Único
O final daquela tarde trazia consigo uma brisa fresca e rara de verão.
Naquela época, Lucy não passava dos 16 feitos ainda no começo do ano, em janeiro. E apesar de sua vida ser um “balanço de inconstâncias” para uma adolescente superprotegida pelos pais, nada fora capaz de apagar a mágica que aquele dia nítido em sua memória teve.
Então para começarmos esta crônica, saiba que Lucy amava Adélia.
E ela não era apenas seu grande amor, mas sua musa inspiradora.
Desde a tenra idade, Lucy admirou-a por motivos conhecidos e desconhecidos. O que conhecia advinha do seu sorriso largo, dos olhos quase negros, da energia que flui da sua pele e cabelos cheios. Mais tarde, pela inteligência, personalidade forte, coerência e senso de humor - dominantes quando esta ganhou mais idade e se tornou uma mulher completa. O desconhecido, escrevia toscamente Lucy em seu diário, vinha quando “não sabia explicar o jeito que somente Adélia era capaz de descompassar seu coração e sua alma, fazendo com que seu corpo reagisse aos apelos românticos enraizados em seu sangue”. Ou então, quando mesmo magoada, “não conseguia e não queria ficar longe, pois a distância parecia ainda mais dolorosa que esmagar agressivamente seu orgulho”.
Lucy era uma pequena, bem pequena tola Shakespeare com erros básicos de português.
Em menos de 5 anos desde que se conheceram no fundamental, as duas foram de melhores amigas para irmãs, e antes mesmo do amadurecimento físico e psicológico, para amantes e namoradas secretas.
“Secretas” pois compartilhavam tudo, absolutamente tudo; mas aos cochichos.
Debaixo de uma coberta grossa, à esquina de um cômodo isolado.
Nas escapulidas ocasionais de festas e reuniões familiares.
Alegariam que assim era mais seguro.
Mais seguro e exclusivo unicamente delas.
E apesar de tudo o que viera depois junto da maioridade; dos problemas financeiros, familiares, de identidade e psico-emocionais; a “tarde dourada” continuava vívida e recente em sua mente, como se tivesse acontecido ontem ou há poucos segundos atrás, sobretudo quando o clima carregava em sua temperatura o sentimento de nostalgia.
Fora mais ou menos assim…
- Podemos assistir ele se quiser.
Dentro do quarto de Adélia, Lucy permanecia deitada na cama olhando o céu pela janela localizada acima da sua cabeça. Tinha as mãos entrelaçadas, unidas, atrás do travesseiro, onde os pés se cruzavam próximos à porta lateral que dava acesso a varanda. Ocasionalmente escutava alguns poucos carros passeando pelo bairro, e tinha quase certeza de que ouvia risadas infantis também - estas, animadas pelo início das férias de julho e em saber que no dia seguinte não teriam aula.
Quando não com os familiares e amigos, o quarto - “os quartos”, pois sempre dividiam um e uma cama nas oportunidades que tinham - se tornava o ninho particular das duas.
E encorpado ao segredo que guardavam, Adélia tomava banho de porta aberta.
Do ângulo que se encontravam e devido a estrutura da casa - um sobrado detonado -, não se viam, mas conseguiam ouvir uma a outra. Usavam o tempo para jogar conversa fora. Falar sobre amigos de amigos, sobre história, arte, seriados, filmes, quadrinhos e desenhos. Sobre a vida, sobre a injustiça, sobre a sociedade. Sobre tudo e mais um pouco; até que um súbito silêncio lhes acometeu - natural e impensado, comum quando se existe um grau de intimidade grande.
No breve momento de quietude, Lucy fechou as pálpebras quando sentiu a luz alaranjada do pôr-do-sol refletir forte em suas pupilas. Juntamente com a luminescência colorida, cessaram os roncos dos carros e as gargalhadas, doando ao ambiente ameno o deleite de apreciar unicamente o som da água do chuveiro descendo pelo ralo.
O sono nessa hora abateu-a, agradável como uma seda espalhada pelo corpo.
E antes que o efeito sonífero fosse efetivo, uma canção que Lucy conhecia fora cantada entre as paredes laminadas do banheiro.
Uma música antiga, performada geralmente por homens, mas que ganhara valor particular quando executada pela voz profunda de Adélia. Ela se iniciava falando sobre dois estranhos que se apaixonaram na primeira noite que se conheceram…
“Strangers in the night,
Exchanging glances
Wondering in the night
What were the chances
We'd be sharing love
Before the night was through”
A letra no sotaque brasileiro dava-lhe a oportunidade de entender melhor sua tradução.
Adélia não sabia, mas enquanto cantava, Lucy vertia em português as palavras ditas em sua consciência. A contemplação viva e fantástica que sempre estivera semi-adormecida em seu peito ganhava dimensão quando o cenário e a melodia criavam um momento propício para seu crescimento, como uma sementinha a germinar na terra úmida; como a introdução de um longa metragem. Curiosamente, grande parte desses momentos, onde pensava-se que existiam somente na ficção, ganhavam veracidade quando diantes da presença e toques de Adélia.
