Capítulo 1
Havia alçado voo muito tempo antes e precisava descansar. Não queria repousar em qualquer lugar, porém. Seguiria em sua análise contínua da fascinante espécie humana. Estava fazendo a volta em um prédio alto quando percebeu algo reluzindo em uma janela. Sobrevoou até descer ao parapeito da janela larga com o vidro fechado. Pousou ali suavemente, agitando as pequenas asas e posicionando-se mais próximo à vidraça.
Talvez fosse o sol batendo e refletindo em algum objeto do interior do imóvel. De todo modo, a movimentação humana ali dentro lhe chamou a atenção. Havia dois seres humanos no local. Seres humanos femininos pelo que pôde notar. Mulheres, lembrou da palavra que havia aprendido recentemente.
A ausência de asas em seres humanos por vezes lhe confundia os movimentos, por isso, não soube identificar aquelas atividades. Elas adentraram o ambiente tocando-se, muito próximas. Usavam os membros superiores para prenderem seus corpos unidos, ao mesmo tempo em que os tecidos que vestiam ao redor do corpo caíam ao chão. Julgou estar presenciando uma briga. Certamente uma disputa pelo território.
Confirmou sua suspeita quando uma delas levantou a outra do chão, encaixada em seu tronco, e caminhou com ela suspensa até repousá-la sobre o ninho que os humanos chamavam de cama. Aproximou a cabeça da janela para ver melhor. Estavam despidas de suas vestes nesse momento e o modo como movimentavam-se até então desconhecia. Em dado momento, percebeu que os corpos delas uniam-se pelos membros inferiores como se presos por hastes, assemelhando-se às armas que os humanos imaturos usavam para caçá-lo. Estilingues. Jamais esqueceria dessa palavra. Pareciam dois estilingues encaixados, movendo os corpos no que julgou ser uma dança, que poderia fazer parte da disputa territorial.
Achava injusto quando um ser de tamanho maior disputava com um menor. Em sua espécie, isso quase sempre significava derrota na certa. Também era pequeno, e muito frágil, então, passou a torcer para a humana menor, que até então, estava por baixo na luta. Após algum tempo de disputa e diversas movimentações corporais, a mulher para a qual torcia obteve êxito em uma reviravolta. Achou semelhante à sua alimentação de flor em flor o modo como buscavam uma na outra um certo néctar, escondido entre pétalas muito bem guardadas entre os membros inferiores e que parecia ser muito apreciado. Inclinou a cabeça de lado para enxergar melhor, para tentar escutar as palavras desconexas que sussurravam. Eram fantásticos os humanos.
Estavam tão absortas naquele momento que sua observação curiosa passava despercebida pelas humanas cujas peles uniam-se a tal ponto que pareciam querer fundir-se. Deitadas em um ninho bagunçado, ignoravam sua presença na janela.
Continuou sua observação por um longo período. Notou os jeitos como deitavam uma sobre a outra, sentavam, semicerravam os olhos, curvavam os corpos e sibilavam sons por vezes inaudíveis.
Não saberia dizer por quanto tempo permaneceu naquele parapeito, olhando para o ninho de humanas que, após um breve espaço de tempo deitadas, ao que pareciam descansar após o embate, levantaram e alimentaram-se mutuamente. Deram de comer na boca uma da outra e em seguida, deitaram novamente. Uma delas, de costas, envolta por trás pelos membros superiores da outra, que a revestia como um casulo, formavam quase uma concha protegida de quaisquer interferências.
Ali, naquele espaço, estavam unidas como um só ser, tão próximas que era difícil distinguir-lhes as diferenças. Pareciam uma mesma existência. Eram una em si mesmas.
Estava atento àquele encanto, ao modo como adormeceram entrelaçadas em um ninho de calor humano. Mal percebeu o vulto do terceiro ser dentro daquele ambiente. Certamente, o guardião de ambas as humanas. Elas ainda dormiam, mas o outro ser moveu-se rápido.
