- Mais um, por favor – Marília levantou o copo vazio e pediu uma dose de whisky.

- Levou outro bolo? – Do lado de dentro do balcão Amy servia a bebida.

- Tecnicamente não é bolo se a pessoa ligou para avisar.

- Você está esperando há três horas – Amy pegou o cinzeiro que Marília ainda não usara e guardou – e literalmente levou um bolo.

- Urhh – Marília jogou os dois braços no balcão, debruçando-se sob ele – eu fui amaldiçoada, tenho certeza disso. Não importa o que eu faça, todas as minhas tentativas de relacionamento são um desastre total.

- Talvez você não devesse se envolver tão rápido – Amy escolheu as palavras – tentar não se entregar para uma garota que conheceu há uma semana na internet e no final acabar descobrindo que é um perfil fake de um nerd tarado que mora com a avó.

- Isso só aconteceu uma vez e ele mora com a tia – Marília se defendeu com o resto de dignidade que ainda sobrara depois de sobreviver a essa história, quando decidiu que nunca mais entraria em salas de bate papo online para lésbicas.

- A questão é que sua intensidade te faz entrar em muitas furadas e acaba te privando de conhecer pessoas legais, aquelas que preferem esperar alguns meses antes de casar com comunhão universal de bens.

- Quer saber? Essa conversa está me deprimindo, agora só volto nesse bar quando você estiver de folga – Marília levantou do banco fingindo estar ofendida – a dose da outra bartender é mais generosa e ela me deixa fumar aqui dentro.

- Quer que eu chame um Uber?

- Quero, meu celular está descarregado – Marília jogou o aparelho de volta na bolsa.

Enquanto esperava Amy terminar a caipirinha de um rapaz que aguardava ansioso, Marília olhava em volta e observava as pessoas no bar. Costumava passar muitas noites ali, mas raramente prestava atenção em seus companheiros anônimos com quem dividia o espaço.

- Quem é aquela? – Apontou para uma mulher sentada no canto digitando freneticamente em um notebook – Como nunca a vi aqui antes?

- Você não enxerga nada além do seu copo, e ela não é a pessoa certa para você.

- Por que não?

- Mari, eu sei que você ainda tem um pingo de autopreservação, então me escute, vá para casa e se apaixone por uma garota de outro estado, é mais seguro do que se envolver com ela.

- Tarde demais – Marília balançou os ombros – vou até lá.

- Espera – Amy chamou e bufou irritada – o nome dela é Emily, ela é muito reservada e é deficiente auditiva, definitivamente não é uma boa idéia.

- E daí? Eu aprendi Libras na faculdade – Marília dobrou um guardanapo ao meio e pescou uma caneta em sua bolsa – vou pedir o telefone dela.

Marília se aproximou da mesa de Emily que continuava concentrada em seu notebook e a cutucou com a ponta da caneta.

Emily levantou os olhos e esperou que Marília se pronunciasse.

- Você é linda – arriscou na linguagem de sinais – posso me sentar para beber alguma coisa com você?

- Não – Emily incrédula respondeu também com sinais.

- Ok, rápido demais – Marília disse para si mesma, sem saber que Emily podia ler seus lábios.

- Deseja alguma coisa? – Emily observou a mulher e admirou seus olhos castanhos mais do que pretendia.

- O número do seu telefone. Te achei linda e queria saber se podemos nos conhecer, o que acha?

Emily não acreditava na audácia da mulher e estava pronta para expulsá-la dali, mas lembrou-se do conselho que o pai lhe dera mais cedo sobre se permitir viver e em um ato de coragem tomou o guardanapo de Marília e rabiscou seu número.

- Obrigada – Marília agradeceu orgulhosa de si mesma e da sua habilidade com Libras.

Nas semanas seguintes, entre trocas de mensagens e encontros rápidos no bar, Marília lutava para controlar sua intensidade e expectativas, ao passo que Emily oscilava entre ser fechada e extremamente fechada.

- Vamos tomar um drink hoje? Tenho uma coisa para você – o celular de Emily vibrou com o SMS de Marília.

- Você paga ;)

Em uma das conversas anteriores, Emily relatara algumas dificuldades com as quais lidava e uma delas deu uma idéia para Marília.

- Então, fiquei pensando sobre sua dificuldade em encontrar filmes brasileiros com legendas e achei que você devia assistir esses clássicos – Marília colocou dez dvd’s em cima da mesa – então eu mesma legendei e gravei esses para você.

Emily achou que tinha lido errado os sinais de Marília, não acreditava que era possível alguém ter todo esse trabalho e cuidado por ela, sentiu seu coração se acelerar e isso era uma novidade que a deixou terrivelmente apavorada.

- Sinto muito, eu tenho que ir – Emily se levantou da mesa e saiu, deixando Marília com sua confusão e um copo vazio.

Alguns dias depois Amy servia um café para Emily, que desajeitadamente tentava explicar porque fugira.

- Não posso arriscar me envolver com uma ouvinte, minha vida é muito complicada, ela vai se cansar na primeira dificuldade.

- Você tem o direito de se sentir insegura, mas uma mulher que assistiu horas do duvidoso cinema brasileiro para te fazer legendas, merece um voto de confiança. Quando eu a avisei que você era surda ela disse “E daí? Eu aprendi libras na faculdade”. Sei que ela pode ser bem enérgica, mas é isso que faz com que ela veja soluções onde vemos problemas. Você merece ao menos tentar e eu mereço um aumento por bancar a consultora amorosa de todas as lésbicas desse bar.

Emily sabia que Amy estava certa, precisava tentar e Marília valia o risco.

Correu até a porta da casa de Marília, que abriu após insistentes batidas.

- Me disseram que O auto da Compadecida é o melhor filme nacional, você quer assistir comigo? Uma pessoa incrível legendou pra mim.

- E se você quiser sair correndo no meio do filme?

- Ai você me beija.

-Entra, tenho pipoca.

Fim do capítulo