Foi por Ela por Bette29
Capítulo 1
“Omnia vincit amor (O Amor Vence Tudo).” Virgílio
Dez anos, …, ainda não consigo acreditar que já se passaram dez anos.
Ao pisar o chão negro do minúsculo aeroporto da minha sempre bela terra, tomei consciência dessa realidade, e nesse preciso instante, todas as memórias há muito esquecidas regressaram novamente à minha mente. Foi como se um vendaval de pensamentos, ideias, emoções e sentimentos começassem, novamente, a fazer parte da minha vida. A vida que tinha decidido esquecer.
Jamais congeminei, durante os últimos dez anos, que um dia retornaria à terra que tanto me fez sofrer. Contudo, por vezes temos que erguer a cabeça e encarar os medos que o passado acarreta, nem que seja exclusivamente para podermos seguir em frente.
Hoje aqui estou, não sei se vim para ficar, mas sei que preciso de aqui estar, preciso rever tudo o que outrora deixei para trás: os lugares, as coisas, as pessoas e, principalmente, a mulher por quem parti sem olhar para trás. A mulher que mais amei neste mundo, e que jamais deixarei de amar. Foi ela que, mesmo distante, mesmo incontactável, sempre esteve presente no meu coração e na minha vida. Foi por ela que lutei, trabalhei, estudei, investi e me tornei na mulher que agora sou. Foi por ela que voltei.
Saí do aeroporto, apanhei um táxi e pedi ao motorista que me transportasse a uma moradia que tinha adquirido a alguns dias, no mesmo dia em que marquei a passagem aérea de regresso a “casa”.
Coloquei a chave na pigmentada porta branca do meu novo lar e tive a surpreende sensação que iria fazê-lo durante o resto da minha vida.
Depois de entrar, com o pé direito – para dar sorte – assentei as malas no nivelado chão da sala e dirigi-me à casa de banho. Desabrochei a torneira de água fria e banhei a cara diversas vezes, talvez pensei que estivesse a fantasiar. Elevei a cabeça e olhei-me ao espelho. Meu Deus! O quanto mudei, pareço outra mulher, outro corpo, outra face, nem me tinha dado conta do quanto tinha mudado fisicamente ao longo dos últimos dez anos. Estava muito mais delgada, logo parecia mais alta. O cabelo que dantes era curto e escuro, agora era extenso e castanho alourado, até os olhos estavam maiores, mais impetuosos e esverdeados, claro que por culpa das pitorescas lentes de contacto que principiei a usar desde os trinta. Não reconhecia aquela mulher que agora estava diante de mim, porém, simpatizei com o que vi, estava diferente, mas mais aprazível do que nunca.
Agora sim, estava preparada para defrontar tudo e todos.
Olhei para o relógio de formato rectangular, com o mostrador encarnado, que tinha no pulso direito, e constatei que os ponteiros assinalavam rigorosamente quinze horas e trinta e cinco minutos – faltava vinte e cinco minutos para a reunião.
Desloquei-me à garagem, vinculada à casa, abri a porta do carro e sentei-me ao volante. Enquanto a porta da garagem desabrochava vagarosamente olhei-me no espelho retrovisor, respirei profundamente uma e outra vez.
Cheguei ao hospital e anunciei-me como proprietária e médica pediatra daquela recente unidade de saúde. Elogiaram-me com sorrisos e palavras amáveis. Conhecia-os a todos, mas nenhum me reconheceu.
“Está a gostar da nossa terra?” “De onde é?” “Onde estudou? Em que Universidade?” “Quanto tempo pensa ficar?”
Tantas interrogações, umas atrás das outras. Porquê? Afinal eu nasci nesta terra, cresci nesta terra, vivi nesta terra, perdi o meu marido, num fatídico acidente de viação nesta terra e cometi a insanidade de me apaixonar por uma mulher nesta terra.
