É meninas, a história tá chegando ao fim, antepenúltimo capitulo. Nesse capítulo a protagonista finalmente entende a situação de abuso que está inserida... Pra quem estiver em uma situação assim, saiba que sempre há uma saída.
Capitulo 10 - Grudada na pochete
O começo do fim foi por causa de uma trilha.
Eu estava com muita vontade de entrar em contato com a natureza. O fim de semestre junto com as férias do trabalho já estavam chegando e eu já tinha um tempo livre. Propus subirmos o morro aqui perto de casa, você topou, combinamos de subir no sábado, bem cedinho, já que o verão já estava quase a pino, o sol castigava depois das dez horas.
Na quinta feira, um dia depois da briga por causa do rancho do mês, você me informou que tinha convidado sua amiga para a trilha. Eu pensei, somente pra mim, que eu queria fazer a trilha só com você, porque estava muito cansada do fim do semestre, mas, logo já relevei, porque amizades são sempre boas. Falei pra ti que tinha sido uma boa idéia e já disse para passar para ela as coordenadas.
Na sexta feira, eu saí para você fazer sua consulta com a psicologa por videoconferência e aproveitei para conversar com uma amiga, a qual comentou que estávamos há meses de marcar alguma coisa e nunca marcávamos. Concordei, que coisa! Me veio a mente que seria uma boa ideia convidar ela pra trilha também. Convidei, ela disse que já tinha marcado um rolê com um amigo, se eu topasse, ela convidava ele e iamos todos juntos.
Pensei que talvez fosse demais, muita gente, aglomeração e tal. Previ que você não gostaria, mas mesmo assim, comentei com você sobre o convite e sobre a terceira pessoa que poderia ir conosco, perguntei se você toparia. Você falou que não era uma boa ideia e fechou a cara. Inventei para a minha amiga uma desculpa tola, do porque o amigo não poderia ir. Me senti mal a cada palavra que eu dei. Eu estava mentindo para uma amiga, por causa de você.
Antes acabasse por aí, a confusão. Mas você ficou com a cara fechada e me dando patadas durante todo o café da tarde. Uma hora tive que perguntar o que tinha acontecido, afinal, não sou muito chegada em ficar apanhando, ainda mais sem saber o porquê.
Você disse que eu tinha convidado a minha amiga sem falar para ti. Eu concordei, não falei mesmo, mas falei também que nem tinha pensado que isso poderia ter ser um problema. Você debochou de mim. Depois disse que eu não te respeitei.
Falei que se você não gostou dessa logistica, eu poderia fazer de outra forma na próxima vez, mas que, mesmo assim, não tinha justificativa alguma para você ficar assim. Berrando, dissesse que ninguém, nunca, jamais, iria passar por cima de você e que se eu te desrespeitasse, você não ia ficar calada.
Eu levantei e fui pro quintal, esfriar a cabeça. Pensando ainda na tua condição, sabia que eu não podia ficar prolongando muito aquilo, corria o risco de ficar pior. Você berrava a mesma coisa, bem alto para eu ouvir no quintal, em determinado momento disse que ia dar uma volta, se arrumou e saiu. Voltou ainda alterada e foi rude comigo.
Categórica eu disse que não existia nenhuma justificativa para você estar me tratando daquele jeito, como se eu fosse uma criança insolente e que, aliás, você mesma tinha convidado sua amiga sem me informar e eu entendi que é mais importante a companhia do que pequenos protocolos.
Você não recebeu bem, mais alterada, berrava que não tinhamos jeito mesmo, que tu não ias mais fazer trilha nenhuma, se eu quisesse eu que fizesse com minha amiga e que você não queria mais saber. Doeu em mim, pq eu já tinha dispensado minha amiga por sua causa e também porque eu queria muito fazer a tal da trilha... Precisava do contato com o mato!
Nessa hora eu já estava borbulhando de raiva, louca pra berrar de volta e cansada de ouvir os absurdos que você falava... Nessas horas você começava a argumentar as coisas mais tolas, sem nexo, somente para me tirar do sério, para depois falar que quem se alterou era eu. Eu não cairia mais nesse jogo.
Tomei um banho gostoso, fui para o quarto e abri meu pc para escrever tudo o que eu sentia, para a raiva passar. Nisso você entrou, arrogante, sem nem me olhar. Fuçou em algo nas gavetas e saiu. Eu continuei escrevendo. Deu alguns minutos, você voltou com uma pilha de roupas suas e ficou dobrando na minha frente.
Preciso de espaço, eu disse. Por favor, me deixa sozinha aqui no quarto, preciso de espaço para passar a raiva, eu não quero aumentar a briga. Você me encarou, lá do alto da sua arrogância, com o nariz empinado. Jogou algumas roupas no chão e daí começou a surtar novamente.
