Capitulo Único
Os seus passos ficavam cada vez mais ligeiros, de tempos em tempos olhava para trás para ver se ainda estava sendo seguida. Na rua não havia ninguém, o breu tomava conta de toda aquela pequena cidade de interior. Os postes eram muito distantes um do outro o que deixava alguns intervalos na escuridão. As residências ficavam em meio a um terreno cercado, longe da estrada e a sua casa ficava em um extremo isolado.
O medo já consumia o seu corpo que transpirava e fazia as suas pernas tremerem pelo esforço que não esperava fazer naquela volta para casa. Não conseguia correr porque usava uma sandália de salto que era da sua mãe, portanto maior que o seu pé. Além disso, a estrada de barro era irregular e não lhe proporcionava estabilidade no andar. Logo atrás um homem de olhos animalescos e intensões brutais, assobiava e cantarolava uma canção que soava ameaçadora. A medida que ela apressava os passos ele o fazia também.
Ela sabia que havia duas opções, ou continuava naquele ritmo ou tentaria retirar as sandálias que a impediam de correr. Qualquer uma das escolhas que ela fizesse seria arriscada, pois o monstro já estava bem perto. Ela parou, rapidamente conseguiu tirar a primeira sandália enquanto olhava amedrontada para trás. Ele correu e pelo pavor que ela sentiu vendo-o se aproximar, tentou correr mesmo sem conseguir retirar o outro calçado. Pisou com o salto em um pequeno desnivelamento, caiu. Ele riu maldosamente ao vê-la tentando levantar com a perna machucada. Ele subiu nela e segurou os seus braços rudemente...
***
Há dois anos, em um final de tarde, como sempre gostava de fazer após voltar do seu banho de rio, Antônia brincava de dona da rua com a molecada. As crianças em gritos e risadas corriam de um lado para o outro, enquanto no meio da estrada ela fingia muito bem não conseguir alcançar ninguém.
- Antôniaaaaa! Já pra casa! – Gritava a sua mãe segurando o seu irmão mais novo nos braços e a sua irmã de 3 anos no chão. – Você não tem mais idade de tá no meio de uma ruma de mininu brincando feito uma criança.
O que deveria ser sagrado e belo se tornara um fardo e Antônia sentia raiva por ter menstruado, porque foi a partir desse momento que a sua vida mudou. E foram mudanças que em nada lhe agradavam.
Tudo piorou após completar 16 anos, pois Antônia passou a sofrer com a imposição social que toda mulher carrega nas costas por nascer fêmea. Já não podia andar descalça a sentir a terra quando seca ou molhada, os seus movimentos já não podiam ser mais espontâneos e espalhafatosos, não podia também deixar o cabelo solto ao vento e nem brincar com as crianças ou sair para tomar banho de rio na hora que quisesse e tantas outras coisas que a deixava feliz.
Agora, o seu cabelo tinha de estar sempre preso, alinhado bem como a sua roupa, uma sandália a enclausurar os pés e a tornar o seu andar desequilibrado, já que não havia costume de andar suspensa. Era obrigada a ir para igreja, colocar pinturas em seu rosto, afinal, o seu casório já estava arrumado e ela precisava, mesmo que não quisesse, causar boas impressões à família do noivo.
A sua família era humilde, morava em uma casa ainda de barro, o seu pai pescava como forma de conseguir o alimento de todo dia. A sua mãe, por sua vez, cuidava das crianças e da casa e no final do dia ainda fazia renda para vender na feira de artesanato.
Em meio a uma vida castigada, ter a filha mais velha como opção do melhor partido da cidade, o filho de um fazendeiro, era o melhor futuro que os seus pais acreditavam poder dar. O moço estava de olho naquele corpo que começava a tomar forma de mulher. Antônia sonhava em ser livre, poderosa e dona de si, jamais se imaginou casada ao lado de um homem a quem teria que lavar as roupas íntimas. Sonhava que quando adulta estaria com as rédeas da própria vida em mãos.
Em um dia, após fugir das vistas da mãe, foi ao rio tomar um banho que há muito tempo não tomava. O caminho era feito de restos de plantas somados ao barro seco alaranjado e quebradiço que faziam barulho crocante e davam uma sensação gostosa ao pisar. As árvores eram rasteiras, sem folhas, algumas possuíam espinhos em seus galhos finos. Após subir o lajedo de rochas acinzentadas, ela parou no grande cacto que havia entre uma falha no granito onde desabrochara uma flor. Em meio a tantos espinhos do mandacaru, uma única flor branca brotou. Apreciou, todavia, deixou a flor lá para que pudesse viver o máximo que a natureza lhe permitisse. Continuou a caminhar sob o lajedo e mais à frente, abaixo de uma saliência na rocha que ocasionava um espaço com sombra, ela avistou a pele de uma cobra. Curiosa, chegou mais perto e com um galho seco levantou a pele ressecada, pegou com as mãos e mediu com os braços abertos, percebendo que era uma senhora cobra que havia renascido no sertão. Continuou.