Sua observação havia sido descoberta. Em um sobressalto, notou a veloz aproximação das quatro patas peludas em sua direção, que logo em seguida arranharam o vidro pelo lado de dentro da janela. Não havia outra saída. Estava encerrada sua análise.
Afastou-se da janela e abriu as asas, voando rumo a outra observação.
Fim do capítulo
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camila cris
Em: 18/06/2018
Eu estou tão impactada com essa leitura que não consigo parar de sorrir;
Você fez uma construção tão ímpar que eu estou sem palavras para expressar...
E olha que sou uma leitora rabujenta...haha... acho que é a primeira vez que fico sem palavras assim.
Você abordou de maneira tão única que é uma graça de se ler, apreciar.
Parabéns!
Continue a escrever, sigo adorando sua perspicácia. E continue nos presenteando com suas postagens.
Já pensou em prosseguir esse enredo? Caso não eu sugiro que pense com carinho ^^
Demorei mas vim... depois explico a confusão.
Só posso dizer que sigo sem palavras... vou mandar um audio depois, se eu conseguir digerir essa surpresa boa. Só posso dizer que não consigo parar de sorrir, e te agradeço por isso demais.
Abraços.
Resposta do autor:
Que delicadas as tuas palavras, fico encantada.
Muito obrigada por ter dado uma passadinha aqui.
Fico muito satisfeita que tenha gostado.
Eu gostei do resultado desse conto também, mas não imagino como continuá-lo.
Foi uma inspiração que veio, de certa forma, conclusiva, então, pelo menos até o momento, não pensei em nada além disso... Mas se eu pensar em algo, vou escrever com carinho e te aviso, certamente.
Obrigada pela leitura!! :)
TessaReis
Em: 15/06/2018
Ok, temos aqui uma mente diferenciada!!!
Nossa, nossa, nossa! É dessas coisas que eu falo, como alguém consegue pensar além, desconstruir o básico, olhar as coisas por um outro ângulo e tirar deste ponto de vista, uma escrita diferenciada.
Como você pensou em algo assim? São essas coisas que me fascinam sobre o processo de criação! Eu sempre tento escrever através de um ângulo diferente, criando uma personagem que seja original, mas você superou expectativas neste ponto haha
Parabéns! Que venham mais coisas dessa sua mente privilegiada!
Beijos!
Resposta do autor:
Aaaahh, que lindo ler teu comentário! Muuuito obrigada!
Eu sou fã da tua escrita e com certeza tu me ajudou a "desencantar" e finalmente ou publicar algo.
Então, muito obrigada, de verdade.
Eu também gosto de imaginar as coisas por outros ângulos, acho que foi isso que me levou a escrever esse texto nesse formato, sob essa perspectiva.
Fico muito feliz em saber que vc gostou!!
Beeijos
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dannivaladares
Em: 26/05/2018
Bem inteligente seu texto.
Gostei muito!
Resposta do autor:
Poxa, muito legal saber que vc achou isso. Fiquei bem feliz, de verdade. Quis colocar uma outra perspectiva sobre a imagem... Obrigada!
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Photographer_SP
Em: 25/05/2018
Ola autora, tudo bem?
Amei seu conto, é uma mistura de emoção e prazer, curiosidade e descobertas, entre outras....
Que belíssima perspectiva, nunca havia imaginado observações tão pontuais.
Sempre me fará lembrar que nunca estamos so, certo?
Obrigada por compartilhar conosco sua saberia em escrever tão delicadamente, o ato de amor entre seres humanos. Hehehe
Beijos
Resposta do autor:
Olá!! Como vai?
Obrigada pelo comentário!
Era exatamente isso que queria mostrar... Um outro olhar, outra perspectiva.
Curiosidade, descoberta, amor. Enfim.
Que bom que conseguiste extrair o que tentei demonstrar. Fico feliz que tenha gostado.
Gratidão pelas palavras!
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