Memórias de um passado interrompido
Eu não sei exatamente quando me trouxeram até aqui ou o porquê. Tenho memórias difusas de meus pais aos cinco anos de idade, antes de ambos contraírem tuberculose e morrerem à míngua no barracão velho em que gastávamos nossos dias.
O que eu me lembro, porém, foi do que se prosseguiu à perda da minha família. Euler Christol me achou por um acaso fortuito e me integrou junto ao seu projeto para crianças órfãs. Eu, Aylan Rafwen, me tornei uma das pupilas de sua majestosa criação aos 5 anos de idade.
Mas foi aos sete que conheci a pessoa responsável por mudar minha vida. Me encantavam os guerreiros imponentes e majestosos, eu ansiava para me tornar um também. Insisti para entrar no grupo de jovens guerreiros mal havia completado minhas sete primaveras, e foi lá que conheci Gillani Gaspez.
Éramos as duas mais jovens de todo o conjunto de lutadores de nível básico. Nossa idade era próxima; Eu era cria do começo de outubro e Gillani, do fim de novembro. Tudo isso, somado ao fato de nutrimos juntas um ódio pelo professor Eriwan Gehl, fez com que uma amizade forte surgisse entre nós.
Me lembro de quando o mestre Gehl tentava nos humilhar; Nos apoiávamos e lembrávamos uma a outra de que éramos maiores do que isso. Gillani era simplesmente incrivel para uma criança de sete anos de idade, mas Eriwan não reconhecia isso. Cabia à mim levantava a auto estima de minha melhor amiga.
— Você é muito rápida! — Eu dizia logo que ouvia o pranto de Gaspez. — E muito forte também!
Quando nossos colegas a apelidaram de "Serpente" — Por simplesmente ser magra e alta, esguia como o animal. — Fui eu quem estive do seu lado a dizer-lhe que não havia problema nenhum em ser uma serpente. Eu a dizia que serpente era um animal formidável, ameaçador e misterioso, tal como ela. No início, o apelido ainda incomodava Gillani, mas ela logo o incorporou; Gillani Gaspez era, aos nove anos de idade, conhecida por Serpente — E adorava isso!
Quando recebeu a notícia de que a mãe fora encontrada morta — Gillani, diferente de mim, fora deixada na organização de crianças orfãs por livre e espontânea vontade pela própria mãe. Ela inicialmente tinha, como alguns de nós, familiares vivos. —, eu estive ao seu lado também. Foi um árduo processo mas, aos poucos, ela conseguiu seguir em frente sendo tão órfã quanto eu.
Mais tarde fizemos dez anos e pudemos realizar nosso primeiro teste para subir de nível. Ela passou, como eu sempre soube que passaria, eu acabei reprovando. E Gillani esteve do meu lado quando eu me senti uma inútil fracassada.
— Você é incrível! — Dizia Gillani, alisando meu cabelo. — Eu gostaria de ser como você um dia.
No teste seguinte, eu passei, e comemoramos somente eu e ela. Foi um momento verdadeiramente forte para nossa amizade: Juntas nos momentos tristes e nos momentos ruins.
Aos doze anos, fugimos do albergue pela primeira vez, e conseguimos fazer o dono de uma sorveteria nos dar sorvete de graça. Voltamos para nosso quarto de barriga cheia e felizes com nosso feito. O repetimos mais vezes.
Aos treze, Gillani — Ou Serpente. — já estava no nível avançado, enquanto eu seguia no intermediário. Isso não abalou nossa amizade; Muito pelo contrário, boa parte de nossa adolescência se pautou na troca de boatos entre ambos os lados.
Aos quinze, eu comecei a me interessar por meninos, mas Gillani não me acompanhou nisso. Quando eu a perguntava, ela era categórica:
— Eu simplesmente não vejo graça em garotos.
Achei que fosse uma questão de tempo, ou talvez ela estivesse focada demais em seu treino para se preocupar com rapazes — Havia os que diziam que ela iria se tornar mestre antes dos dezoito anos. — Mas as coisas entre nós começaram a ficar estranhas. Gillani começou a agir estranho perto de minha presença e nossas conversas não mais fluíam tão naturalmente.
Até que ela me disse, sem rodeios, e eu finalmente entendi:
— Talvez eu sinta algo a mais por você.
E aquilo foi, para mim, como um baque. Eu ouvia boatos de garotos que se interessavam por outros garotos, sempre de forma cautelosa e condenatória, mas nunca chegou até o meu conhecimento sobre garotas que se envolvem com outras garotas. Eu fiquei assustada no começo, porque não queria aquilo para a minha vida, mas naquela noite tive doces sonhos com as feições de Gillani: Seus lábios grossos, cabelos encaracolados, pele morena e olhos escuros…
Eu não sei quando foi que decidi dar voz à esse amor. Só sei que um belo dia resolvi fazer uma visita ao seu quarto e me encontrei completamente hipnotizada pelo negro de sua íris. Agarrei-a em um voraz beijo e, naquele dia, tivemos o primeiro contato íntimo da vida de uma mulher; Tudo aquilo era uma novidade deliciosa, tanto para mim quanto para ela.
No dia seguinte, eu acordei completamente apaixonada e certa de que o que havia entre nós era especial. Ela despertou ao brilhar da luz do sol e, com a voz sonolenta, murmurou para mim:
— Eu quero passar a vida inteira ao seu lado, Aylan.
E eu só queria que aquele momento tão caloroso entre nós durasse para sempre.
