Capítulo 1
O pedido
O sol ia paulatinamente se despedindo do universo, feito uma bola de fogo no céu e o calor consumia tudo ao redor, quando Amália seguia para casa protegida apenas pela sombra da velha e pequena sombrinha, após abraçar Endy sua melhor amiga, que acenava-lhe sorrindo. A algazarra dos meninos ia ficando para trás na pequena escola do vilarejo cearense onde ela lecionava. O seu caminhar apressado ia inundando seu corpo de suor e ela olhou ao redor da estrada poeirenta que seguia no desejo de encontrar uma sombra para descansar um pouco. As pequenas e poucas árvores que havia pelo caminho, eram apenas galhos retorcidos e secos, com folhas amareladas ao chão. Amália desistiu do intento e diminuiu a marcha, observando o sofrimento do sertão. No céu uma nuvem de pássaros voava e ela percebeu entristecida que eram urubus rondando mais um animal morto, esperando o último suspiro para então poder fazer daquele ser, talvez o derradeiro alimento. E Amália esbaforida depois de muito caminhar adentrou a casa, indo até a cozinha sedenta pelo copo com água, onde a mãe cantarolava uma canção há muito tempo esquecida, quando essa parou um pouco, anunciando que o pai da jovem a esperava na pequena sala.
— O que houve mamãe? – ela inquiriu amainando a sede que sentia, tendo por resposta da mãe um sacudir de ombros.
— Sente aí Amália – disse o homem de cabelo e barba grisalha, apontando para o banco de madeira.
Amália aquiesceu e sentou-se aguardando respeitosamente que o pai começasse a falar.
— Amália, eu sei que estou ficando velho e sua mãe também. O desejo de Deus não é o nosso, então a morte um dia via chegar e nos levar, - o homem pigarreou, fruto do uso frequente do tabaco e depois continuou, — não temos como deixar você segura, porque o que faço, mal dá para comer. E a pobreza sempre foi a nossa companheira.
Amália ouvia atentamente sem entender o que ele desejava com todo aquele rodeio. E o pai desconcertado prosseguiu ansiando por acabar logo com aquele momento.
— Olha filha, o senhor Ambrósio, o moço que eu trabalho de vez em quando, veio aqui e pediu a sua mão em casamento. Eu aceitei, porque vi nisso uma maneira de amparar o seu futuro.
— Perdão meu pai, - pediu a bela jovem de olhos escuros e brilhantes, — eu não entendi, o senhor Ambrósio o quê?
— Ele veio aqui me falar do gostar que sente por você desde que lhe viu no mercado com a sua mãe, falou que deseja casar com você e eu aceitei.
Aquela informação caiu como o soco no estômago de Amália que sentiu naquele instante e mesmo sentindo raiva ela argumentou.
— Perdão novamente meu pai, mas esse não é o meu desejo... eu não quero me casar...
— Ouça Amália, - disse o pai com voz incisiva, — não quero ouvir o seu desejo ou sei lá o que. Você já passa da idade de casar e sabe que aqui nesse maldito sertão não encontrará nada melhor do que o senhor Ambrósio que é moço rico e de bem.
— Um casamento não é um negócio, meu pai, eu não posso me casar sem amor...
— Não me venha com essa bobagem de amor. Dei a minha palavra ao senhor Ambrósio e é assim que será. Filha eu quero que entenda que o que estou fazendo é para o seu bem... E agora pode ir que preciso matutar aqui com os meus botões algumas coisas, - falou o pai sem dar mais nenhuma oportunidade de fala para a filha que seguiu para o seu quarto onde, jogou-se na cama e chorou sentindo a impotência do momento.
— Amália... – falou à mãe pedindo licença para adentrar o espaço. — Não fique assim minha filha, o seu pai está fazendo o que é melhor para você.
— Não posso acreditar nisso minha mãe. Como meu pai pode saber o que é melhor para mim, se me obriga a casar com um homem que vi uma ou duas vezes de passagem? Oh não! Isso não é o que eu desejo...
— Filha, olhe, - disse a mãe intentando amenizar o sofrimento que assolava o coração da jovem tão angustiada, — eu não amava o seu pai quando me casei... e hoje...
— Ainda não ama, não é minha mãe? – indagou Amália na intenção de mostrar a mãe o erro que seu pai estava cometendo.
— O amor Amália não resiste à miséria, gosto do seu pai, sempre fui honesta... mas ouça, não estamos falando de mim. O seu casamento será regado de coisas boas e o amor virá com o tempo, - falou a mulher e saiu sem vontade de continuar com aquele assunto.
