Capítulo 1
Eu havia começado a praticar a atenção plena naquela terça feira, e ao entardecer resolvi fazer a meditação do chá. Fechei os olhos, então, para que meus sentidos ficassem concentrados nas mãos, nariz e boca, conforme a orientação que lia no notebook à minha frente.
Todo o processo até chegar esse momento passou pela minha cabeça, desde a crise de pânico que havia sofrido há duas semanas e meia, quando dei por mim, sozinha, sentada no chão da sala, sem conseguir me levantar. Jamais, durante toda minha vida consciente, havia sentido algo assim tão forte me impedindo de beber um copo d´água ou colocar Beethoven a tocar no Spotify, as duas coisas que me salvavam de qualquer crise ou desmotivação com a vida, e que você tão sabiamente percebeu e administrava. Enquanto a água esquentava na chaleira, percebi que o único chá que ainda tinha era o de abacaxi, seu favorito, e agora meu também.
Peguei então a xícara de chá com as duas mãos e senti o calor invadindo minha pele, parecendo subir pelos meus braços. A sensação era boa, confortável, me fez sorrir levemente, e eu percebi meus lábios se expandindo em um semi sorriso.
O calor me lembrou a água quente da banheira, de tantas vezes em que meu banho morno e cheiroso foi preparado por você, cuidadosamente, calculando minha hora de chegar. Geralmente naqueles dias em que havia reuniões de fechamento de mês, resultados, novas metas, aquela doença que invadiu minhas veias até meu coração e me impediu de perceber a sorte que tinha em ser recebida com tanto amor na volta para casa, para nossa casa.
Senti meu sorriso desaparecer, e uma sombra invadir minha alma.
Voltei a me concentrar na xícara de chá, afinal a meditação tinha como objetivo esquecer todo o resto e praticar a atenção plena no momento. Ainda de olhos fechados, levei a xícara para perto do nariz, para sentir o aroma daquela que poderia ser uma poção mágica, que me levaria para um estado de conforto e plenitude.
Senti a saliva se formar em minha boca quando o cheiro ácido do abacaxi penetrou meu nariz. Aquele vapor quente entrou por minhas narinas e encheu meu cérebro de imagens da fruta, madura, suculenta e doce, com sua coroa espinhenta. Impossível não lembrar dos domingos em que o cheiro dos vegetais grelhados na churrasqueira se misturava com o do abacaxi, temperado com açúcar e canela e cortado em rodelas grossas, tostado com cuidado dos dois lados, sua sobremesa preferida. Podia sentir a mistura de odores que eu tanto gostava, vindo me buscar enquanto eu lia, respondia e encaminhava e-mails que não poderiam esperar até a segunda feira. Ao menos então eu tinha certeza de que não poderiam.
Sacudi minha cabeça para desfazer as imagens que ocupavam minha mente com tanta insistência e impediam que o objetivo principal fosse atingido. Abri meus olhos e encarei o notebook à frente, para que pudesse ocupar meu cérebro com uma imagem neutra.
Joguei minha cabeça para trás e inspirei profundamente. Soltei o ar e voltei ao chá, para enfim bebê-lo prestando atenção no paladar, desta vez sem interrupções de lembranças que agora eram tão desagradáveis e dolorosas.
Aspirei com cuidado, porém o conteúdo da xícara já não estava mais tão quente. Senti o líquido morno invadir minha boca, passando por toda a língua, o gosto adocicado dançando suavemente de um lado a outro, misturando-se à saliva que havia se antecipado devido ao cheiro.
Levantei levemente a cabeça e senti a passagem do líquido pela minha garganta, descendo, até chegar ao estômago. Era reconfortante, o calor se espalhou por todo meu abdômen e desceu pelas minhas pernas, como se o chá me invadisse inteira. Me percebi sorrindo de satisfação enquanto os pelos do meu corpo se eriçavam.
Abri levemente meus lábios e o ar frio entrou pela minha boca acentuando o sabor de abacaxi ainda presente. Aquele sabor tão conhecido, tão familiar, tão íntimo e suave nos momentos em que passava da sua boca para a minha, como prévia do almoço, seus olhos brilhantes e semicerrados me encarando, claramente procurando sentir comigo o sabor que sentíamos no mesmo instante, com mesma intensidade de outros prazeres em conjunto.
Bebi outro gole, para afastar o amargor que agora parecia sentir em minha boca, em minha alma. A chuva caía mansa e era minha única companhia, e nem o prazer da torta de legumes seria suficiente para afastar de mim a melancolia daquela sala vazia, e tão cheia de você.
Fim do capítulo
Agradeço à Maria Ines Moraes Frazão que me doou um pouco do seu agora para ler antes de postar aqui.
Agradeço a vocês, que estão lendo ou leram, e dedicaram um pouco do seu agora para uma viagem nos sentidos junto comigo.
Aconselho que façam a meditação do chá, do chocolate, do beijo, do toque, de tudo! Apreciem seu agora com a consciência de que pode ser o último.
Um beijo, um abraço.
Namastê!
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Cristiane Schwinden
Em: 16/05/2019
hmmm fiquei tentada a fazer uma meditação dessas, nunca consegui meditar.
acho q vc foi a primeira pessoa q colocou chá dentro da caneca dessa imagem... rs Todo mundo colocou café ou chocolate quente.
texto gostosinho, parabéns!
Resposta do autor:
Oi Cris, obrigada! Queria ter escrito para as outras imagens também, mas estou bem atucanada com uma antologia que sou organizadora, então não deu.
Sobre a meditação, super aconselho! Tem um livro chamado Atenção Plena, da Sextante, e inclui um link que ensina meditações guiadas; apesar de meditar já há uns 20 anos, achei essas técnicas dele super desmistificadoras e tranquilas de "aprender". Tente, você vai se surpreender! E sobre a meditação do chá, pode fazer com chocolate, com o que você quiser, o almoço, uma taça de vinho... diminuindo a velocidade das coisas, percebemos que a pressa nos tira MUITOS prazeres.
Fico feliz que você gostou, e sobre o chá, é questão de preferência pessoal mesmo hehehehe.
Beijocas!!
rhina
Em: 10/05/2019
Olá
Bom dia
Meditação do chá, do chocolate, do toque, de tudo !
Apreciar.o agora com.consciência! .....algo tão desacreditado como o amor verdadeiro
Algo não praticado ......
Gostei das dicas.....irá aumentar meu repertório de aquisições na busca do que procuro.
Rhina
Resposta do autor:
Que bom, Rhina! às vezes estamos tão ansiosamente em busca de novas sensações que esquecemos de experimentar a fundo as que já "conhecemos", né?
Um beijo e bom final de semana!!
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