Capítulo Único
“Calma! A gente ainda tem tempo...”
Tempo. Ela me fala de tempo, e eu vejo nos seus olhos o desespero de quem vive correndo. Acorda, se ajeita, se arruma, se hidrata, se perfuma. Escolhe as melhores roupas, depois troca pelas mais batidas. Fala ao telefone enquanto engole a comida.
Eu não. Eu observo. Sento no lugar onde meus pés nunca estarão no seu caminho, que ela pouco se atenta ao andar. É o medo de te fazer tropeçar, seja na vida, seja nas feridas.
Cedo eu desperto, junto com ela que parece ter passado as horas de sono planejando o acordar.
Sempre tão independente, razões da vida. Me abriu as portas, mas não era pra ficar. Era só pra estar, uns minutos, umas horas... “Você vai ficar hoje?”... “Posso estar com você, é só me dizer.”...
“Então fica.”
Ela, de pontos finais. Eu de reticências. Um dia tive dúvidas se ela entendeu a diferença das palavras, mas eu não conseguiria explicar porque usava as palavras assim. Talvez fosse meu peito que parecia vivo quando, desde a primeira vez, toquei sua pele. Era pra ser um abraço, mas braços não seriam capazes de envolver como aquele abraço. Era pra ser um “tudo bem?”, mas isso não caberia na minha ânsia de fazer tudo estar maravilhoso.
Não sei se ela percebeu. Não sei se ela sentiu. Mas os olhos daquela pessoa que eu nem conhecia além de “bom dia” nos corredores despertou um batimento acelerado.
Ali não. Ali não poderia ser. A pele, o abraço, as saudações. Eram formalidades. Ela sempre séria da sua posição, eu sempre tranquila, da minha.
Pensei em tudo: voltar pra terapia, fazer mais exercícios, praticar meditação, me alimentar melhor, depois comer o que eu gosto mesmo. Qual foi o momento que se permitiu cumprimentar alguém que mal se convivia e sentir seu corpo vivo como um toque de afeto?
Paixão a primeira vista? Faça-me o favor. Nem primeira vista era. E não tinha mais idade pra essas baboseiras de “sentimento surgido do nada”.
Mas assim foi: uma noite inteira. Jantares executivos pra discutir futuro de empresa, de funcionários, de produtos e burocracias. E a cada oportunidade, eu olhava por cima dos ombros de quem falava comigo, pra observar pelas muralhas o que parecia inatingível.
Nossa cabeça nos engana. Talvez nosso peito também. Aquele turbilhão e eu sem entender porque aquele brilho tinha aparecido nela, que sempre me passou sem nenhum resquício de luz.
Mas o acaso não existe. Tudo converge pra estar e ser e ficar. Saímos tarde. Ela com todas as novas parcerias, eu com as promessas de melhorias pro pessoal. Cada uma na sua área, cada uma no seu tempo. Ela prática, eu das relações. No estacionamento eu caminhava devagar na esperança de ver quando ela chegaria por perto, se é que estava ali por perto. Não precisou muito pra eu ouvir o som do salto no piso frio. Olhei pra trás na expectativa de saber pra onde caminharia, e vinha na minha direção. Parei, daquela forma gentil de quem espera pra fazer uma companhia vazia.
“Nem falei com você, não como deveria. Conseguiu fazer render essa noite perdida?”
Peito disparado novamente. Eu tentando entender porque meu corpo reagia assim.
“Mais do que o esperado. Umas parcerias. Pensar que meu trabalho é que nem tocar gado. Se eles soubessem que esse carinho todo é preparo pro abate, não ficava um. E você? Resultados?”
“Vendas, vendas... e mais vendas. É bom que estejam todos felizes, porque vão trabalhar. Que nem gado.”
Rimos, de nervoso com o trabalho, e porque percebíamos que todo nosso assunto já tinha se esgotado. Segundos que pareciam horas até chegar no carro, um do lado do outro.
“Então até segunda. E pensar que o sábado já era...”. Ela disse com um desânimo de quem buscava um descanso merecido.
“Até.” – respondi com o coração na boca, pensando que deveria estreitar as relações, chamar pra uma cerveja. Ou um café? Do que ela gostava? O que ela pensava? Quem era ela além da diretora comercial, dona das palavras de ordem e de trabalho. Não percebi que parei. Não entrei no carro, não dei um passo a mais. Acordei num súbito com o som de motor que não quer pegar.
“Merda! Vou ter que ligar pro seguro. Até chegar, até chegar em casa...”.
- Quer que eu te leve? – foi mais forte que eu. Saiu da boca pra fora. Saiu do peito apertado pra fora, e agora não era mais apertado. Era acelerado. O que eu tinha feito?
O aceitar me deixou ainda mais desesperada. O silêncio constrangedor. Quinze minutos eternos. Era perto, mas foi o caminho mais distante que percorri. O agradecimento na porta do apartamento, a respirada profunda. Um abraço. Outro abraço. Uma mão que percorreu inocentemente a cintura e um olhar.
Paixão a primeira vista? Não sei. Uma piscada de olhos demorada. Um encostar de rosto. Um calor e o peito na boca. Um suspiro e uma respiração.
Eu estava. Uns minutos, umas horas.
“Sobe?”.
Inexplicável a entrega, o momento. As mãos que tateavam reconhecendo cada centímetro daquela pele. O peito que pulsava a cada toque de lábios. A calma. A entrega. O macio das mãos. O cuidado. O silêncio que falava.
O relógio dizia seis da manhã. E ali ficamos, descobrindo com a voz o que nunca tinha sido dito. E ali ficamos até o outro dia.
“Calma! A gente ainda tem tempo... mas não agora. Tem alguém que vai voltar pra cá. Preciso me resolver. Comigo. Com ele.”.
Fiquei mais aquele dia. Depois fui embora na tempestade. Com o peito batendo forte. Esperando aquele brilho entre os cacos que ficaram do nosso estar.
Fim do capítulo
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Cristiane Schwinden
Em: 20/05/2018
Adoro essas tensões crescentes! Tá bem gostoso, parabéns!
vê se continua na próxima semana, merece :)
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