A noite caía. Amália seguiu para o quintal, logo após o jantar e sentou num toco de árvore que servia ali de banco. Com olhar entristecido ela olhava a beleza da lua e de milhares de estrelas que cobriam o céu, “como posso me casar com alguém que não amo, meu Deus? Que sina mais triste é a da mulher, que nem sequer tem o direito de escolher o marido?” – se inquiria Amália desejando que Deus tirasse da cabeça de seu genitor aquela ideia estapafúrdia. Depois de algum tempo ali no quintal, ela seguiu para seu quarto e deitou-se na cama pequena e desconfortável desejando esquecer aquela história e adormeceu.
O dia não demorou a nascer e ela seguiu para a escola do vilarejo. Seus olhos demonstravam as lágrimas vertidas pela noite mal dormida e Endy vendo a amiga perguntou:
— O que houve?
— Depois que a aula acabar eu lhe contarei. – disse Amália com a voz carregada de tristeza.
E o dia passou moroso, como se fosse um carro de boi arrastado pelo sertão nordestino aumentando ainda mais o abatimento da jovem professora. E quando o dia finalizou Amália sentou-se ao lado de Endy.
— Endy, ontem meu pai anunciou o meu casamento, você pode acreditar nisso?
— O que está falando? Como anunciou o seu casamento? Não sabia que estava noiva ou que tinha sequer um namorado. – argumentou a jovem sentindo indignação.
— E não tinha, mas meu pai arrumou. O senhor Ambrósio, o dono da fazenda onde ele faz serviços de vez em quando. Eu estou desolada, mas não posso fazer nada para evitar esse enlace.
— Meu Deus, isso é um absurdo! Até quando viveremos dessa maneira?
— Confesso que também acho, sinto-me profundamente indignada com tudo isso, mas sei também que não me resta alternativa. Meu pai alega a velhice dele e de minha mãe e que logo a morte poderá chegar e não quer me deixar desamparada. Tentei argumentar, mas ele não aceitou e marcou o dia para o senhor Ambrósio ir a nossa casa, para o devido cortejo a mim, antes do casamento.
— Eu não sei o que dizer minha amiga, - falou Endy segurando a mão de Amália impedindo uma lágrima que intentou cair.
— Não precisa dizer nada, eu sei que nada que fale irá diminuir a mágoa que estou do meu pai, embora seja em vão.
E depois de mais algum tempo conversando, Amália se despediu da amiga seguindo para casa quando o sol já se despedia do universo. O suor descia pelo seu corpo quando Amália seguiu para o pequeno banheiro que tinha e tomou banho. Ao terminar o banho Amália tirou um vestido florido do guarda-roupa pequeno e já velho e cobriu seu corpo. Logo ouviu o barulho do carro estacionando na frente de sua casa.
— Entre senhor Ambrósio, - disse Sebastião o pai de Amália, que se levantou do banco de madeira em que estava sentada.
O vestido simples de chita exibia a beleza do corpo da jovem que completara dezenove anos e que nunca havia imaginado um casamento daquele jeito. O sonho de Amália era um dia poder sair do sertão nordestino e seguiu rumo a grande São Paulo, onde desejava prosseguir nos estudos e se formar em Advocacia.
— Boa noite senhor Ambrósio, - disse Amália saindo dos seus devaneios e encarando a sua realidade que seria o casamento com aquele homem que mal conhecia.
— Boa noite senhorita Amália, - falou Ambrósio tomando a mão que ela lhe estendera e depositando-lhe beijo suave.
Sebastião pediu licença e saiu em direção ao quintal onde estava Constância a esposa, no desejo de deixar o casal mais a vontade.
— Preciso lhe dizer Amália, - iniciou Ambrósio sentindo seu coração aos saltos, — eu quero que saiba que para mim será motivo de muita honra, ter você por esposa.
“Para mim não, se faço isso é porque meu pai determinou...” – pensou a jovem sentindo ímpetos de exprimir o que pensava, mas conteve-se e não disse nada.
— Farei de tudo para lhe fazer feliz.
— Quando o senhor deseja realizar a cerimônia? – inquiriu Amália no desejo de encerrar aquele assunto que o noivo iniciara.
— Assim que os papéis correrem e que a senhorita estiver com o enxoval pronto.
Amália silenciou. Depois acrescentou ironicamente aproveitando a fala de Ambrósio.