Jamais vou esquecer, você na porta, berrando para mim, que estava sentada na cama com notebook no colo: Porque você não termina comigo, ein? Se eu sou descontrolada? Porque você não termina comigo, se tem tanta gente interessante nessas tuas redes sociais? Porque você não termina comigo, se eu faço tudo de ruim? Porque você não termina comigo, se eu só durmo, fumo maconha e te atraso a vida? Porque você não termina comigo, se eu não sou influencer? Porque você não termina comigo?
Eu comecei a chorar de raiva, tudo o que eu queria era um espaço para respirar, para não brigar mais, me concentrei no que eu escrevia e tudo que saía dos meus dedos é "que raiva, que raiva dessa mina, que raiva, porque ela não me deixa em paz, que raiva" e repetia aquelas palavras, eu tentando me afastar das coisas que você falava. Eu odiava pensar em terminar contigo, porque eu te amava demais.
Aí você falou a frase que conseguiu me atingir em cheio: "Porque você não termina comigo? A minha mãe tem razão mesmo, você não me ama de verdade".
Pronto.
Você conseguiu o que queria. Pensar que a tua mãe tinha falado aquilo de mim, só me fazia pensar em quais absurdos você falava para ela de mim. O que será que você falava de mim para ela, já que ela morava há tantos quilometros, e eu tinha conhecido ela e estava tudo bem? O que será que você disse para ela para ela achar que eu não te amava? Se tudo o que eu te dei foi amor, devoção, apoio, compreensão e muita, muita, muita paciência e fidelidade.
Eu falei que se tua mãe pensava isso de mim, então ela tem razão, "tá tudo terminado!". Obvio que eu não queria dizer aquilo, eu estava muito estressada e magoada com tudo o que você tinha falado. Me arrependi no mesmo momento que saiu da minha boca, mas agora já tinha dito.
Aos gritos você disse que não acreditava que eu tava terminando com você por causa da sua mãe. E eu falei isso, falei que não sabia o que você falava de mim para ela, para ela falar aquilo pra ti. Então era melhor terminar, afinal, se tua mãe achava isso, ela devia ter razão. Eu não acreditei em nenhuma palavra que eu disse, mas eu tava um rio de nervos.
Nesse momento aconteceu aquela transformação, você foi ficando vermelha, muito vermelha, sobrancelhas juntas e boca alongada. Em um berro gutural, você repetia que não acreditava nisso. Começou a espumar pela boca, a baba caindo no chão.
Minha primeira reação foi pegar meu celular o mais rápido possível, que estava ao meu lado, coloquei entre minhas pernas, para, caso você quisesse pegar ele, como você já tinha feito em outra discussão, você não conseguisse. Eu senti o mesmo medo das outras brigas, gelei a espinha. Me agarrei na cama e congelei.
Você repetia a mesma frase sem parar, pulou no mesmo lugar algumas vezes, depois socou a porta. Socou várias vezes a cômoda, até ela ceder e quebrar. A TV que ficava em cima dela, quase caiu no chão e eu achei que você ia quebrar ela. Mas não quebrou, pegou uma garrafa d'água e bateu com ela várias vezes na cômoda, já quebrada, e começou a voar água para todo lado.
Você parou, urrando, e me perguntou se eu ia mesmo terminar contigo, porque você ia quebrar tudinho que tivesse dentro dessa casa. Pensei em todas as coisas minhas e tudo que compramos, tanto dinheiro jogado fora. Pensei que depois de você quebrar a casa, você iria vir me quebrar.
Não, não quero terminar, eu disse. Falei da boca pra fora, jurei. Senta aqui na cama, vamos conversar. Aos poucos você foi se acalmando, o rosto voltando ao normal. Meu celular ainda estava no meio das minhas pernas, escondido. Eu não parava de pensar em nenhum momento nele. Depois de uns minutos, sugeri que fumassemos um baseado. Não queria fumar, de jeito nenhum, mas sabia que iria te ajudar, a acalmar a raiva.
Você concordou, eu disse para você dechavar. Enquanto isso, corri para o armário e peguei minha pochete. Verifiquei que tinha bastante bateria no celular. Peguei também o outro celular que eu tinha e coloquei junto com meu dinheiro e documentos dentro da pochete. Prendi ela na minha cintura, já que minhas roupas mal tem bolsos. Ali tava a minha garantia de vida. Qualquer coisa que acontecesse eu ligaria para alguém da minha família.
Aguardando você fechar o baseado, pensei no que eu faria. Você tinha acabado de ameaçar quebrar tudo, inclusive o que era nosso, inclusive o que era meu. Eu não sou trouxa, sei o que vem depois de quebrar tudo que é coisa, vem quebrar tudo que é pessoa.
E foi assim, sentada na mesa da sala, pensando no que eu faria para sair dali, com dois bichinhos, com muitas coisas ali que eram minhas, com as minhas plantas, do dia pra noite, como eu já tinha feito em outro relacionamento abusivo que encontrei a saída. Dali de onde eu estava, eu via só suas pernas do local onde eu estava e então me veio aquela música da Elza na minha cabeça...
"Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo se você se aventurar
Eu solto o cachorro
E, apontando pra você
Eu grito péguix guix guix guix
Eu quero ver você pular, você correr
Na frente dos vizinhos
'Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim"
Era isso, eu tinha que ligar para o 180, não importa que você fosse mulher. Você era muitas vezes mais forte que eu, e ainda mais, quando entrava num surto, seu soco era como uma bomba. Minha ficha caiu na hora e eu percebi, só então, na merd* de relacionamento abusivo que eu estava inserida.
De novo.
Dessa vez, com um mulher. Não importou mais, a partir daquele momento, que você tivesse um transtorno não tratado. Agora não era mais a hora de pensar em ti, enquanto eu estivesse com você, eu estava em constante risco. Quem quebra uma janela, uma cadeira, segura meus pulsos, me tira o celular para não falar com ninguém, joga meu carro em uma árvore, me isola da minha família e ainda por cima, quebra uma cômoda e ameaça quebrar tudo, caso eu termine isso... Quem faz isso tudo, facilmente me atingiria.
Foi um soco, um soco forte no meu estômago, ao mesmo tempo que encontrei a saída, descobri o caminho perigoso que eu trilhava, descobri o sufoco que eu vivia. Você terminou de bolar o baseado e fomos para o quintal. Pensar em fumar, embrulhava ainda mais meu estômago. Agora eu entendia porque eu tava fumando tanto, eu tava novamente me anulando por outra pessoa, me inserido no ciclo danoso do abuso e minha mente urgia pela fuga... A fuga perfeita que sempre foi, a droga.
Fingi que fumei, colocava o baseado na boca e não tragava, passei pra ti e você fumou ele todo. Eu estava super desperta. Com os celulares na pochete, colados em mim. Pensando no que eu faria, como eu faria, quando eu faria. Eu só pensava que precisava garantir a minha vida, garantir o bem estar dos meus bichinhos e que todos os meus pertencer ficassem inteiros. Nós todos, sobreviventes da bomba relógio que você tinha se tornado.
Terminasse de fumar e foste pra cama, mas eu não tinha sono, ainda não tinha pensado exatamente no que fazer. Mandei mensagem pro meu melhor amigo, falei o que tinha acontecido. Disse que não ia dar mais, que tinha entendido tudo, que eu tinha que terminar, mas não sabia como, só sabia que naquela hora não era bom. Ele me apoiou, ele me acompanhou por várias dessas brigas, ele disse que eu tentei ao máximo, que a partir do momento que eu sinto medo, não é mais para estar ali.
Depois de um tempo você levantou, disse que não conseguiu dormir. Foi fumar outro baseado, eu disse que não queria. Voltasse, lesada, capotou. Nessa noite eu dormi com você, na cama. Coloqueia pochete embaixo do meu travesseiro, no vão entre a o colchão e a parede. Sabendo do nosso fim próximo, te abracei e senti cada centímetro da sua pele. Enrosquei meus pés com os teus, senti teu calor. Cheirei seu pescoço, acariciei seu cabelo. Chorei muito. Não conseguia parar de pensar, sabendo que logo mais não te teria mais comigo.
De manhã fomos para a praia. No caminho, você pediu desculpas pela noite anterior, disse que jamais quebraria as nossas coisas, porque elas eram também minhas. Eu não acreditei em nenhuma palavra sua, sabia muito bem que, naqueles momentos de surto psicótico, você era capaz de tudo. Eu vi com meus próprios olhos. É claro, eu estava com a pochete, com os celulares carregados, tudo junto a mim.
É trágico porque eu ainda pensei que poderia ter alguma solução, naquela manhã. Meu coração, ainda perdidamente apaixonado por você, tentava encontrar novas desculpas para persistir. Pensava em como era bom ir na natureza com você, que perderia isso. Mas, como a vida não tarda a nos lembrar, você me tratou mal na praia.
Primeiro, perguntou para qual lado da praia eu queria caminhar naquele dia. Eu disse para a esquerda. Assim fomos. Em determinado momento, você disse que não queria ir para aquele lado, que ia ficar sentada na areia esperando eu ir e voltar. Eu disse que tudo bem, que ia lá e já voltava, para fechar a meta. Acho que não era essa resposta que você queria, porque bufando, você disse que ia embora então, virou as costas para mim e me deixou sem entender nada.
Veja bem, você tinha deixado eu escolher o roteiro, para depois desistir, depois apresentar uma solução, eu concordar e daí você mudar completamente de jeito e me deixar sem nenhuma explicação. Não era muito mais fácil você ter dito desde o início que queria fazer o caminho x e propor para mim?
Eu perguntei para ti, para repetir o que você tinha falado. Você disse que ia embora. Eu disse que eu também ia embora. Dessa vez, certa que não tinha mais como estarmos juntas. Se nem depois de um surto como da noite anterior, você tinha o cuidado de valorizar minha presença, não ia ser insistindo naquele relacionamento que isso aconteceria. Eu tinha que terminar. E iria fazer isso logo depois do almoço.
Fosse o que Deus quisesse.
Fim do capítulo
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