Mas, como é de se esperar, ele não durou. Não durou porque eu fui tola; Contei a alguns amigos que estava me envolvendo com uma mulher. E comentários maldosos não faltaram. “O que você está fazendo, Aylan?” Eles me disseram. “Vocês são duas garotas, e não podem ficar juntas. A ordem natural das coisas são homens ficarem com mulheres e mulheres ficarem com homens”
Comecei a me incomodar com o que eu sentia por Gillani. Eu me sentia suja, me sentia imunda. E toda vez que mantínhamos relações, era muito bom, mas também muito culpabilizador. Isso me fez, conscientemente ou não, arranjar problemas na nossa relação que há muito tempo era pautada no carinho mútuo. Comecei a me incomodar em andar com elas de mãos dadas e de ser vista com ela em público. Me causava asco quando alguém se referia à mim como uma mulher que amava outras mulheres.
E isso fez com que eu e Gillani tivéssemos uma relação difícil.
— Se vê tantos problemas em ser vista comigo, — Dizia Gillani. — Por que não me deixa?
Mas eu não conseguia deixá-la, porque a amava. E isso era uma verdade incontestável. Sempre que brigávamos por algum motivo tolo, eu acabava por pedir desculpas e terminávamos na cama.
Éramos duas adolescentes inflamadas pelo amor e pelo medo de estar tentando algo novo. Eu era confusa quanto ao que eu queria, os bons olhos dos meus amigos ou o amor de Gillani; Ela, entretanto, não parecia tão confusa assim.
Foi por isso que tomo para mim toda a culpa do dia em que ela simplesmente se virou e, repentinamente, disse para mim com todas as palavras:
— Isso não pode continuar, Aylan. — Eu lembro até hoje das lágrimas que escorriam pelos seus olhos. — Eu sou algo que você abomina.
Na época, eu não pude negar. Mas agi como se eu fosse algo diferente daquilo; Ledo engano. Percebi isso nos primeiros anos sem Gillani, sem sua risada travessa e seu olhar sarcástico. Eu era completamente tudo aquilo que eu abominava e muito mais, já estava entregue àquele amor e todas as células do meu corpo gritavam seu nome.
Mas eu era tola.
Aos dezesseis, ouvi falar de Serpente novamente. Ela havia se tornado um mito, uma mestre ainda antes da maioridade. A consideravam a guerreira mais talentosa que já tinha passado pela organização. E era mesmo, Gillani sempre foi formidável. Ouvi dizer que ela havia saído com alguns rapazes, e isso foi o suficiente para me convencer de que havíamos feito a coisa certa em nos separar. Eu queria vê-la novamente, sentir o seu calor em meus braços, mas era melhor assim.
Aos dezessete, recebi um bilhete na porta do meu quarto. Ele não tinha assinatura, mas eu sabia bem de quem ele era, porque suas palavras eram tão pura e simplesmente estas:
“Eu peço perdão por todos esses anos em que estive aborrecendo-a. Eu peço perdão por tê-la levado a fazer algo que te fez mal. Talvez você esteja com um homem hoje, e eu seja apenas mais uma mancha negra na sua vida. Mas você não foi na minha. E eu preciso dizê-la que sinto sua falta; Sinto sua falta porque sei que penso em você todos os dias. Mas infelizmente você é algo que eu jamais serei, porque estive com homens e sei que nada do que eles façam comigo é capaz de me despertar o que você despertou. Por isso, apesar de não podermos estar juntas, queria dizer obrigada. Obrigada por ter aparecido na minha vida, Aylan.”
Naquele dia, eu chorei copiosamente. Chorei porque não poderia estar com a mulher que havia me feito sentir nas nuvens, chorei porque meu medo havia me impedido de estar com ela.
E, naquele mesmo dia, eu resolvi realizar um saque a um homem cujo sobrenome era Eran. Homem de posses, bem abastado. Eu era bem treinada e um roubo iria ajudar a manter minhas ideias em ordem; Não seria a primeira vez que eu havia feito isso desde que entrei na organização.
Meu erro foi não ser silenciosa ou prudente. Ele tinha uma arma e fúria no olhar. Me viu arrombando sua janela e, para meu azar, disparou alguns tiros em meu peito antes que eu pudesse adentrar sua casa. E, assim, aos dezessete eu morri.
Hoje, eu me pergunto se as coisas poderiam ser diferentes se eu estivesse viva. Se talvez eu houvesse superado o medo do julgamento aos dezoito e, aos dezenove, eu e Gillani estaríamos juntas novamente. Mas a verdade é que ninguém sabe. Talvez ela tenha encontrado alguém, uma mulher que se encaixe em sua pluralidade, e eu sigo como uma defunta amargurada narrando uma história de amor frustrada.
Finais felizes existem, mas não desta vez.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Lea
Em: 03/05/2022
Dolorido e perturbador. As pessoas deixam de serem felizes com medo do que os outros pensam. Os outros são os outros. Agora ela vaga pelo mundo dos mortos onde sem amor e sem vida jamais será feliz.
Gillane no mundo dos vivos com certeza sofre a dor da morte de sua amada.
Marina você é do mau. Kkkk
Gosto da sua escrita!
Resposta do autor:
Hahahhahah fico feliz que achou isso, era a intenção mesmo. Às vezes, por medo de ser feliz, nos privamos de boas coisas... Fico feliz q goste da minha escrita!
rhina
Em: 20/09/2020
Olá
Boa noite.
Que isso. Ê a segunda história qur leio hoje com o final triste.
Mas Autora sua sua escrita é super fluída. Leve. Clara.
Gostei apesar dos pesares.
Rhina
Resposta do autor:
Eu gosto bastante de finais tristes, mas eu sei escrever com finais felizes também. Estou planejando uma história com final feliz agora, onde as duas meninas inclusive se casam ahahahaha
obrigada pelo carinho, fico feliz que tenha gostado <3
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