— Talvez seja melhor buscar outra noiva, meu senhor, pois não tenho condições de providenciar enxoval a sua altura.
Ambrósio sentiu seu rosto corar diante a argumentação dela, refazendo sua fala com carinho:
— Perdoe-me senhorita o jeito de falar. Mas asseguro-lhe que não há com o que se preocupar, terá toda a condição de comprar o enxoval que esteja a sua altura.
— Não vejo como isso possa ocorrer. O senhor pode me falar?
— Amanhã destinarei Jussara que é uma pessoa da minha confiança para que possa lhe acompanhar até a cidade, onde poderá comprar tudo o que for do seu desejo. O meu pedido é que não poupe gastos.
Amália sentia seu coração acelerar de maneira estranha cada vez que a voz de Ambrósio soava. O perfume que exalava do corpo do homem adentrava seu nariz e ela sentia como se estivesse hipnotizada diante a beleza dos olhos negros do homem quase desconhecido, mas que era agora o seu noivo.
— Se o senhor permitir gostaria lhe dizer que não tenho jeito para comprar, então se isso for realmente necessário para o senhor, gostaria de poder contar com a ajuda de Endy, minha amiga e que tem muito bom gosto.
Ambrósio olhava para ela, como se estivesse enfeitiçado. A fala suave e macia de Amália fazia seu coração comprovar novamente o sentimento de amor.
— Claro que sim senhorita, faça como achar melhor. Amanhã passarei aqui junto com Jussara, que trabalha comigo e então buscaremos a sua amiga.
— Perdoe-me senhor, mas gostaria de fazer-lhe outro pedido.
— Faça e eu atenderei com presteza, se puder.
— Gostaria de ir ao sábado, pois amanhã tenho compromisso na escola.
— Adianto que não precisará mais ir trabalhar na escola, mas respeito a sua vontade. Sim, pode deixar para sábado. E para que fique mais tranquila na sua ida à escola, pedirei ao motorista que venha para levar você.
— Não é necessária tamanha preocupação senhor Ambrósio, a caminhada até a escola me faz bem.
— Eu faço questão.
Amália não disse mais nada e o noivo se despediu tomando sua mão e beijando com carinho. O corpo de Amália estremeceu de maneira estranha com aquele contato e ela adentrou a casa tentando entender o que havia acontecido com sua resistência antes tão sólida.
Ambrósio saiu do casebre, após conversar com Sebastião que o acompanhou até a saída, voltando minutos depois ao interior da casa exalando alegria.
Amália seguiu para seu quarto. Deitou na cama e fechou os olhos no anseio de entender a paz que seu coração havia encontrado tão inusitadamente com a ideia, antes incoerente daquele enlace. E depois de rezar, adormeceu sem conseguir entender o que havia acontecido ali depois da presença de Ambrósio.
O dia chegou. A claridade do sol que nascia quase de madrugada no sertão nordestino, adentrava pelas frestas da janela de madeira do quarto de Amália que abriu os olhos. Levantou. Vestiu-se e seguiu para a cozinha onde a mãe fazia tapiocas com coco, fruto das compras que Sebastião havia feito na venda com o aval de Ambrósio que ofertou-lhe trabalho definitivo.
— Eu gosto da escola, minha mãe. Bom dia, – falou Amália no dia seguinte quando a mãe disse-lhe que dali em diante não precisava mais trabalhar.
— Eu sei que gosta filha, mas talvez seu noivo não concorde com isso. O senhor Ambrósio não há de gostar de ver a esposa trabalhando...
— Espero que não se oponha, pois gosto muito do que eu faço e não leciono apenas pelo dinheiro, minha mãe, que sempre nos ajudou muito nessa casa, mas também porque me sinto bem em ajudar aqueles que não conhecem a beleza que é a leitura e a escrita.
Constância não disse mais nada. Amália tomou café com leite, admirando a alegria que expressava o semblante da mãe, que entregou-lhe uma tapioca, e ela comeu devagar sentindo o gosto da manteiga e do queijo que sobressaía, depois saiu quando deparou-se com um senhor parado ali em frente a sua casa, num belo e confortável veículo. Quando ela se aproximou para saber o que ele desejava, esse entregou a ela um bilhete.
“Bom dia senhorita Amália. Peço que me alegre o coração, aceitando os meus cuidados. Siga com Everaldo, que é de minha inteira confiança, ele levará você e a tarde irá buscar, no desejo de não lhe cansar a caminhada. Tenha um dia cheio de paz, seu noivo. Ambrósio.”