O som da água corrente parecia chamar o seu nome, ela correu, tirou a roupa e mergulhou naqueles instantes de felicidade. Boiava a olhar o céu desvendando as nuvens. Antônia não sabia, mas estava sendo observada. Ela escutou um farfalhar nos galhos das árvores e por instinto decidiu que era hora de ir, além do mais se chegasse em casa após o anoitecer com certeza apanharia. Vestiu a roupa com o corpo ainda todo molhado, não percebia que as suas curvas já não eram mais de menina, mas uma mente doentia havia notado e estava a esperar o momento.
Era sábado e ela encontraria na igreja o seu futuro noivo. Não havia conversa, ele sempre estava a falar de suas posses e a contar as cabeças de gado, coisa que Antônia achava entediante. Fingia ouvir o que ele falava enquanto a sua mente estava a viajar e as vezes a rir de coisas inapropriadas como a peruca do padre que nunca estava adequadamente posicionada em sua cabeça oval, estava sempre a pender para um lado da testa deixando a outra parte descoberta. Quando não tinha o que pensar, contava os segundos para o fim daquele martírio.
Naquele sábado em especial, a missa acabou, o padre achou importante ter uma conversa com ela em particular para saber dos preparativos do casório e das obrigações que a futura noiva precisava ter. E quando terminou a conversa, todos já haviam ido embora, exceto Alaíde, uma senhora de idade já avançada e amiga da sua mãe.
- Antônia, minha fia, acho que meu neto adormeceu e esqueceu de vim me pegar. Você me deixa em casa? Amanhã aviso a sua mãe o porquê você demorou. – Argumentou enquanto se levantava a apoiar-se no banco da igreja.
- Amanhã? Mas eu vou apanhar ainda hoje! – Ambas gargalharam.
Dona Alaíde andava bastante devagar e demoraram muito até chegar em sua casa. Para não levar mais broncas do que já esperava, Antônia tentou não aceitar o convite para entrar. Porém, a senhorinha insistiu e ainda fez com que ela comesse, seria uma grande desfeita ela recusar aquele suco de goiaba tirada do pé com bolacha amanteigada. Comeu apressadamente e partiu.
Estava a andar e a olhar as estrelas e a lua, que estava em sua maior forma. Por vezes se escondia atrás das nuvens, mas logo em seguida ressurgia inteira a brilhar. Antônia vislumbrava a noite como uma loba em noite de lua cheia na montanha a uivar. Ela não sabia exatamente o que acontecia em noites tão lindas como aquela, lembrou da flor no cacto e da cobra. Estava perdida em seus pensamentos quando começou a ouvir de longe um assobio. Parou e olhou para trás para ver quem era e também para ganhar uma companhia até em casa. O som emitido pelos assobios que não cessaram e pela forma como o homem andava, por mais que ainda fosse inocente, ela sentiu na espinha que não era uma presença amigável.
Após tentar correr ainda com um salto, a menina caiu como uma presa. Ele segurou forte as suas mãos que tentavam escapar. Antônia tentava gritar, mas faltava-lhe voz e ninguém podia escutar. O homem ria do seu desespero e em um ato atroz, ele mordeu o seu seio como um animal a comer a carne de sua caça. Finalmente ela gritou com a voz saída das entranhas. Como uma alavanca, instantaneamente, a sua mente a levou para longe daquele lugar, o seu corpo ficou dormente, e as estrelas passaram a brilhar ainda mais intensamente, a lua parecia falar. O céu virou um portal, e Antônia não hesitou em entrar.
- Acho melhor deixar a menina em paz, fi de uma peste! – Disse arrastadamente uma mulher com uma espingarda na mão que saiu de trás de uma árvore. – Eu falei pra largar a menina, infiliz!!! - Se aproximando agilmente, sem tirar o olho da mira, Francisca, também chamada de Chiquinha, deu uma coronhada no rosto do desgraçado que o fez cuspir sangue. Chutou por diversas vezes a barriga e a face. – Num se preocupe não, cabra da peste, que a morte será para tu um alívio. - Fez sinal para as outras de seu bando se aproximarem e darem o que era merecido ao miserável.
Foi até a moça, que estava desnorteada no chão. Pegou o seu cantil e lavou o ferimento no seio que sangrava. Antônia olhava para aquela mulher acreditando que ela era vinda do céu, com todo aquele brilho causado pelas moedas penduradas no chapéu que cobria a frente da testa.
Naquele momento, voltando a consciência dos fatos, Antônia observava aquela mulher forte que usava alpercata de couro, saia rodada cheia de bolsos, uma blusa de mangas longas, um colete, um lenço em volta do pescoço e tantos outros utensílios, enquanto ouvia ela falar.
- Essa dor e essa cicatriz, menina, é para que tu lembre que não existe o príncipe encantado que vem salvar a mocinha. É para que tu saiba que é preciso ser forte. Nós mulheres precisamos ser fortes 3 vezes: a primeira é para seguir os nossos sonhos, o nosso destino seja lá qual for; a segunda é para enfrentar a sociedade cruel que quer nos engaiolar feito um passarinho para que cantemos aos vossos ouvidos surdos; e a terceira, minha fia, é para não ter medo, não podemos baixar a cabeça. – Apanhou um punhado de areia na terra e foi soltando devagarinho. Antônia olhava a areia ser carregada pelo vento enquanto ouvia.