Driblei astuciosamente as questões e pedi a todos que ocupassem os seus respectivos lugares.
Assentei-me na extremidade da mesa e olhei em redor.
Não a vi. Ela não estava. Será que tinha ocorrido alguma calamidade, provavelmente uma emergência médica.
Saudei os presentes e agradeci a disponibilidade de todos para aquela que seria uma demorada reunião de delineação sobre administração hospitalar.
Bateram à porta, disse que entrasse, enquanto examinava os documentos que tinha defronte. Aprumei a cabeça e vi-a. Ali estava ela, linda, airosa, com um sorriso deslumbrante nos lábios suculentos que beijei amoravelmente tantas vezes.
As minhas pernas vacilaram, o meu coração galgou desmesuradamente dentro do meu peito. Dez anos depois de a ter beijado pela derradeira vez, de ter consentido aquelas palavras amargas daquela boca deliciosa “não posso ficar contigo”, “és muito nova e ainda não sabes o que queres”, “a minha família nunca iria entender”, “a minha carreira profissional é muito importante para mim”, “ninguém vai querer ser paciente de uma médica lésbica”. Mesmo assim nunca deixei de amá-la, nunca a esqueci. Fui embora para outro país, contudo, pensei nela todos os dias, sonhei com ela todas as noites.
Colocou-se ao meu lado, era o único espaço disponível. Apresentou-se e apertou-me calorosamente a mão. A sua pele permanecia suave, usava o mesmo perfume, o corte de cabelo continuava idêntico. Não tinha cambiado rigorosamente nada.
Ali estava eu, ao seu lado, querendo abraçá-la, beijá-la, amá-la e ela, simplesmente, não me reconheceu.
Será que se esqueceu de mim e dos momentos que passámos juntas? Será que se esqueceu da quantidade de vezes que nos beijámos, que fizemos amor, que prometemos uma à outra que ninguém, nem nada, iria destruir o amor que nos unia?
Clarifiquei todos os assuntos relacionados com a organização e gestão do hospital, dei por concluído o encontro e retirei-me da sala.
Após três intermináveis horas de diálogo, estava esgotada e esfomeada. Lembrei-me que nem tinha almoçado. Pudera, com tanta ansiedade e nervosismo. Achei por bem ir jantar a um restaurante local, até porque não tinha nada em casa que me possibilitasse confeccionar uma bela refeição. Apetecia-me jantar um prato tradicional naquele restaurante que foi o meu predilecto durante os vinte e cinco anos que habitei na “minha” terra.
Entrei e escolhi a mesa que se encontrava na zona mais reservada do restaurante. O empregado entregou-me o menu e poucos minutos depois veio apontar o meu pedido.
O restaurante tem uma vista deslumbrante sobre o mar. Enquanto contemplava a grandiosidade daquela paisagem marinha alguém me tocou no ombro.
- Vai jantar sozinha? Posso lhe fazer companhia?
Era ela, o meu amor, adjacente a mim com a mão pousada sobre o meu ombro. Fiquei sem palavras e assenti com a cabeça. Ela sentou-se ao meu lado e pediu ao empregado que nos trouxesse um aperitivo.
- Então está a gostar do que vê?
- Estou, nem faz ideia do quanto.
- Esta terra é uma maravilha, tenho a certeza que vai gostar imenso de cá viver. Vai ficar por muito tempo, não é?
- Não faço ideia, talvez sim, depende de como as coisas correrem.
Bebemos os Martinis, com gelo e uma rodela de limão, que ela tinha solicitado.
Estava tão feliz por tê-la ao meu lado que nem reparei quando o empregado veio servir o jantar.
- A Senhora Dra. Bette precisa de mais alguma coisa? – Perguntou-me o empregado meio amedrontado com a minha presença. Afinal ele estava defronte a uma das mais conceituadas mulheres de negócios, dos Estados Unidos da América, dos últimos cinco anos.