Amália dobrou o papel que trazia um cheiro amadeirado do perfume que o noivo usava na noite anterior e adentrou o veículo, o qual o motorista gentilmente abriu a porta.
— Quem é esse? – Perguntou Endy intrigada, quando a amiga se aproximou.
— Bom dia Endy. Esse é o motorista que o senhor Ambrósio incumbiu de me trazer até aqui e por mais que eu desejasse recusar o cuidado, não tive como, quando li a carta que ele escreveu.
Endy sorriu e seguiu para a sala de aula ao lado Amália que parecia feliz com a delicadeza do homem apaixonado.
A criançada corria na deliciosa brincadeira de esconde-esconde, enquanto Endy e Amália conversavam sentadas num banco de madeira protegido pela sombra de uma mangueira.
— Percebo que não está mais tão amargurada com a ideia de se casar, - falou Endy.
— Isso é muito estranho, minha cara, mas ontem o senhor Ambrósio esteve na minha casa e confesso que não entendi as minhas reações. Ele me causou sentimentos nunca sentidos, como por exemplo, quando ele beijou a minha mão, eu senti um prazer desconhecido apossar-se do meu coração.
— Então aceitou serenamente o casamento?
— Depois que estive com ele ontem, não vi motivo para relutar, você me entende?
— Sim. Algumas moças percebem que a escolha do pai, muitas vezes é também a escolha de seu coração e são felizes no casamento.
— Talvez você tenha razão Endy... – Amália olhou a jovem que falou reticente olhando para a amiga e depois indagou: — A escolha do seu pai não foi a melhor para o seu coração, Endy, não é verdade? Perdoe-me minha amada, eu sei que não gosta de falar desse assunto.
— Está tudo bem, minha querida. Às vezes sinto que falar sobre isso pode me ajudar a diminuir a dor que ainda carrego aqui no peito, - e ela levou a mão delicada e perfumada ao local. — Nunca amei Alexandre, como eu já lhe disse, mas pior do que viver com ele, foi ter perdido Núria para sempre. Essa dor ainda me consome e parece que ainda vejo a lápide fria com o seu nome quando voltei de viagem, tão ansiosa pelos seus beijos.
Amália sentia seus olhos marejarem e lutou para não chorar ali frente a amiga que sofria a dor e a saudade da mulher que tinha partido para sempre e indagou timidamente.
— Depois dela você nunca mais amou?...
— Não. E acho que nunca mais vou amar assim, Amália. Núria foi meu único amor... mas, por favor, acho que podemos deixar essa história para outro dia, eu ainda sinto que não consigo falar sobre o assunto sem sentir vontade de morrer também. – e limpou duas lágrimas que desciam impetuosas pelo seu rosto.
— Endy, eu quero pedir-lhe um favor. Ambrósio deseja que eu compre algumas coisas que preciso para o casamento. Então... eu gostaria muito da sua ajuda, pois é uma moça fina e de muito bom gosto. E também desejo muito que seja a minha madrinha de casamento, se não for abusar do seu carinho, - ela riu fazendo Endy sorrir também depois de secar as lágrimas que não havia conseguido impedir.
— Você também é uma moça fina, Amália, mas irei com imenso prazer. Isso para mim é uma honra. Irei com você até a cidade e escolheremos o que tiver de melhor e de mais belo. E quanto ao padrinho, quem será?
— Pensei em Neto, ele nos auxilia muito aqui na escola e é um bom rapaz e um grande amigo.
— Boa escolha. Neto é um grande amigo.
As crianças voltavam para as salas e a aula recomeçou.
O sol se despedia do universo quando Amália adentrou o carro que Everaldo conduzia cuidadosamente, seguindo para o pequeno sítio onde a jovem vivia.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
olivia
Em: 02/10/2018
Bom dia autora, senti sua falta! Já começei amando o primeiro , descobri ele as 3há da madrugada,voltei na escola, estudei em uma escola rural , Estrada de terra pé no chão literalmente ,remanecente de quilombolas. Você é ótima,tenho prazer em ler o que escreve ! Não sei fazer comentários como as outras leitoras !!! Bjs
Resposta do autor:
Olivia seu comenttário me emocionou demais, seu jeito de falar, dizer que sentiu a minha falta, que gosta do que escrevo, minha nossa!!! Isso me enche de emoção demais da conta. Espero que goste da história e que deixe seus comentários, pois que isso me alegra demais. Comente do seu jeito que é o meu presente. Bjs.
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