Pode vomitar em mim se quiser.
É fato que minha lerdeza está no DNA, meus pais são as pessoas mais diplomáticas, justas e tranquilas que já conheci. A prova disso é que criar cinco crianças não é uma tarefa fácil, e fazer isso enquanto se preocupa com viagens mensais, ensaios, apresentações, matrículas escolares, vendas do final da noite e outras centenas de demandas, eu diria que é uma tarefa impossível se você não for como Pipoca e Jujuba (e com isso talvez eu queira dizer librianos).
Para manter a calma em casa e também suas próprias sanidades mentais, meus pais nunca se envolviam em nossas brigas, tarefa que Magno assumia com prazer. Ele nos manipulava e criava desavenças para alimentar seu entretenimento doentio. E apesar de saber que meu tio era um babaca, estava sendo difícil assimilar que ele havia me traído dessa maneira, talvez seja culpa dos meus pais e seus benditos genes altruístas ou quem sabe do zodíaco.
— Vou pegar algumas roupas e te deixo à vontade – Juliana me levou para seu apartamento que era ao lado do complexo residencial do Colombo, convenientemente seríamos praticamente vizinhas. – Pode ficar o tempo que quiser e se precisar de alguma coisa é só me ligar.
— Onde você vai? – perguntei com a voz fraca e dando uma sútil olhada em volta pude perceber que o apartamento dela era uma espécie de estúdio. Dezenas de quadros, a maioria inacabados, estavam espalhados pela sala e nos corredores.
— Para casa da Juliana ou do Diego – ela disse enfi*ndo roupas em uma mochila e recolhendo pinceis e telas pelo caminho e as amontoando em um quarto vazio. – Espero que não se incomode com a bagunça, mas se você preferir posso te levar para um hotel até pegar suas chaves.
— Por que você vai?
— Você me pediu para ficar longe e eu prometi que te deixaria em paz. Entendo que agora não é o melhor momento para conversarmos sobre nós.
— Isso foi antes de saber que meu próprio tio praticamente me vendeu – a segurei pela mão e apertei levemente a ponta dos seus dedos. Minha vida toda parecia estar instável e a presença dela, por mais misteriosa que fosse, era capaz de me transmitir algum tipo de segurança. – Fica, por favor.
— Tem certeza? Eu não quero me aproveitar de você enquanto está passando por um momento delicado.
— Tenho, e eu preciso de respostas que você pode me dar.
— Quais são suas perguntas? – Juliana me conduziu até o sofá e deixou que eu escolhesse um assento para então sentar ao meu lado. – Juro que teria contado sobre o Magno de uma forma menos traumática se eu soubesse que era segredo.
— Tudo bem, não tinha maneira fácil de descobrir. Por que meus avós não me contaram? Não consigo acreditar que também esconderam isso de mim.
— Você tinha que fazer logo a única pergunta que não sei responder? Acredito que seus avós tenham os motivos deles para permanecerem distantes, mas é algo que apenas eles podem te explicar.
— E como todos sabem que o Magno é o responsável pelo vídeo?
— Eu e alguns outros artistas do Colombo fazemos parte do comitê do festival anual de artes circenses. Dois meses antes da definição dos horários de apresentação o comitê recebeu um pedido de ajuda do Magno, ele alegou que estava passando por dificuldades e pediu para o Esperanza se apresentar no horário nobre em um dos dias do festival. A ordem das apresentações é estabelecida de acordo com a quantidade de pessoas interessadas em cada circo, não dava para simplesmente colocar o Esperanza na frente das outras companhias. Ainda assim o comitê queria fazer algo para ajudar, afinal o objetivo do festival é resgatar o público e fortalecer a nossa arte, e o Esperanza é um circo tradicional que ninguém quer ver se acabando por causa de uma má administração. Então sugerirmos que Magno trouxesse a prévia de algo inovador que fizesse público ansiar por mais, o comitê usaria isso na divulgação da venda dos ingressos e em troca o Esperanza conseguiria um horário melhor. Alguns dias depois, recebemos a notícia de que você estava na UTI após ter sofrido um grave acidente, e para o horror de todos, Magno enviou seu vídeo para o comitê. Ele acreditava que não era nada muito sério e você logo sairia do hospital, então propôs explorarem sua história em troca do horário nobre – Juliana falou de uma vez, sem fazer pausas para respirar.
—Você tem mais alguma coisa para me dizer? – perguntei sentindo que ela ainda não havia chegado ao final.
—Gabriela, já sofri vários acidentes e sei reconhecer um. Eu assisti aquele maldito vídeo milhares de vezes e tenho certeza de que o que aconteceu com você não foi um acidente, sua queda foi premeditada por alguém.
—Eu acho que vou vomitar – me levantei e fiz menção de correr para o banheiro, mas Juliana foi mais rápida e me segurou.
—Respira. Está tudo bem, respira fundo – ela colocou meu rosto entre suas mãos e falava devagar tentando guiar minha respiração. – Você está segura aqui, Gabriela.
—Se você não me soltar eu vou vomitar no seu tapete – avisei sentindo meu estômago revirar enquanto minha cabeça explodia em pensamentos e teorias.
—Não tem problema, pode vomitar em mim se quiser, mas eu não vou te soltar. Respira fundo e conta comigo, 10… 9… 8… 7…6… – a voz de Juliana soava tranquila e seguindo no ritmo da sua contagem aos poucos eu ia me acalmando. – 5… 4… 3… 2… 1… acabou, você está bem, está tudo bem.
Eu não sei que bruxaria Juliana fez comigo, mas apesar do choque, da tremedeira e da fúria, levando em consideração que eu havia acabado de descobrir que meu tio não só tentou lucrar em cima da minha queda como também era o responsável por ela, dentro dos limites aceitáveis, eu realmente estava bem.
—Minha família não pode saber disso – falei assim que tive certeza de que poderia abrir a boca sem vomitar em Juliana que ainda segurava meu rosto. – Promete que não vai contar?
—É claro, minha linda. A decisão é somente sua – ela falou enquanto me levava para o quarto. – Vem, você precisa descansar um pouco, foi muita coisa para um dia.
Juliana tinha razão, era muito coisa para absorver e eu definitivamente precisava de um descanso, então nem me preocupei em negar, só deixei que ela me levasse e confortavelmente deitei entre seus travesseiros, que só para constar, eram mais do que uma pessoa normal consegue usar em uma vida inteira.
Fim do capítulo
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