Capitulo Único
O suor pingava no chão, aquela gente molhava a terra que há muito não via chuva. A
zabumba, o triângulo e o fole da sanfona criavam a harmonia do salão. Os pés na terra
batida, sem levantar poeira, era o instrumento vivo. Enquanto dançava, durante um giro,
vi uma flor em meio ao Cerrado. Quebrei o protocolo ultrapassado da dama e o
cavaleiro, conduzi o segundo giro, mas não a vi mais. Soltei o moço, que falou algo que
não fiz questão de compreender. Ofegante, o andar meio descompassado devido ao
cansaço de horas dançadas, atravessei a multidão. No banheiro, joguei um pouco de
água no rosto.
- Me passa o sabão, por favor? – Perguntou a moça de voz doce, mas de olhar firme,
daqueles que nos causa um arrepio na pele de tamanha força.
- Claro! – Respondi sorrindo e pegando o pequeno pedaço de sabão que estava no ralo
da pia, com a certeza que era a tal moça que vi a pouco.
Dei passagem e com a barra do vestido enxuguei o rosto enquanto via aquela mulher a
lavar as mãos. O cabelo estava preso no alto da cabeça, com fios soltos, sem regras, o
que me passava um pouco da mulher selvagem. Os olhos eram levemente puxados e
tinha algo felino neles, talvez a independência. Através da blusa branca, notava-se que a
liberdade também estava em seus seios. Sem armação, soltos a mover-se livremente a
cada movimento. A sua saia possuía uma costura própria, feita a mão, com remendos
dos mais diversos tecidos. A sandália de couro se misturava facilmente com a cor do
chão.
- Oxi, minina, tá tudo bem? – Perguntou ela a perceber que eu a observava.
- Ah, sim! – E sorri com o sorriso mais desconcertante que poderia ter.
Ela me sorriu de volta e nossos olhos se encontraram.
- Ainda quer dançar? – Perguntou ela me estendendo as mãos e mantendo o sorriso nos
olhos. Apenas segurei uma de suas mãos e a puxei de volta para o salão. Ao som do
mais belo xote, aproximei do seu corpo suado e quando o meu nariz encostou em seu
pescoço apanhando uma gota de sua salgada água a escorrer na pele, senti o seu cheiro
natural que exalava o melhor perfume. Saí do ritmo. O tempo ficou mais lento.
Afastei um pouco e a encarei como que a buscar explicações sobre o que sentia. Os seus
olhos me responderam com a mesma intensidade. Senti um tremor quando às suas
mãos, uma na cintura e a outra em meu pescoço, me puxaram para mais perto. Apertei a
sua cintura enquanto os nossos olhos se penetravam sem medida. Trouxe o seu corpo
ainda mais junto ao meu. Senti o nosso pulsar fora da música. Quando me questionei
internamente se estava forçando contato, ela segurou minha nuca com firmeza como se
tivesse ouvido o meu mais íntimo pensamento. Respondeu-me com o corpo. Delineou o
seu nariz sobre o meu. Abri um sorriso e ela riu do meu descompasso.
O ambiente gonzagava: “Enquanto o fole tá fungando, tá gem*ndo. Vou dançando e
vou dizendo meu sofrer pra ela só. E ninguém nota que eu estou lhe conversando (...) ”.
Enquanto dançávamos, o meu corpo se mostrava totalmente sensível a cada roçar de
nossos faróis. A água em meu corpo fluía mais rápido, fui levada para fora do salão.
Corremos.
Ela me atirou por sobre a cerca. Segurando as minhas mãos no alto, iniciou beijando o
meu cangote e foi subindo. Afastou os lábios da minha pele e me fitou com um olhar
enigmático. Como que num piscar, a puxei e troquei de posição com ela. Sem perder a
vista que nos conectava, com uma mão em sua cintura e a outra em sua nuca, nos
beijamos calorosamente. Às nossas mãos exploravam a carne, o nosso beijo traduzia a
nossa própria língua. Arrepios corriam em meu corpo. Enquanto o beijo corria intenso,
a cada inspirar eu encostava os meus seios com delicadeza nos seios dela. Parei o beijo
e deslizei até o seu ouvido onde suspirei baixinho. Ela apertou as suas mãos agora em
minha cintura. Deslizei o meu corpo sobre o seu, ela me puxou ao seu encontro, me
estreitando em seus braços. As nossas mãos mapeavam o corpo como a nova terra à
vista a ser descoberta. Brincávamos na água que jorrava em grande abundância, apesar
do calor que nos consumia.
Como que a fechar as nossas represas naturais, as luzes externas do terreiro foram acesas e as
pessoas começaram a sair do forró. Nos afastamos em silêncio, mesmo com o corpo sedento e
pulsante pela continuidade daquela prazerosa dança. Ouvi uma voz a chamar o meu nome.
- Por onde você esteve todo esse tempo? – Perguntou minha amiga que ao se aproximar, viu o ritmo de nossa respiração, percebeu instantaneamente o motivo. Cumprimentou a moça e em seguida se afastou me dando a liberdade para a despedida.
Nos olhamos, e na profundeza de seu olhar eu via a continuação de nosso ato. Respirei
profundamente. E selei a minha partida encostando os meus lábios nos seus. Rodei nos
calcanhares e parti. Entrei na van que me levaria de volta a capital. Não olhei para trás como se faz nos filmes. Não perguntei o seu nome, onde mora ou de onde veio ou o que faz. Nem sei se a encontrarei outra vez. Mas, aqueles olhos e aquele cheiro serão reconhecidos por mim em qualquer lugar.
Por mais que seja rápido, efêmero, o mergulho pode ser profundo.
Hanna Querxuá
Fim do capítulo
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Manuella Gomes
Em: 11/08/2020
Quanta regionalidade! Adorei.
O conto é bem original, poético, sutil, misterioso, singular.
Deu até vontade de um "rala bucho", faz tempo que não danço um "pé de Serra". ;)
Resposta do autor:
Opa, Manuella!!! Muito feliz com o seu retorno. ðŸ˜ðŸ˜ Quem num gosta de um rala bucho, não é msm? Rsrsrs
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Rosa Maria
Em: 08/08/2020
Hanna... que intensidade foi essa? Me senti até em um arrasta pé. Essa poeira subindo e o suor descendo, essa inundação de sentimentos. Intenso na medida certa.
Beijos
Rosa
Resposta do autor:
Ounnn, muita generosidade sua! Me sinto honrada com o seu comentário. Ficarei na torcidaatorcida para os próximos. ðŸ˜ðŸ˜ðŸ˜
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