Não serei parte desse seu joguinho fetichista.
Quando vó Helena e vô Vicente deixaram o Peru atrás de um lugar onde pudessem ter a chance de construírem juntos uma vida, encontraram no Brasil pessoas que os acolheram e acreditaram em seus sonhos. Pessoas que assim como as que estavam naquela sala, dedicavam suas vidas a criar oportunidades de transformação no caminho de pessoas que como meus avós, deixaram tudo para trás e chegaram aqui em busca de um recomeço onde seria possível sonhar.
Marina, Patrícia, Helen e Paulo planejavam integrar e agrupar seus projetos em uma única plataforma criando uma rede de apoio para as famílias de imigrantes e refugiados, facilitando o acesso dos interessados e também a captação e melhor distribuição dos recursos. Diego era o responsável por esquematizar a arte e fazer a publicidade da plataforma.
Duas vezes por semana, Juliana e eu ensinaríamos técnicas circenses de acrobacia para cerca de trinta crianças e adolescentes nas dependências do Colombo, Manu nos ajudaria com o aquecimento e preparo físico.
Marina nos explicava como o esporte era um importante instrumento de inclusão social e uma ferramenta de transmissão de valores fundamentais enquanto Juliana lançava olhares apreensivos para a porta. E foi durante um desses que o rosto dela congelou em uma expressão de angústia.
Eduardo Lima, um deputado federal conhecido por ser conservador, misógino, preconceituoso, incoerente e despreparado acabava de entrar na sala me deixando em completo estado de choque. Tentei chamar a atenção de Juliana em busca de uma explicação, mas ela tinha os olhos fixos em Marina e parecia transtornada.
— Eduardo, estamos no meio de uma reunião interna, vou ter que pedir para você voltar mais tarde – Marina falou seca, demonstrando que graças aos céus também não o tolerava.
— Tudo bem, sogrinha. Só passei para dar um cheiro na minha princesa – Eduardo não se deixou intimidar, avançou até Juliana e beijou seu rosto.
O primeiro namorado da minha irmã mais nova, Renata, era um adestrador de animais peçonhentos. Certa noite depois de uma apresentação, eu entrava em casa quando ela me puxou pelo collant e confessou que estava cuidando de alguns bichinhos do rapaz (JP e eu carinhosamente o apelidamos de “encantador de serpentes”), enquanto ele participava de um congresso. Lembro de cuspir todo suco que estava bebendo quando Renata disse que vinha mantendo escondido embaixo da cama um aquário com sete escorpiões e agora ele estava vazio. Depois de muitos gritos de desespero, minha mãe e Jonas conseguiram recuperar os animais, Renata ganhou um merecido castigo, Jujuba se recusou a entrar em casa e dormia em uma rede armada do lado de fora, enquanto eu vomitei durante vários dias ao imaginar aquelas patinhas peçonhentas perambulando pelo trailer.
Foi mais ou menos essa sensação que me tomou naquele momento, como se escorpiões venenosos andassem sobre o meu corpo, causando um inevitável estresse que me fazia querer vomitar ao olhar de Eduardo para Juliana.
— Com licença, pessoal. Volto em um minuto – Juliana deixou a sala e Eduardo a seguiu, mas não sem antes me lançar um olhar debochado quando na minha tentativa de controlar o nervosismo derrubei o copo de água que estava na minha frente.
— Toma – Manuela me passou uma pequena toalha que tirou da mochila e me deu um sorriso preocupado.
— Obrigada – agradeci ainda abalada.
— Ela vai te explicar tudo, não a odeie ainda – Manu repetiu baixinho a frase que Juliana havia me dito antes da reunião e segurou minha mão de um jeito tranquilizador quando devolvi a toalha.
Juliana voltou e Marina continuou a falar, agora sobre o alvará de funcionamento, registro no cartório e controle de gastos, mas minha mente já não estava mais presente. Eu só conseguia pensar nas declarações e posicionamentos medonhos, assustadores e violentos de Eduardo Lima e em como aquela garota tão gentil e carinhosa que esteve em meus braços na noite anterior era capaz de estar com alguém tão desprezível.
— Então é isso, nos reunimos semana que vem com todas as atualizações e se tudo ocorrer como o esperado, colocamos a nossa plataforma no ar – Marina encerrou a reunião e foi a primeira a deixar a sala.
— Será que você pode me enviar o seu registro médico? – Manu perguntou me tirando do transe de pensamentos que eu estava. – E também vou precisar fazer uma consulta e alguns exames antes de definir sua rotina de treino e escala de apresentações.
— Sim, é claro – respondi olhando de canto para Juliana que conversava com Paulo e Diego no outro lado da mesa.
