir assim?
⎯ Como estão todos nós? De onde você vem?
“Mortos”, queria responder, mas ao invés disso, apenas fujo da pergunta.
⎯ Não posso dizer, não seria interessante para você, o melhor é esperar e ver. ⎯ Seu sorriso aumenta enquanto pensa na minha resposta, no fim, fui aquele rapaz, sei o que lhe dizer.
⎯ Tem razão! Mas...⎯ seu sorriso diminui. ⎯ Parecemos tão tristes, coisa boa não é.
⎯ Não tenha certeza disso. ⎯ não posso estragar sua felicidade, não por enquanto.
⎯ O que faz aqui? Por que eu voltaria até aqui do futuro? Quer mudar alguma coisa?
⎯ Não venho mudar nada e nem te dizer nada, apenas...queria rever o passado, não é algo que faríamos?
Mais uma vez pensa na minha resposta e novamente sorri. Aquele eu deve ter dezessete anos, vivendo seu primeiro e único amor, tem amigos e o que chamaria de lar.
⎯ Sim! ⎯ fala alto e animado. ⎯ com certeza teriam dias que gostaria de viver novamente!
⎯ Edren? ⎯ A voz que o chama faz minha mente girar, meu estômago doer, meus arrependimentos aflorarem...não posso, não posso fazer nada. ⎯ Com quem está falando aí em cima?
⎯ Posso dizer a ele? ⎯ sussurra para mim, movimento a cabeça negativamente. ⎯ Com ninguém! ⎯ grita de volta. ⎯ Já vou descer! ⎯ Vira-se para mim. ⎯ Vai embora?
⎯ Sim, daqui a pouco. ⎯ a dor que sinto transparece em minha voz.
⎯ Quer...quer vê-lo? ⎯ diz tristemente. ⎯ Pela sua reação, não ficamos juntos, não é?
⎯ Não posso te responder ⎯ sussurro trêmulo demais.
⎯ Vá vê-lo! ⎯ incentiva com uma amabilidade que nem sabia que tinha. ⎯ Não sei o que vai acontecer, pelo que vou passar até chegar em você, mas não se preocupe, isso não vai me desanimar! Nesse momento dei-me conta de que é primordial que deva prezar meu presente para tentar te dar esperanças no seu futuro.
Na verdade, quero gritar, me avisar para impedir tudo o que vai acontecer, mas não posso, não seria justo comigo, não seria justo com Alma e nem com as pessoas que aceitaram seu destino. Agora, entendo um pouco os motivos das regras que ela nos impõe.
Não recuso sua oferta, jogo meu corpo para baixo, voando num rasante para fora do sótão, para a pessoa que mais quero ver! E logo na saída, lá está ele, vou de encontro ao seu peito, movimento que pode tê-lo machucado e até assustado, mas me recebe com carinho.
⎯ O que foi? ⎯ sua voz é baixa, com entendimento e sinceridade.
Não posso responder, não quero falar e ele entende. Aos poucos me ajeita em seu pulso e me afasta, para que me veja melhor e com isso, posso admirá-lo também. Seus olhos vermelhos que os condenaram como demônio, seu cabelo loiro bem aparado em um corte militar, nesse dia, comemoraremos o dia dos namorados e seu aniversário de dezesseis anos.
⎯ Está diferente hoje, suas penas estão mais escuras, está doente? Quer cancelar os planos? ⎯ Nego com a cabeça. Os gêmeos nos farão um jantar, arrumarão a sala de jantar com enfeites de aniversário e ao mesmo tempo um toque romântico para que depois do jantar de namorados, comemoremos todos juntos seu aniversário. O pequeno Theo dará a ele um desenho do nosso dia de ontem e veremos o quão bem ele desenha, será um dia incrível. ⎯ Tudo bem então. ⎯ Senta-se no chão cuidadosamente, cruzando as pernas, encostando-se na parede.
Seu cheiro, seu rosto rosado e vivo e tranquilo, sua respiração, ah! Como sinto sua falta! Como quero protegê-lo de tudo! Um gemido triste escapa de meu bico. Delicadamente, leva seu dedo indicador em meu rosto, acariciando-me. Ah! Esse seu toque! Choramingo mais uma vez.
⎯ Shhh. ⎯ Sussurra. ⎯ Está tudo bem, vai ficar tudo bem. Quando me sinto assim, nada melhor que sua companhia, então espero que possa ajudá-lo.
Você não tem noção de como ajuda, não poderia saber, suas inseguranças o impedem disso. Não tem ideia de como queria salvá-lo de seu passado e seu futuro, mas não posso.
Permito-me desfrutar desse momento por mais alguns minutos, não quero contar o tempo, não quero voltar, mas vim até aqui para tomar uma decisão, a decisão que preciso por mim e por Alma, pelo meu futuro e o dela.
⎯ Você me deu a confiança que precisava, Damon. ⎯ Digo-lhe. ⎯ Espero te dar a confiança que precisa em troca.
⎯ Ora, sua voz está mais madura. Estava treinando as cordas vocais ali em cima? ⎯ Ele sorri, mas ali, naquele momento, aquele seu sorriso não é como todos os outros que já me dera, não há traços de tristezas, é um sorriso sincero e repleto de amor. E Então, entendo, seu sorriso mudara há tempos, só nunca havia percebido pois sempre estou preocupado demais em ajudá-lo.
Não respondo, não digo nada, movimento minhas asas e voo até o sótão novamente, deixando-o ali, surpreso com minha reação e com dúvidas.
Novamente no sótão, paro um momento, pousando de frente a minha versão mais jovem, que nos olhava daqui de cima.
⎯ Você viu aquilo? ⎯ pergunto-lhe.
⎯ O sorriso dele? Sim, eu vi.
⎯ Então pare de pensar demais. Proteja aquele sorriso, não tente criar outros desnecessários. É a única coisa que te peço, do futuro para o passado.
Não espero para ouvir mais nada de mim mesmo, saio pelo buraco do telhado por onde entrei, encarando a neve, o frio, encarando minha chuva, recebendo dentro de mim as memórias que criei ali, modificando essa parte da linha do tempo.
Meus melhores dias, estão sim no passado, e precisava rever para entender o que quero do nosso futuro, Alma.
Fim do capítulo
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