- Não, mas obrigado pela atenção. – Respondi.
- Olhe, talvez seria melhor se nos trouxesse um vinho fresquinho. – Contrapôs a Cristina.
- Claro Senhora Dra. É para já. E qual é o vinho que deseja?
- Gazela. O que acha Bette?
- Sim, pode ser.
Gazela é o meu vinho favorito, foi o vinho que ambas bebemos no último encontro em que usufruímos da companhia uma da outra. Seria coincidência? Claro que sim, ela não me reconheceu, e se o tivesse feito eu teria enxergado instantaneamente.
Continuámos a conversar sobre variadíssimas matérias, até que ela me inquiriu:
- Vive com alguém?
- Sim. Vivo com um jovem maravilhoso. Ele chega no próximo Sábado.
- Não sabia. Pensava que não tinha namorado.
- E não tenho.
- Mas…
Interrompi-a e disse-lhe que o jovem maravilhoso com quem vivia era o meu filho de quinze anos, expliquei-lhe que ele, em conjunto com a minha advogada, tinha ficado nos Estados Unidos a tratar da transferência para uma escola portuguesa.
- Posso saber como se chama o menino?
- Já falámos muito sobre mim – retorqui. Fale-me agora um pouco sobre si.
- Tem namorado? Entrei a matar. Precisava de saber. Tinha de saber se ela vivia com alguém. Talvez, e se a resposta fosse não, eu tivesse uma oportunidade de reatar a relação que nunca deveria ter terminado. Não daquela forma, não com aquelas palavras azedas ainda impressas na minha alma e, sobretudo, no meu coração.
- Não, não tenho namorado. Há uns anos apaixonei-me por uma pessoa e perdi-a porque fui estúpida. Considerava que não podia ser feliz com ela, mas na verdade só serei feliz ao seu lado.
- Então porque a deixou ir? Tinha um nó gigantesco na garganta, as lágrimas estavam quase a germinar dos meus olhos, tentei camuflar o máximo que pude.
- Já lhe disse que fui muito estúpida. Ela era uma mulher linda, com um coração de ouro, mas naquela época pensei que as pessoas nunca iam admitir a nossa relação. Na realidade penso que era eu que não queria aceitar o nosso relacionamento. Amava-a tanto e tinha medo que ela me deixasse, então decidi ser eu a deixá-la. Não sei, pensava que se fosse eu a desprezá-la, e não o oposto, seria mais fácil suportar.
Depois de uns minutos, de um enfadonho silêncio, ela posou a sua mão sobre a minha e revelou:
- Eu nunca deixei de te amar.
Acho que naquela altura perdi a cabeça, nem me recordo do que aconteceu depois daquelas palavras que ansiei, durante inúmeros anos, escutar. Lembro-me vagamente de colocar a chave na porta de casa e ter a certeza que o iria fazer durante o resto da minha vida.
Acordei-a de manhã com um suave beijo nos lábios. Enlaçou-me, encostou os lábios ao meu ouvido e, com os olhos molhados, verbalizou:
- Eu te amo meu amor. Nunca mais te vou deixar ir. Este é o dia mais feliz da minha vida.
Olhei-a nos olhos, inclinei-me sobre ela e, enquanto percorria carinhosamente todo o seu corpo nu com a ponta dos meus dedos, beijei-a apaixonadamente.
Actualmente, passados dez anos do meu regresso, ela ainda não me deixou ir.
Fim do capítulo
Olá queridas leitoras.
Mais uma das muitas histórias que até então, e há muito, estavam fechadas numa gaveta.
Espero que gostem.
Gostaria de saber o que estão achando. Se puderem comentar agradecia.
Beijos a todas dos Açores.
Bette Larama
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Manuella Gomes
Em: 31/08/2020
Um amor mal resolvido pode atormentar uma vida toda. É tão bom quando tudo se resolve e o final é feliz.
Gostei do conto e do "sotaque".
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