A garota que tomava banho continuou, inocente da tamanha influência que tinha para com Lucy. Então a segunda abriu os olhos. A claridade não mais atrapalhava sua visão, agora refletindo no azul cerúleo do céu em tons róseos, amarelados e arroxeados pastéis…
“Something in your eyes was so inviting,
Something in your smile was so exciting,
Something in my heart,
Told me I must have you”
A segunda parte descrevia bem seu fascínio por Adélia. Detalhes faciais da menina que compunham um belo quadro convidativo e animado; tal qual o prólogo de uma aventura que pode ser dura e mortal, mas que vale a pena ser vivida pela simples possibilidade de poder fazê-lo. Arriscar e petiscar: os resultados nem sempre são o que queremos, mas surgem de uma forma ou de outra. Agora via que, se não tivesse deixado sua timidez de lado aos 9 anos, exatamente quando se conheceram, talvez nunca tivesse se aproximado dela…
“Strangers in the night
Two lonely people, we were strangers in the night
Up to the moment
When we said our first hello,
Little bit we know
Love was just a glance away,
A warm embracing dance away, and”
- Caralh*.
Adélia ouviu o que dissera Lucy e parou de cantar. Mesmo que Lucy não a visse, sabia que tinha paralisado por timidez ou constrangimento, e que provavelmente abraçava o próprio corpo num reflexo natural de também curiosidade.
- Que foi?
Perguntou do banheiro.
- Nada. Eu só - - Lucy se levantou com euforia e correu até a porta do lavabo. Segurou-se com força em sua batente, como se a maratona tivesse criado uma descarga elétrica em seu corpo tão forte que poderia fazê-la percorrer mais 2 km sem nenhum esforço, descontrolada. - Só queria dizer que sua voz é linda. Caralh*, ela é muito bonita. E eu senti uma coisa estranha, muito estranha, como se tivesse me apaixonado mais uma vez por você.
Adélia se sobressaltou e gargalhou, dividida entre achar o que a outra dizia incrivelmente estúpido ou adorável. Provavelmente a mistura dos dois a fez acariciar o braço e pronunciar baixinho “que idiota” com o rosto levemente corado.
- Continua a cantar, por favor. A parte que vem agora é a minha favorita.
Lucy insistiu. E antes que Adélia pudesse dar seu parecer sobre o pedido, voltou correndo para a cama, se deitou na mesma posição de antes e fechou os olhos. O coração palpitava rápido e uma sensação gostosa de cócegas lhe subia pela barriga. Sem que notasse, mordiscou o lábio inferior com empolgação e ansiedade, feliz para ouvir o que viria - sabendo intrinsecamente que viria. E antes de completos 20 segundos, Adélia prosseguiu. Sua voz, ainda que mais aguda na época, pareceu incrivelmente forte e afinada…
“Ever since that night we've been together.
Lovers at first sight, in love forever.
It turned out so right,
For strangers in the night!”
O torpor tomou conta de todos os seus sentidos de uma vez. Lucy ouvia as batidas da música original espalharem-se em impulsos elétricos que corriam da ponta dos dedos dos pés ao topo da sua cabeça, arrepiando-a, dilatando-lhe os poros, lhe esquentando as bochechas salientes. Seu amor, seu puro amor, parecia palpável. Parecia caber na palma das mãos semi-abertas, suave e compacto, delicado e grande o bastante para torná-la uma menininha ingênua mesmo em meio a obstinação da adolescência. Ah sim, naquele diminuto instante Lucy criou uma convicção estranha; a de que havia se apaixonado, como dizia a música, à primeira vista; e silenciosamente agradeceu a Deus por isso. Por sentir isso - por poder experimentar o amor antes da perda e da tristeza profunda. Por prová-lo ainda tão jovem.
Um afeto tão imenso, tão abstrato e tão real, que a fazia compreender no tique de um segundo todas as músicas insuportavelmente melosas que odiava; porque no fundo não era cega pelo amor, mas Deus, o sentia!
E ainda imersa na vibração deliciosa que provara poucos segundos atrás, Lucy viu Adélia sair do banho já vestida, secando os cabelos negros com uma toalha de rosto. As duas se olharam, imóveis. A “shakesperiana” sorriu e se encolheu, translúcida, envolta em toda carga de energia positiva que costuma preencher aquele que se apaixona pela mesma pessoa em sucessivas e incontáveis vezes, por mais de 10… 15 anos.
- Vou te amar para sempre, Adélia. Para todo o sempre.
Fim do capítulo
"Escrevo à favor dos meus sentimentos. Para amá-los, respeitá-los e enfrentá-los. Depois, os guardo dentro de mim mesma, entre meus palacetes de consciência mais adoráveis."
Espero que essa crônica lhes (lhe) agrade.
Agradeço pela sua leitura e carinho. Até breve!
Comentar este capítulo:
Freya
Em: 12/06/2019
Q-u-e--L-i-n-d-o-!
Me tocou fundo, entendo perfeitamente o ato de se apaixonar sucessivas vezes pela mesma pessoa.
Estou há 17 anos me apaixonando continuamente.
Um beijo e abraço apertado e obrigada por essa crônica maravilhosa.
Resposta do autor:
Olá Freya,
Agradeço muito pelo seu comentário e feedback. ~
Me emociona muito saber que a crônica deixou-a contente de alguma forma!
E do fundo do coração, espero que sua paixão dure por muito mais anos, pois o sentimento de amar quando compartilhado é simplesmente maravilhoso.
Abraços!
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