Qual o seu problema, garota?
Por motivos óbvios, não pude executar meu plano de ir embora sem contar nada a ninguém. E agora colho os frutos amargos desta decisão. Meus pais ainda se recusam a falar comigo e Magno está subindo pelas paredes. Nunca o vi tão furioso, o que é uma tremenda contradição, já que ele sempre reclamava na hora de pagar meu salário. Pensando bem, ele deveria era me agradecer por ter uma artista a menos na folha de pagamento. Pelo menos meus irmãos, até mesmo Fernanda, estão me apoiando (e me alimentando). Jonas ter ido embora de supetão também contribuiu para o clima fúnebre que se instalou não apenas entre minha família, mas no Esperanza inteiro. Os membros do clube LGBT estavam inconsoláveis, sem nossas presenças existiam grandes chances de Magno acabar com as reuniões.
No dia anterior a entrevista, depois de horas ouvindo ofensas sobre como sou ingrata e sem um pingo de consideração pela pessoa que colocou comida na minha mesa todos esses anos, Magno surtou de vez e proibiu o JP de me levar até São Paulo. Corri até a rodoviária de Ribeirão Preto para reservar uma passagem de ônibus e comprovei uma teoria que já desconfiava há um tempo: meu nome de batismo só pode ser Murphy, porque se existe uma chance de algo dar errado, dará. E no pior momento possível. Tipo agora.
Era véspera de feriado e todos os ônibus estavam lotados. A empresa pensava na possibilidade de colocar um extra, mas ele só sairia as 16h, horário em que eu deveria estar sentada no escritório chique do Colombo tentando impressionar os acionistas.
Supostamente duas cabeças pensam melhor do que uma; então, na esperança de conseguir uma ideia para me ajudar, contei à Rebeca os detalhes atribulados da situação. Aposto que ela nunca ouviu esse ditado; e se ouviu, fez questão de provar que ele não é verdadeiro, já que teve o atrevimento de sugerir que eu ligasse para Marina e perguntasse quais as chances do motorista dela me dar uma ajuda. É claro que isso não vai acontecer, porque apesar de não parecer, eu sou bem tímida. Ou orgulhosa, como Rebeca deixou claro.
— Então liga para sua crush! Ela não te passou o telefone só pra enfeitar a sua agenda — não cansada de dar péssimas ideias, Rebeca tentou outra. E essa definitivamente me fez balançar.
Nos últimos dias passei tanto tempo encarando o número da Juliana na tela do celular que já o sei de cor. Até ousei digitar “oi, td bem? Estou ansiosa para trabalhar com vcs.”, mas graças a Deus tive a sensatez de apagar antes de enviar.
— É só ser profissional e usar temos técnicos, não precisa dizer “quero beijar sua boca” nem nada do tipo.
— Não, vou dar um jeito nisso sozinha — expulsei a tentação pulsante em meu inconsciente.
Quando Juliana me passou um cartão com seu número, ela também falou que se eu precisasse de alguma coisa era só ligar. Mas com certeza era algo como orientações para não me perder no metro em São Paulo (que eu definitivamente precisava) e não “hey, meu tio/ex-chefe está irado e quer boicotar minha entrevista, será que você poderia me ajudar?”
— E como pretende fazer isso? Vai falar com o Magno outra vez?
— Não, já atingi a minha cota de auto-humilhação essa semana — suspirei derrotada e me joguei na antiga cama do Jonas. Fernanda me deixou ficar no trailer dela para ter um pouco de paz. Em casa, JP e Renata seguiam brigando pelas minhas coisas enquanto Pipoca e Jujuba pensavam em um jeito de apagar meu nome da tatuagem com o nome dos filhos que eles fizeram nas costas. Fofos, bregas e rancorosos. — É o universo me mandando um sinal para desistir antes de me ridicularizar ainda mais. Eu deveria ouvir.
Como toda boa sagitariana com ascendente em Áries, sou uma exímia devota de tudo o que é místico. Acredito em Krishna, Buda, Jesus, Alah, Wicca, Fé bahai e até em alguns pontos do Pastafarianismo. Qualquer movimento que pregue o amor tem a minha atenção. A questão é: por ser adepta a várias crenças, a frequência de sinais divinos que recebo pode ficar um pouco bagunçada às vezes. No dia do meu acidente, por exemplo, eu deveria treinar um número novo nos aros, mas eles simplesmente desapareceram algumas horas antes do ensaio. Revirei a lona abaixo e não os encontrei em lugar nenhum. Então obviamente interpretei o misterioso sumiço como um sinal para não subir nos aros e deixei pra lá. Só que para não perder o dia, resolvi treinar no tecido e bom, sabemos o que aconteceu. Preciso melhorar minha comunicação com as entidades e não pegar apenas a metade das mensagens, ou talvez colocar um cadeado nos meus equipamentos também me ajudaria.
— Qual o seu problema, garota? — Rebeca é presidenta do clube dos céticos. Ela não acredita em nada que não possa tocar, ver, ouvir e cheirar. — Sinal é o que eu vou deixar na sua cara se você não aparecer na entrevista amanhã.
— Preciso desligar, tive uma ideia: o JP não pode me levar, então vou convencê-lo a me emprestar a moto. É a última alternativa, se der errado é porque realmente não era para acontecer — a verdade é que, apesar de querer muito trabalhar com a Marina, eu estava completamente em pânico e nesses casos a melhor maneira de lidar com a falta de coragem é usando a autossabotagem. Se falto a entrevista, não consigo o emprego e consequentemente vou continuar na minha zona de conforto no Esperanza. Simples assim. Essa sou tentando destruir meu maior sonho por medo de me jogar no desconhecido. Típico.
— Você caiu da cadeira de rodas, quais as chances de conseguir pilotar uma moto sem se matar? — Rebeca adquiriu o péssimo hábito de jogar verdades na minha cara. Mas em minha defesa, eu só cai porque o suporte de soro enganchou entre as rodas e eu estava em alta velocidade pelo corredor tentando não chegar atrasada na terapia de grupo.
— Será que você poderia ter um pouco de fé em mim? Eu não comprei minha CNH!
- Ok, parece um bom plano. Me manda um whats quando tiver a resposta — ela se esforçou para acreditar.
— JP não vai nos decepcionar — respondi fingindo confiança, mesmo sabendo que meu irmão NUNCA me emprestaria sua adorada moto.
Fim do capítulo
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mariaclara2604
Em: 07/05/2020
duvido que nao vai decepcionar kkk
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