— Aparentemente não vejo impedimento para você atuar na Lá Fée como professora, mas quero checar antes de te liberar para se apresentar nos espetáculos do Colombo, ok? – Manuela abriu sua agenda, escreveu alguma coisa e me entregou um cartão com seus contatos enquanto trocava olhares com Juliana. – Marquei para segunda-feira às dez horas, a clínica fica nesse mesmo prédio no final do corredor no primeiro andar.
—Obrigada, Manuela. Eu te mando meu registro médico assim que conseguir ligar meu computador – respondi pensando em quando teria um momento de paz para fazer aquilo e me levantei da cadeira. – Tenho que ir agora, nos vemos segunda então.
Deixei a sala ainda arrastando minha mala, sem saber bem para onde ia ou o que faria a seguir.
— Gabriela! – Juliana correu atrás de mim e me chamou antes que eu deixasse o prédio. – Onde está indo? Você ainda não está com as chaves.
— Ah – foi tudo o que consegui dizer. Havia me esquecido de que ela é quem me levaria para o meu apartamento. – Pode me entregar então. Marina me acompanhou ao RH e já assinei o contrato.
— Que ótimo, estou muito feliz por ter você aqui com a gente.
— E minhas chaves? – perguntei enquanto nenhuma das duas parecia ter coragem de tocar no assunto Eduardo Lima.
— Ficaram no porta-luvas do meu carro – Juliana disse com cuidado. – Eu e o Rui fomos até a oficina da seguradora aqui em São Paulo para tentarmos pegá-las, mas o guincho levou o carro para a oficina de Campinas porque era a mais próxima do local do acidente e só vão mandá-lo para cá quando estiver pronto.
— Tudo bem, eu dou um jeito até lá – balancei os ombros e virei as costas.
— Não, espera – Juliana segurou meu braço. – Fique lá em casa ou então me deixe te levar para um hotel.
— Não, obrigada. Eu tenho que ir – tentei me desvencilhar dela, mas não consegui. – Vou visitar uma amiga no hospital e depois decido o que fazer, não se preocupe comigo.
— Gabriela, por favor, vamos conversar – ela pediu sem me soltar.
— Agora você quer conversar, Juliana? Quer saber, você não precisa me contar nada – puxei meu braço com força e dessa vez ela me deixou sair. – Não tenho nada a ver com a sua vida, eu mal te conheço!
— Me deixa explicar.
— Não, eu não quero saber e não me interessa. Se você namora esse imbecil desequilibrado é problema seu, mas não serei parte desse seu joguinho fetichista.
— Gabriela…
— Está tudo bem, ontem falamos que não estragaríamos nossa relação profissional e pretendo continuar assim. Quando seu carro chegar você me entrega minhas chaves, até lá, por favor, fique longe de mim – falei sentindo que estava prestes a chorar.
Droga! Eu estava em uma cidade nova completamente sozinha, perturbada, sem ter a menor ideia do que fazer, tentando entender como meu sonho havia se tornado um terrível pesadelo de uma hora para outra.
—Você vai visitar a Rebeca? Posso ir?
— Como você a conhece? – perguntei confusa e respirei fundo para conter uma lágrima que quase caiu.
— Ela me mandou uma mensagem, lembra? Conversamos um pouco e eu disse que iria vê-la no hospital quando você também fosse – Juliana me explicou e eu me surpreendi ao pensar em quanta coisa já havia acontecido e em como minha vida havia mudado desde aquele momento. – Por favor, eu te levo e prometo que depois te deixo em paz.
— Tá bom – cedi porque já estava cansada de discutir e também porque tinha certeza que Rebeca me mataria se soubesse que eu a impedi de receber uma visita. – Mas ainda não estou pronta para entrar em um carro com você dirigindo.
— Certo, vou perguntar se o Rui pode nos dar uma carona – ela falou voltando a sua animação habitual. – Me encontra na bilheteria em dez minutos.
— Ok – respondi me afastando.
— Ei – ela me chamou e eu instantaneamente parei para ouvir. – Só para você saber, não estou fazendo nenhum jogo e apesar de não conseguir pensar em outra coisa além do seu beijo, o que eu sinto não é apenas um fetiche.
— Juliana, por favor, não vamos deixar as coisas piores do que já estão – pedi sem forças, ouvi-la falando do meu beijo me causou um aperto no estômago que eu não consegui identificar se era bom ou ruim.
— Vou respeitar a sua decisão e me manter longe, mas não sem antes te explicar como me menti nessa situação. Por favor, eu preciso disso.
— Tá legal, conversamos quando voltarmos do hospital – falei pensando que nada do que ela me dissesse seria capaz de apagar o ranço que se instalara no meu peito ao ver Eduardo a beijando.
Fim do capítulo
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