- Nem mesmo a serpente que rasteja e que carrega o veneno e a cura dentro de si
Nem mesmo o diabo, chifrudo, fedorento e ruim
Nem mesmo a tua família que te ama e cuida de ti
Nem mesmo Deus, que manda no céu e na terra, que fez tu existir
Tem a posse sobre o teu corpo
Esse é teu e não propriedade do povo
Levanta, ergue a cabeça e segue em frente
Sei que amanhã tu vai ser uma mulher diferente
Vai ser forte, leal e valente!
Antônia ouvia aquele repente com os olhos deslumbrados. Maria Bonita, a amiga e confidente de Chiquinha, também amava os seus versos improvisados. Eram parceiras de estrada e os jagunços respeitavam e temiam as mulheres cangaceiras. Diziam que elas eram mais sangue no zói que qualquer perna de calça poderia ser.
Chiquinha colocou o joelho da menina no lugar, colocou mastruz no ferimento do peito e fez um curativo. Antônia jamais havia visto tanta bravura, apesar da dor que latej*v* em seu peito, estava encantada com aquela mulher.
- Me leva com você.
- Que história é essa menina? Tá doida? – Perguntou Chiquinha lavando as mãos e depois jogando água no próprio rosto.
- Me leva! Quero ser valente igual tu! – Com os olhos marejados.
- Você vai é voltar pra casa. Não sabe nem o que tá dizendo. E bora, conte logo onde mora, que o nosso bando tem muito o que resolver. Maria já deve estar a me esperar no ponto que marcamos. – Levantou e ajeitou a saia. - Antes do sol nascer já teremos partido.
Antônia foi levada para casa a cavalo. O seu pai dormia e fora melhor assim, caso contrário levaria uma surra. A sua mãe ficou apavorada mais com uma participante do bando de lampião em frente à sua casa que a situação vil que a filha passou. Após a saída de Chiquinha, mãe e filha conversaram:
- Você tá ficando doida? Como que você subiu no cavalo dessa mulé sem futuro?
- Foi ela que me salvou. – Disse indignada com o questionamento da mãe.
- Alguém viu o que aconteceu? – Fechando a janela e falando mais baixo para que nenhum vizinho ouvisse. - E o que você fez pro moço atentar você? Ele tirou a sua honra?
- Não, mãe. – O seu estômago começou a embrulhar.
- Ainda bem, meu Jesus cristinho. Fico aliviada. Assim não a de chegar fofocas nos ouvidos da família de José Pedro o seu noivo. Imagine só se eles ficassem sabendo que minha filha andou a cavalo a noite com uma bandida cangaceira? Ou que andou se engraçando com um desgraçado a noite? Graças a Deus! – Fazendo o sinal da cruz e em seguida levantando as mãos para o céu. - Vá dormir!
Antônia entrou no banheiro e vomitou as palavras de sua mãe que não conseguia digerir. Tirou a roupa, pegou a cuia e tomou um banho agachada com cuidado para não molhar o curativo. A aspereza da sua mãe foi mais violenta em seu corpo que o ferimento em seu peito. As lágrimas corriam quente em seu rosto. Lembrou dos dizeres daquela mulher forte. Queria ser tão forte como ela. Na cama que dividia com os irmãos, não conseguia dormir com um pensamento fixo a lhe arrodear.
Pela manhã a sua mãe não a encontrou na cama com os irmãos. Buscou na casa inteira, depois na vizinhança. Voltou para o quarto de Antônia e percebeu no guarda-roupa que faltavam peças.
Depois desse dia, ela nunca mais foi vista. Tomou a estrada em busca de sua liberdade. Queria ser cangaceira para fazer justiça com as próprias mãos. Aquele encontro marcou um ponto de partida no meio da caatinga, o sertão deixou de ser apenas um espaço geográfico para ser palco delas. Não se sabe se ela encontrou o bando de rosas ou se virou pó de estrela.
A história de Antônia se tornou lenda. Alguns contam que ela alcançou o cangaço e se tornou aluna de Chiquinha e mais tarde a sua parceira de comando e também a sua mulher. Outros, falam que virou uma grande serpente que ficava no lajedo próximo ao mandacaru a morder todo aquele que com maldade no coração quisesse arrancar a flor.
Assim como a sábia cobra, a pele já foi trocada, ressecada, ao tempo virou pó, misturada ao barro que é fonte da terra. Apesar de ser o mesmo mandacaru, a cada novo ciclo que anuncia o fim da estiagem, são novas flores a brotar.
Hanna Quexuá
Fim do capítulo
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Rosa Maria
Em: 19/08/2020
Bela e diria que até inspirante sua história. Gostei.
Beijos
Rosa 🌹
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